Gilberto Maringoni
Rodolfo Vianna
O que aconteceu com o Brasil para o país sustentar, apoiar e se identificar com a candidatura de Jair Bolsonaro? Christian Dunker Acredito que um primeiro motivo foi o deslocamento social agudo que o governo Lula e Dilma criaram. Você teve 46 milhões de pessoas que saíram da “ralé” e foram para a pobreza, ou que saíram da pobreza e foram para a classe média trabalhadora e ascendente. Nós costumamos pensar nisso como uma coisa boa, uma coisa interessante, e não como algo que traz novos sofrimentos específicos. Por exemplo: eu saí de uma condição e cheguei a outra, e isso foi um grande sacrifício, e que para mim tinha uma dimensão de promessa, uma dimensão de realização. E o que acontece quando eu chego nessa nova posição? Eu encontro um outro universo de problemas, eu perco parte da minha identidade, porque eu sou um entre outros que estão começando a participar da universidade, das viagens, do mercado de consumo etc., e eu tenho que ajustar contas com o lugar de onde eu vim. Nem todos fizeram essa travessia. Então, vamos dizer assim, não é fácil crescer, não é fácil você fazer essa mudança e ela produz uma certa abertura para a insatisfação e o reentendimento do que foi esse processo.
Há um processo de negação da situação anterior? Christian Dunker Bom, a negação é uma forma de solução. Você pode dizer assim: bom, agora eu sou outra pessoa, não tenho mais compromisso, não tenho mais dívida simbólica então vamos em frente. Mas mesmo essa solução tem resíduos psíquicos, ela é indutora de sintomas. Você pode ter uma outra solução que é dizer assim: não, eu me sinto eternamente culpado… Eu já tive pacientes assim, que tinham dinheiro para comprar uma loja inteira, mas não conseguiam se autorizar a comprar determinado bem porque cada vez que ele pegava no cartão de crédito ele lembrava da tia que estava numa situação empobrecida, que não tinha condições etc. Eu acredito que a gente subestimou esse processo, pois contabilizamos como um ganho o que obviamente foi, mas a gente não levou em conta que ele exigia mediações para um novo universo de conflitos. Correlativamente, este processo também afetou as classes médias, as classes médias altas, porque os padrões de consumo que antes se faziam como signo de identidade se viram vilipendiados…
Fatores de distinção social? Christian Dunker Exatamente. Ao mesmo tempo, então, você tem do outro lado o incremento do temor do descenso. Se tem gente subindo, pode ser que eu me indiferencie, e aquela satisfação que eu tinha com a minha vida ela muda, porque agora eu preciso dar um novo passo, e esse passo não é fácil e eu começo a ser assediado pela ideia de que eu vou perder, que eu já estou perdendo. Aquela satisfação pessoal, aquele prazer que eu tinha de viajar de avião e de gozar com os outros que não viajavam agora me foram tirados. E onde é que nós vamos parar com isso? Ou seja, esse processo ativou um duplo ressentimento social, que demandava mediações para elaborar essa nova situação. Bom, isso é um cenário. Junto com isso você teve a entrada de uma forma de nova linguagem, que é a linguagem digital, carregando consigo novos protocolos de enunciação, outras narrativas, reconfigurações de laços de comunidade e identificação, uma migração, vamos dizer assim, das identificações mais estáveis, mais comunitárias, para identificações ligadas ao consumo, cada vez mais segmentadas. E também podemos dizer de comunidades ligadas à identidade, à gênero, à raça, que também se organizaram a partir desse instrumento. E o que novamente temos? Déficit de mediação. Principalmente a partir do momento em que grandes instituições que tradicionalmente coordenavam o debate, universidades e imprensa, se ausentam desse universo.
