Fernando Cássio
O exercício especulativo que gerou este texto começou na noite do dia 4 de maio de 2019, em um evento na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco: o aniversário de 201 anos de Karl Marx comemorado, na verdade, no dia seguinte. A editora Boitempo, organizadora da atividade, contou um número acima de duas mil pessoas na festa, ainda maior do que na comemoração dos 200 anos. Na efeméride do bicentenário, disseram-me, o bolo que sobrou serviu de lanche na editora durante alguns dias. O bolo dos 201 anos era um pouco menor. Mas sobrou gente e faltou bolo.
Havia pessoas sentadas no chão entre as cadeiras da área externa, dentro da Fundação, na rua, por toda parte. No começo da noite, já não era possível comprar na banca da editora títulos tão específicos quanto Ideologia e propaganda na educação, trabalho de Nurit Peled-Elhanan sobre as representações da Palestina nos livros didáticos israelenses.
Enorme público
Alguns disseram que o enorme público do ducentésimo primeiro aniversário de Marx tinha a ver com a presença de um grupo de youtubers de esquerda: Sabrina Fernandes (Tese Onze), Larissa Coutinho (Revolushow), Humberto Matos (Saia da Matrix) e Jones Manoel. É provável que sim, mas também é verdade que a própria existência desses canais no YouTube feitos por gente jovem e leitora de Marx sinaliza a vitalidade das ideias do mouro. Recorro ao Google Trends para buscar indícios da vitalidade de Marx para além da observação empírica singular de uma festa de aniversário lotada. Restringindo o período de consulta a 1º de janeiro de 2016, quando a Google refinou a metodologia de contagem de buscas, vemos um padrão oscilante na Figura 1.
O pico mais alto dessa série de medições1 se dá na semana seguinte ao bicentenário de Marx (6-12 mai. 2018), o que não significa muita coisa, já que muitos picos chegam perto de 100. No mais, observa-se um padrão de oscilação semelhante ao das buscas por termos como “Max Weber” ou “Platão”. Nos meses de dezembro-janeiro e julho períodos de férias nas universidades e escolas a frequência de buscas no Google diminui.
A estatística da busca por imagens revela, além de um pico na semana do bicentenário do mouro (escala 100), outro na semana de 7-13 de outubro de 2018 (escala 93), imediatamente após o primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil. É provável que a fábula do “marxismo cultural”, insuflada pela malta reacionária que circunda o presidente eleito, tenha gerado nas pessoas a curiosidade de conhecer o rosto daquele barbudo alemão do século XIX com ideias tão más. De toda forma, o padrão de oscilação das buscas gerais em fase com recessos acadêmicos e férias escolares indica que Marx é tão lido quanto sempre foi nas salas de aula do Brasil. Ou, se não é propriamente lido, é tão buscado quanto sempre foi nos períodos letivos das escolas e universidades. Tudo leva a crer que é esse padrão de oscilação que caracteriza a estabilidade de um autor como leitura em cursos de formação e popularidade a longo prazo.
Ideias apedrejadas
Outro pensador cujas ideias têm sido apedrejadas em praça pública pela direita brasileira é Paulo Freire. Assim como a festa de arromba na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco me deu a impressão de que Marx está mais vivo do que nunca ou, no mínimo, tão vivo quanto nunca diversas situações têm me mostrado que algo semelhante deve se passar com FreireTanto na Universidade Federal do ABC, onde trabalho, quanto em outras instituições de ensino superior, vejo colegas incorporando ideias freireanas em trabalhos de pesquisa. Colegas que até então passavam longe dos textos e livros do educador. Disciplinas optativas sobre a obra de Freire pipocam em cursos de graduação e pós- -graduação Brasil afora, bem como projetos de extensão voltados à formação continuada de professores da educação básica focalizados nas obras de Freire. Alunos da graduação têm demandado leituras do educador em disciplinas nas quais ele nunca fora lido. Também na educação básica, tenho ouvido de colegas professores que estudantes do Ensino Médio perguntam cada vez mais quem foi Paulo Freire e por que razão as ideias dele são tão perigosas.
As tendências de busca por “Paulo Freire” no Google também exibem um padrão de oscilação, embora menos definido que o padrão de buscas por “Karl Marx”. Os maiores picos de interesse aparecem em 1-7 mai. 2016, quando repercutiram no Brasil levantamentos que apontavam Freire como um dos pensadores mais citados no mundo; entre outubro e dezembro de 2017, quando uma militante de extrema direita conseguiu reunir 20 mil assinaturas em torno de uma proposição legislativa para revogar a outorga do título de “Patrono da Educação Brasileira” a Freire (a proposição foi rejeitada no final de 2017); nas semanas de 14-20 out. 2018 e 4-10 nov. 2018, durante o período eleitoral; e a partir de abril de 2019, com tendência ascendente no mês de maio corrente (Figura 2).
