Haroldo Saboia
A convenção nacional do PMDB, no domingo 4 de dezembro de 1983, impôs severa derrota aos autênticos, aos progressistas e ao próprio Ulysses Guimarães ao eleger, com apoio do então governador de Minas, Tancredo Neves, o senador biônico paranaense Afonso Camargo para o importante cargo de Secretário Geral.
Estava em jogo, então, a definição do PMDB, maior partido de oposição no Congresso, quanto à transição política em curso: aprovar as Diretas Já previstas pela Emenda Dante de Oliveira, participar do Colégio Eleitoral para “eleger” o sucessor do general Figueiredo ou, uma terceira hipótese, admitir um mandato-tampão em consenso com o Planalto.
Deputado estadual, participei dessa Convenção como Delegado do PMDB do Maranhão. Assisti ao plenário em ebulição, aplausos aos autênticos e vaias, muitas e ruidosas vaias, aos conservadores.
A própria presença de Tancredo Neves foi objeto de apupos, e seus partidários – mesmo os antigos autênticos como o pernambucano Fernando Lira praticamente impedidos de falar pelos militantes de esquerda (do PCdoB e de outras organizações) ainda abrigados no velho PMDB.
O clima ao final era desolador. O deputado baiano, Chico Pinto, afastado da Secretaria Geral, e Ulysses Guimarães, mantido na Presidência de uma Executiva e de um Diretório majoritariamente conservador.
No dia seguinte, segunda feira, ao final da manhã, fui à Presidência do PMDB encontrar com o antigo deputado maranhense Cid Carvalho, que fora colega de Câmara do Dr. Ulysses na década de 1950, cassado em 1968 com o AI-5, e de volta com a Anistia.
Pouca gente na Casa. Não havia sessões às segundas pela manhã. Movimento menor ainda no Gabinete do derrotado da véspera, o bravo anticandidato de 1974! Em seu gabinete, um único deputado àquela hora. Logo ao chegar, mal o cumprimentei, Dr. Ulysses se dirigiu ao Cid e disse: Convide o Saboia para almoçar conosco. Vamos ao Anexo IV.
Não apenas “navegar era preciso” como tanto gostava de repetir era preciso também dar uma demonstração de altivez, de força, mostrar que a derrota não o abatera.
Acompanhei, então, os dois deputados pessedistas dos anos 1950, que atravessaram os longos corredores do Salão Verde e do Anexo II até o restaurante do Anexo IV. No trajeto poucos parlamentares e jornalistas, e muitos funcionários surpresos com aquela presença tão inusitada.
Para as ruas!
À mesa, o até então taciturno Ulysses Guimarães se transformou: É Dr. Cid, temos que ir para as ruas! Teremos diretas só se ganharmos as ruas!
Era quase unanimidade entre os analistas políticos naquele momento de transição que, vitoriosa a Emenda Dante de Oliveira e restabelecidas as eleições diretas para Presidente da República, o nome escolhido seria o do Dr. Ulysses. Mantido o Colégio Eleitoral, emergiria com força o nome de Tancredo Neves, com bem mais trânsito juntos às lideranças do PDS que sucedeu a Arena, partido do “sim, senhor” dos anos de chumbo da ditadura.
Levar a luta pelas Diretas Já dos debates institucionais para os movimentos populares e sociais, do Congresso para as praças públicas, eis o grande desafio que se colocava ao Dr. Ulysses.
E ele bem o sabia. Praticamente um mês depois, em 12 de janeiro de 1984, o primeiro grande comício das Diretas, em Curitiba, reunia mais de 50 mil pessoas. Fora convocado pelo governador José Richa instado pelo Dr. Ulysses. No 27 de novembro anterior, um comício convocado pelo PT (os outros partidos foram convidados apenas dois dias antes e suas principais lideranças mandaram apenas representantes) e por setores da Igreja Católica mal reuniu 15 mil pessoas no Pacaembu.
A Frente pelas diretas
Em 25 de janeiro, quando os próprios organizadores esperavam 100 mil pessoas, São Paulo no dia dos seus 430 anos de fundação – surpreendeu: mais de 300 mil pessoas lotaram a Praça da Sé! (Saí do meu Maranhão para assistir de corpo presente esse momento de nossa História).
Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, José Richa, Mario Covas, Lula, centenas de artistas e lideranças sindicais. Tancredo Neves, que esteve em Curitiba, não compareceu. Estava formada uma grande frente popular pelas Diretas Já! Da disputa institucional, a campanha ganhou as ruas fortalecida pela adesão dos movimentos sociais, sindicais e populares!
