CONSULTA PRÉVIA
Prevista pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a consulta livre, prévia, informada e de boa-fé tem sido sistematicamente desrespeitada
Danilo Serejo
Quilombola de Alcântara (MA), cientista político e pesquisador vinculado à Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.
O direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé foi introduzido no Brasil pela ratificação da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em 2002. Desde então vem ganhando força no campo dos movimentos sociais de caráter étnico e territorial, especialmente os indígenas e quilombolas, circulando também, em alguma medida, na arena institucional. Esse direito se constitui como tema central da C169 porque dele derivam e desdobram outros nela previstos.
Trata-se de um importante instrumento de participação social exclusivamente voltado para povos e comunidades tradicionais, sempre que forem previstas medidas administrativas e legislativas capazes de afetar os direitos e modos de vida desses povos (C169, art. 6). Vale ressaltar, nesse sentido, que a consulta prévia deve ser realizada por meio das instituições representativas das comunidades, e não de forma individualizada, com lideranças ou determinadas famílias. Dessa forma, não se confunde com os tradicionais instrumentos de participação social comuns a toda sociedade, como audiências públicas, enquetes, consultas públicas ou oitivas constitucionais.
Até hoje o Brasil não registrou um único caso sequer de aplicação da Convenção 169 e do direito de consulta prévia
Este tipo de consulta se caracteriza por ser um processo mais complexo e que não é reduzido a um evento. É prévia porque deve permitir que as comunidades participem efetivamente
do processo decisório antes de todas as etapas relativas à medida a ser tomada; é livre porque agentes públicos ou privados não podem exercer quaisquer tipos de pressões para que as comunidades cheguem a uma posição ou definição; e é informada porque deve-se assegurar que as comunidades tenham acesso a todos os dados e estudos que se fizerem necessários para a formação de opinião e tomada de decisão.
A consulta prévia é, portanto, um processo com fases e procedimentos apropriados e não pode ser reduzida à mera escuta. Assegurar o cumprimento dos pressupostos anteriormente referidos é fundamental para sua plena realização e caracterização. Dado que a consulta tem por objetivo chegar a um acordo ou obter o consentimento em torno das propostas colocadas pelo Estado é essencial que obedeça a procedimentos guiados pelo princípio da boa-fé, ou seja, com comprovada honestidade e respeito em todas as relações e etapas do processo.
José Cruz/Agência Brasil
Vale repetir, a questão aqui é maior e mais complexa do que uma simples atividade de escuta, principalmente quando consideramos a diversidade de povos e comunidades tradicionais e a organização social, política e culturalmente singular de cada povo. Ou seja, é sempre um processo culturalmente situado. Nesse sentido, em alusão ao princípio da livre determinação presente na C169, muitos povos têm organizado seus próprios protocolos comunitários de consulta e consentimento para conduzir os diálogos com o Estado.
O artigo 7 da C169 assegura que essas comunidades possam decidir sobre suas prioridades durante a consulta. Esse dispositivo reforça o caráter diferenciado da consulta prévia e reafirma o dever de os governos assegurar que essas comunidades e povos tenham o direito de decidir sobre as suas vidas, destino e planejar o seu futuro. No parágrafo terceiro do referido artigo, a C169 determina que sempre que possível, sejam realizados estudos que possam avaliar o impacto social, econômico, espiritual, cultural e ambiental do objeto da consulta, o que permite determinar a continuidade ou não do acordo firmado anteriormente. Trata-se de espécie de cláusula de arrependimento que permite às comunidades revisar os termos e condições do acordo e configura o caráter permanente e flexível das consultas, adequando-as sempre à dinâmica cultural e social de cada comunidade.
Mais adiante, em seu artigo 16, ao retomar a questão da consulta prévia frente a projetos de desenvolvimento, a C169 veta a possibilidade de remanejamento de comunidades, e quando o excepciona, assegura que esses povos tenham o direito de retornar para suas áreas assim que cessarem as razões que motivaram o seu translado. Fica, portanto, evidenciado que o sentido ontológico da C169 é proteger essas comunidades e seus territórios em sua inteireza e plenitude, assegurando-se o direito ao consentimento prévio. Em outras palavras, as comunidades devem consentir ou não com a ideia de remanejamento de suas terras e território.
Ressalta-se que a obrigatoriedade de fazer a consulta prévia é tarefa indelegável e irrenunciável do Estado, ou seja, da administração pública, não podendo ser transferida para o empreendimento interessado na área em questão. Do mesmo modo, não se pode atribuir essa responsabilidade para órgão da administração pública com interesses diretos ou indiretos na matéria em discussão, salvo os casos quem este tenha competência institucional de proteger a comunidade interessada.
Gabriel Paiva/PT na Câmara
Finalmente, cabe ressaltar que apesar de ratificada em 2002, o Brasil ainda não registrou até o momento um único caso sequer de aplicação da C169 e do direito de consulta prévia. Perde-se com isso, a oportunidade de se consolidar como um país efetivamente democrático, uma vez que alija os povos e comunidades tradicionais dos espaços de decisões sobre suas vidas e seu destino. É o caso das mais de 300 famílias quilombolas de Alcântara que na década de 1980 foram removidas de seus territórios para a construção de um centro de lançamento de foguetes e satélites, hoje denominado Centro Espacial de Alcântara (CEA).
Como se não bastasse, em 2019, os quilombolas desta região tiveram novamente seu direito à consulta violado com a aprovação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre o Brasil e os EUA para a utilização do CEA. Além de muitos dispositivos que atentam contra a soberania nacional, por este texto o acesso ao mar por parte das comunidades passa a ser controlado pelas empresas que utilizam a base para lançamento e existe a ameaça de expansão do CLA sobre uma área hoje habitada por 2 mil pessoas. O governo brasileiro à época sob comando de Bolsonaro, não só desrespeitou o direito à consulta como planejou influenciá-la: requerimentos de Informação da bancada do PSOL na Câmara revelaram um plano publicitário para convencer a população local de que o acordo e a expansão da base eram positivos.
Este é apenas um exemplo que ressalta a necessidade de devido cuidado nesses processos, pois podem ser caracterizados pelo assédio das empresas e do próprio Estado. Se as comunidades não estiverem devidamente assessoradas e politicamente preparadas, são grandes as chances de se fazerem acordos ruins e profundamente prejudiciais. Não nos esqueçamos, o que está em jogo é o direito ao futuro e, portanto, a cautela aqui é também um princípio fundamental para as comunidades.
Trata-se de um jogo político perigoso, daí a importância de as comunidades lutarem por igualdades nas condições do debate proposto, para assegurar o direito às suas assessorias e, sobretudo, que tenham o tempo que for necessário para estudar, analisar e avaliar a proposta colocada à mesa. Além de uma obrigação do Estado, em meio ao agravamento da crise climática, a consulta prévia aos povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais figura como uma medida fundamental para a garantia do futuro de toda a humanidade.