Manuela Trindade Oiticica
De enredo, de quadra, de breque, de raiz. Samba de rádio e da Era do Rádio. Puladinho, cruzado, miudinho, samba de negão cansado, samba de meio de ano. De roda, de mesa, de fundo de quintal, calangueado. Pagode, choro, partido, bossa, seresta, samba-rock-reggae-jazz-canção. Samba- -protesto. Exaltação. Nesses cem anos de gravação do primeiro samba (Pelo telefone), não faltaram variações da forma de tocar, compor e dançar.
Gênero vivo nos seus desdobramentos, vivo também no que tem de mais teimoso: encontro, improviso e camaradagem. O mundo se encaixota pra que tudo caiba em prateleiras assépticas e vendáveis e o samba está dentro do mundo providenciado etiquetas próprias. Mas tem nele o que insiste, e nisso guardou algum fio de navalha das capoeiras do Estácio. Pensa só: reivindicar a rua quando tudo é pensado para glorificar as paredes da televisão com medida de terreno à geladeira que dá conselhos. Ou então: não arredar pé de botequim, quando os bares S.A. gourmetizam até ovo estragado. Não é por romantismo de letreiro de encaixe, que isso é o que menos importa. Samba ainda é forte nas esquinas menos prováveis.
Beira o deboche e que assim seja! fazer música com faca roçando prato e algum balde segurando a marcação.
Besteira desconsiderar as maravilhas de instrumentos caprichados e as duzentas mil ferramentas de gravação que se use, abuse e democratize tudo isso. Mas esse pequeno trapo de texto é também para lembrar daquilo que é mais fácil alguém acabar esquecendo. Encontro, improviso, camaradagem. Em plena Era do Spotify.
Outra que vale pensar: mas por que há menos bons sambas nas rádios hoje? Primeiro seria preciso situar quando começa o “hoje” e quais os critérios sem dúvida, existem desses “bons”. Está aberta a temporada de respostas, e vale quase tudo, menos esquecer que o problema é mais da rádio do que do samba. A indústria cultural sempre faminta, com reposição a jato de peças e atendendo aos interesses meramente comerciais, costuma dar a linha. Só não pode escorregar na pegadinha: produção de cultura não é o mesmo que a veiculação em massa dela tem muito bamba por aí cheio de boas novas, as esquinas improváveis, mais do que as rádios, por testemunha.
É curioso pensar quantas mediações foram surgindo entre criadores e divulgadores nesse último século. Do comércio varejista de parcerias um Chico Alves pagando para ser autor de um samba que jamais fez (e espalhando a música na Rádio Nacional) às vaquinhas online para discos digitais, passando por programas específicos em brechas das grandes rádios e espaços na internet dedicados a novas composições. Mas curioso, também, é poder dizer que não mudou a resposta para quem perguntar onde se ouvem sambas novos nesse país: nas rodas de samba, ora.
Falar sobre uma história de cem anos começando pelo presente é sinal de que os batimentos cardíacos dela seguem firmes, igual compasso de surdo em meio de avenida. Agora ajeita aí o retrovisor.
Tudo começou nos batuques africanos, que, chegados ao Brasil, foram misturando sotaques. A casa da baiana Tia Ciata sacolejava em seu caldeirão a receita musical que sairia da Pequena África, Centro do Rio, para, 80 anos depois, chegar a acordar robô em Marte (lembra?). No quintal da cozinheira e mãe-de-santo, os batuqueiros improvisavam versos, incluindo os que deram origem à música Pelo Telefone, registrada em 1916 pelos frequentadores Donga e Mauro Almeida e gravada por Baiano no ano seguinte.
Filho pra sempre do batuque negro, o samba começou a andar tomando emprestado o chacoalhar de maxixes. Pouco tempo depois e bem perto da casa da Tia Ciata, passou a ser temperado pelos surdos, cuícas e tamborins que a turma do bairro do Estácio de Sá inventava para acompanhar o que seria a primeira de todas as escolas de samba. É que maxixe cabia na dança, camarada, mas pra desfilar brincante faltava o embalo sincopado de tamborins. Dizem por aí: telecoteco.
Som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado. A letra, que é de um funk da década de 90, caberia bem num partido-alto do início do século 20. Que esteticamente cada um dos gêneros tenha seus seguidores é uma coisa, mas tanto o samba quanto o funk têm as pernas corridas de polícia e cicatrizes de tudo o quanto é tipo de maldizer, embora as do funk ainda sangrem fortes. Não à toa, a lista de sambistas do início do século é feita de compositores e leõesde-chácara.
A partir da segunda metade da década de 30, no entanto, as escolas de samba são oficializadas e os sambistas, cansados de viver anavalhados, começam a dar um jeito de sua música caber na estreante Era Vargas. Um bom representante desse momento é Wilson Batista, compositor que escancarava o orgulho pela vadiagem em 1933 (“Meu chapéu de lado, tamanco arrastando / lenço no pescoço, navalha no bolso / eu passo gingando, provoco e desafio / eu tenho orgulho de ser vadio”), mas que precisou mudar o assunto dos seus sambas em 1940 (“Quem trabalha é quem tem razão / eu digo e não tenho medo de errar / o bonde de São Januário / leva mais um operário / sou eu que vou trabalhar”).
Assim, aos poucos e por meio de concessões de ambos os lados, o samba foi sendo incorporado a políticas várias de Estado, e, por essa via também, se massificando. Teve a fase de grandes orquestrações e de vozeirões dó-de-peito, estilo Orlando Silva. Teve a fase de vozes mais miúdas favorecidas pelas tecnologias que iam surgindo fala, Mário Reis. Teve momento da batucada resumida no violão de João Gilberto, da batucada incorporada pelas cordas de Baden Powell, da batucada reinventada pelo grupo Fundo de Quintal: bossa-nova, afrosamba, pagode. Daí a gente poderia fechar a roda, voltando pro início do texto e recuperando algumas falanges que o samba formou.
Mas esse pequeno trapo de texto é também para lembrar daquilo que é mais fácil alguém acabar esquecendo, tá escrito aí em alguma parte. A participação das mulheres no samba começou com as baianas-anfitriãs dos encontros musicais, numa tradição das “tias” que persiste até hoje, por exemplo, Tia Surica que representa também outro elemento marcadamente feminino, o coro das pastoras.
No canto, aliás, está boa parte das sambistas, de Carmen Miranda a Alcione, passando pelo partido-alto de Jovelina Pérola Negra e pelos fundamentos de Clementina de Jesus. Essa presença é menos numerosa nas composições, o que não é difícil de entender, em se tratando de um país que costuma não ter pudores ao restringir os espaços de atuação das mulheres. Aos desavisados: menos numerosa não é inexistente nem de menos qualidade. Dolores Duran, Leci Brandão e Dona Ivone Lara que o digam, fora as que se insinuaram, mas não acharam espaço para seguir adiante.
Baile que segue, as mulheres buscando cada vez mais tomar assento nas rodas, nas notas, nas letras e nos batuques que falar de uma história de cem anos no presente é também dizer o que se constrói pra ela no futuro. A saber: camaradagem, resistência e esquinas improváveis.