É isso que poderia explicar o sucesso de um tipo como Olavo de Carvalho, antes completamente marginal no debate nacional? Christian Dunker Entre outras coisas. Quando você tem um debate sem mediação, vozes extremas começam a pesar mais, com segmentação e capilaridade, e a ideia de alguém que já vinha com uma comunidade alternativa de discurso consegue espaço que jamais conseguiria em outra situação. Ele (Olavo de Carvalho) tinha lá seus artigos, tinha um público que ele conseguiu trazer para o universo digital, ao contrário da ampla maioria das figuras universitárias, ou do establishment universitário, ou mesmo dos think tanks… esse processo foi muito mais lento para as instituições que faziam isso, e era de se esperar, e muito mais rápido para os aventureiros. Bom, este é o segundo fator indutor de uma transformação muito importante e meio errática, meio desgovernada. Isso está acontecendo com a entrada desta nova linguagem, mas se você pega outro grande mediador de conflito, que é o universo jurídico, percebe que isso também está acontecendo, que passa, vamos dizer assim, a “ter partido”, que passa a intervir cada vez mais em processos políticos, passa a ser um agente ativo. Independentemente de você achar que sim ou que não, ele é percebido como alguém que tem interesses.
E onde entra o ódio nesse cenário? Christian Dunker Em certo sentido é um tipo de comunidade, cuja lógica é a de que o outro é o inimigo, e não adversário. Antes do ódio, acho importante refazer a ideia, nós estávamos no laço social que era basicamente organizado pelo medo e pela inveja, o que eu tentei descrever em meu livro sobre os condomínios (Mal-estar, sofrimento e sintoma). O medo do outro atrás do muro, o medo da periferia, o medo daquilo que você se isolou e não sabe mais como funciona, das “classes perigosas”, do menor infrator. Você tinha uma relação que era eu posso ser agressivo, eu posso ser violento porque “eu estou me defendendo”. Do outro lado, é que uma parte desse medo estava baseado na atitude das elites de impingir inveja como a moeda de reconhecimento básico. Então não importa a origem do seu dinheiro, o que importa é que você consiga se exibir, você consiga fazer rituais de humilhação, você consiga desrespeitar. E essa máquina estava mais ou menos funcionando naquilo que eu chamei de “cultura de condomínio”. Mas isso ruiu. Chegou em um momento que essa forma de vida deixou de ser um grande ideal de consumo para a classe média. O ano de 2013 é um marco para isso: vamos para a rua, nós queremos diversidade, nós queremos pluralidade… o medo chegou num ponto de exaustão. O ódio é produto e substitui esse outro funcionamento de afetos. Bom agora, vamos usar a alegoria: eu sai do meu condomínio e encontro uma pessoa que eu não consigo entender e ela me trata como? Ah, desse jeito! E o que eu posso fazer? Eu posso odiá-la. Por que? Porque a lógica é de que se essa pessoa não existisse, o mundo seria muito melhor. Então você parte para um outro tipo de política que é a democracia de exclusão, baseada no projeto de eliminação de alguma coisa.
Sempre existiram essas pessoas, ainda mais no Brasil, país da intensa desigualdade. Podemos crer que sua visibilidade maior, fruto de certa ascensão social, trouxe esse tipo de reação vinculada ao ódio? Christian Dunker A visibilidade, sim, mas seria melhor chamar de uma nova ocupação de um espaço público, onde as redes sociais jogaram um papel. A gente pode discutir se elas são “privadas”, se são “públicas” … elas são uma bagunça disso. E elas fizeram um papel de Ágora [assembleia grega] para esse processo.
O sr. acredita que o Bolsonaro é um grande intérprete do que resultou 2013? Christian Dunker Ele é um sintoma terminal disso, “aquilo deu nisso”. Você teve uma visibilidade maior de contradições, você teve um aumento da desigualdade social porque você teve um primeiro momento que é o como lidar com o que deu certo, mas você teve um segundo momento que deu errado. Você teve um empobrecimento, crise econômica. Você teve uma “volta para trás”.
E isso se deu ainda dentro dos governos do PT, o degrau da queda foi durante 2015/2016… Christian Dunker Isso, e daí você teve o ingrediente explosivo da passagem para o ódio. Aquela pessoa que nunca sonhou muito e que permanecia administrando seu sofrimento local, o que acontece quando você oferece para ela “a mais” e depois tira? O medo se converte em ódio.