Daí para a frente todos sabemos. Duas tiras uma verde, outra amarela – pintadas como displicentes pichações, coloriram o Brasil inteiro… A campanha pelas Diretas Já tomou conta do país, mas não arrefeceu a disputa pela hegemonia do processo de transição em curso. No mesmo palanque, às vezes até mesmo com discursos mais inflamados, defensores da ida ao Colégio Eleitoral e da conversão conservadora do regime disputavam espaço com os setores mais combativos, as forças de esquerda que lideravam a oposição popular à ditadura militar
Similitudes ontem e hoje
Por ironia da História, tudo indica haver alguma similitude entre a campanha das Diretas, de ontem, e o Fora Bolsonaro, de hoje.
Ontem, tratava-se de pôr fim a duas décadas de um cruel regime que censurou, que reprimiu, que prendeu, que torturou, que matou… implantando um verdadeiro terrorismo de Estado em nosso país.
Hoje, trata-se de defender o Estado de Direito Democrático instaurado com a Constituição de 1988 com todas as debilidades, que conhecemos e impedir que o Brasil resvale para uma abjeta ditadura, militar-miliciana, sob a liderança protofascista de Jair Bolsonaro.
Ontem, setores oposicionistas se dividiam entre aqueles que queriam eleições imediatas, diretas verdadeiramente já, e outros que admitiam a transição lenta, com a ida ao Colégio Eleitoral.
Hoje, temos certos setores que lutam pelo Fora Bolsonaro (impeachement já) por entenderem que a depender da conjuntura – Bolsonaro pode ganhar tempo tanto para a disputa eleitoral em 2022 como para desfechar o tão almejado (e até mesmo propalado pelos apoiadores) golpe policial-militar.
Por outro lado, observamos outros setores que, embora acompanhem o coro do Fora Bolsonaro, não se empenham, de fato, na campanha pelo impeachement já por apostarem que o enfraquecimento de Bolsonaro é inexorável e que é preferível esperar deitados no berço esplêndido das pesquisas – para derrotá-lo nas eleições presidenciais de 2022.
Ontem, a luta pelas Diretas Já saiu do Congresso para as ruas.
Hoje, ao contrário, a luta está partindo das ruas e praças do País e acumulando forças apesar das dificuldades impostas pela pandemia para chegar ao Congresso e viabilizar o impeachment já.
Grito de partida
A Frente Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular, centrais sindicais, partidos políticos, movimentos sociais e populares e entidades da sociedade civil deram o grito de partida e foram às ruas, cada vez mais numerosos, nos quatro cantos do Brasil em 29 de maio,19 de junho, 3 e 24 de julho. Perceberam, como lembrou Guilherme Boulos, que “quando um governo é mais letal do que o vírus, é inevitável a necessidade de saímos para o enfrentamento”.
Manifestações populares em centenas de cidades brasileiras; um mega pedido de impeachment de Bolsonaro, que reuniu mais de cem denúncias apresentadas à Câmara dos Deputados (23 crimes previstos em lei), entregue em 30 de junho e assinado por mais de uma dezena de partidos, de organizações de categorias profissionais, um sem-número de renomados juristas; um manifesto com centenas de economistas, empresários, banqueiros e intelectuais liberais revelam o crescente isolamento político e social de Jair Bolsonaro e seu governo.
Lembremos que a PEC do voto impresso na Câmara Federal esteve longe de conquistar os 308 votos necessários para a aprovação em primeiro turno, o que representou a maior derrota do governo Bolsonaro no Congresso até o momento. Fato que pode vir a confirmar a sempre lembrada assertiva de que “o Centrão nunca se vende, sempre se aluga”!
Como dizia Dr. Ulysses, “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”. Não podemos descartar a hipótese das manifestações populares, convocadas pelas organizações do fora Bolsonaro, alcancem a amplitude e a dimensão necessárias para impor ao Legislativo a suspensão das funções presidenciais do atual presidente.
Se ontem a não aprovação da emenda Dante de Oliveira contribuiu para que fosse configurado um caráter conservador à transição política (ida ao Colégio Eleitoral, Assembleia Constituinte não exclusiva e com a participação dos senadores biônicos de 1978); nos dias de hoje, o não afastamento imediato de Bolsonaro poderá levar o país, em 2022, a um quadro de esgarçamento social, político e institucional com desfecho imprevisível.
Fora Bolsonaro! Impeachment já!