A campanha do Bolsonaro não foi racional, foi sem debates e sem propostas. Foi uma campanha de sensações...Christian Dunker Eu acrescentaria um qualificativo: foi uma campanha de projeção. Por isso foi fundamental ele não aparecer, ele não falar, ele não ir a debates. Porque qualquer coisa que ele dissesse seria um sinal de realidade. E ele aproveitou o fato de que se projetava nele coisas que ele não tinha e que ele não era, coisas que ele não queria, mas que eram a negação projetada de alguém que representava o “não-inimigo”
Viktor Orban, presidente da Hungria, em sua primeira eleição, em 2010, não foi a nenhum debate, numa campanha muito parecida, mesmo sem as redes sociais. Não apresentou programa e nem nada…Christian Dunker E o programa não importa, porque você faz o trabalho por ele. Quanto menos ele diz, mais ele coloca seu apoiador para trabalhar…
Mas é um tipo de campanha, em termos sociais, fragmentária, disruptiva. Ela coesiona a sociedade? Christian Dunker É uma coesão de novo tipo, altamente potente. Um blogueiro que tem 3 milhões de curtidas num texto, ele produziu uma coesão para aquele fim. Mudou o fim, a coesão se desfaz. Mas ela é brutal quando está acontecendo.
Com um discurso de combate ao que seriam as ideologias, Bolsonaro faz um dos governos fortemente ideológico. Com o discurso de união do país, faz uma campanha de violência e segregação, construindo inimigos. Com o discurso do nacionalismo faz um governo muito pouco nacionalista e de alinha – mento automático aos EUA. Quanto que essa lógica da inversão funciona na construção do “mito”? Christian Dunker Aí tem duas operações muito eficazes. A primeira foi a produção de um vocabulário discriminativo. Mesmo falando pouco, era repetido “ideologia”, “isso que está aí”, “marxismo cultural” que é uma coisa inventada! Mas é o vocabulário que foi dando coesão a esse novo agrupamento político, e isso acho importante ressaltar, um novo agrupamento político que foi brutalmente empurrado para a política. Quando você entra nas redes sociais, tem que falar alguma coisa. Para um cara desarmado, ele chegou e ofereceu “olha, pode escolher: ideologia, marxismo cultural, os vermelhos…” E assim produziu um vocabulário que permitiu às pessoas terem uma opinião. E isso é um ponto crucial para essas pessoas existirem, “bom, agora eu sei falar nesse novo mundo”. O segundo ponto é que se aproveitou admiravelmente do que a gente chama de um argumento retórico-reflexivo. Que é assim: o que vocês escutam das feministas? Ah, que a gente enquanto mulher está sofrendo, está excluída e quer ter os nossos direitos atendidos… Bom, se ela pode dizer isso, você também pode. Ou seja, você pode dizer que é machista, que defende a sua identidade… não tenha culpa nem vergonha disso e vamos fazer política assim: você é feminista, e eu sou machista. Você defende a causa negra, eu defendo a causa branca. Você defende a causa dos pobres eu defendo a causa dos ricos. Você defende a causa católica, eu defendo a crença do meu Cristo atrás da arma. Isso liberou o inferno.
O sr. acredita que o ressentimento social e a sensação de frustração foram impulsos pró-Bolsonaro na campanha? Christian Dunker Certamente. Essa foi uma eleição decidida pela instrumentalização do ressentimento.
Existe alguma surpresa no fato de Bolsonaro ter sido eleito depois de 13 anos de governos petistas? Christian Dunker Eu acho isso muito compreensível. A gente achou que haveria 13 anos de reformas numa direção e que ninguém ia falar nada? Que não haveria um contra-golpe? A História não funciona assim nunca. Uma marcha progressiva de avanços, de inclusão, de ampliação de direitos… para padrões brasileiros tivemos avanços muito significativos. Em 13 anos nós corremos muito.
Bolsonaro expressa um certo Brasil? Christian Dunker Ele é expressão do Brasil que foi relegado, que foi excluído, objeto de violência e segregação não tratada… um Brasil onde o Estado se omitiu, naquelas áreas em que o Estado deu W.O. Quando você vai construindo um Estado que não chega onde deve chegar, a igreja neopentecostal chega, a violência chega, o tráfico chega, a milícia chega… e eles ganham voz.