Nas buscas por imagens de Paulo Freire, um pico se destaca na semana de 14-20 out. 2018, indiciando o súbito aumento da vontade de ver o rosto desse outro barbudo, um brasileiro do século XX com ideias perniciosas sobre a educação e as escolas. É assim, aliás, que alguns apoiadores do movimento reacionário “Escola Sem Partido”, que prega a censura e a intimidação de professores nas escolas, definem Freire: um homem de “ideias perniciosas”.
Pouco lido
Embora a ultradireita diga o contrário, e embora a relevância internacional da obra de Freire seja enorme, ele é relativamente pouco lido nas universidades brasileiras, certamente menos do que Marx. De fato, apesar do padrão de buscas do Google em fase com os recessos acadêmicos, Paulo Freire sempre foi menos buscado do que Marx. Isso talvez se explique pelo maior alcance das ideias marxianas nas humanidades história, sociologia, economia, política do que as freireanas, provavelmente mais restritas aos estudos da educação e áreas correlatas. Estou, obviamente, chutando uma interpretação. A partir de meados de 2018, entretanto, isso parece ter começado a mudar, e o padrão de buscas de Freire e Marx começa a coincidir não apenas na forma oscilante, mas também na frequência das pesquisas (a altura dos picos, Figura 3).
Comparemos agora os padrões de busca para Freire, Marx e um terceiro “pensador”: Olavo de Carvalho. Considerando-se apenas a popularidade instantânea dos autores (a altura dos picos no tempo recente), Carvalho é hoje mais buscado no Google Brasil do que Freire e Marx. Mas o padrão das buscas, ao contrário de Marx, Weber, Platão e agora Freire não oscila em fase com recessos universitários e férias escolares. Para avaliar que tipo de popularidade é essa, podemos comparar, em vez das buscas diretas pelos nomes dos autores, as buscas por seus livros mais famosos (Figura 4).
Aqui se vê, finalmente, que as buscas no Google por Paulo Freire têm não apenas seguido o padrão oscilante que caracteriza autores cuja obra é lida regularmente (como Marx), mas que a popularidade do educador a partir das buscas dos livros dele está definitivamente aumentando.
Os livros de Carvalho, por seu turno, suscitaram um interesse maior no segundo semestre de 2018, mas as buscas já parecem retornar à linha base, em comparação com o padrão de oscilação estável de buscas dos livros de Freire e Marx, a popularidade a longo prazo. Além do interesse recente nos escritos de Carvalho, observou-se um pico de interesse na semana de 5-11 fev. de 2017, quando se anunciou na imprensa a reedição do livro O imbecil coletivo pela editora Record. Embora o aumento da popularidade de Paulo Freire tenha sido alavancado pela mesma exposição midiática que alavancou a de Olavo de Carvalho, os efeitos disso a longo prazo parecem ser diferentes para um e outro.
Olavo a jato
Entre as consultas relacionadas ao termo “Olavo de Carvalho”, informa o Google Trends, estão termos como “olavo [de carvalho] terra plana”, “ministro da educação”, “brasil paralelo”, “olavo de carvalho donald trump”. Já entre as consultas relacionadas ao termo “Paulo Freire”, encontramos “paulo freire bolsonaro”, “escola sem partido”, “ideologia [de] paulo freire”. Entre os assuntos relacionados a “Paulo Freire”, estão “Escola sem Partido”, “Comunismo”, “Ideologia” e… “Olavo de Carvalho”. É sabido que tanto aqueles que atacam Paulo Freire quanto os que atacam Olavo de Carvalho estimulam o engajamento virtual e o aumento do interesse por conhecer (e eventualmente ler) ambos os autores. Porém, o efeito dessa curiosidade se manifesta de formas diferentes pelo menos segundo o que se vê nas tendências do Google: Freire (e seus livros) exibem um padrão de buscas semelhante ao de Marx, enquanto Carvalho suscita uma explosão de buscas sazonais, mas, ao que tudo indica, evanescente.
O que é fascismo? Essa foi a pergunta mais feita nos campos de busca do Google em 2018 no Brasil (categoria “o que é?”). Entre as buscas gerais, o assunto “copa do mundo” dominou os campos de pesquisa. Não há muito para ler sobre a metodologia de coleta e de cálculo do Google Trends, mas uma profusão de textos de vários países tenta cotejar as tendências de busca do Google com este ou aquele acontecimento, com esta ou aquela conjuntura política. Ainda que uma análise baseada nessa ferramenta seja necessariamente limitada, tenho a impressão de que ela corrobora o aumento do interesse das pessoas pela obra de Paulo Freire que tenho observado em minha vida offline.
Adoração e achincalhe
Os adoradores de Olavo de Carvalho são os mesmos que cotidianamente achincalham as ideias de Marx e Freire, e que apesar disso continuam atraindo leitores e formando pessoas no Brasil. Dois barbudos que já foram intelectualmente desafiados incontáveis vezes ao longo do tempo, mas que continuam tendo algo a dizer sobre o mundo.
A primeira conclusão a que chego é que, do ponto de vista da popularidade e do engajamento, Freire está sendo mais ajudado pela direita do que Olavo de Carvalho pela esquerda, ao passo que Marx parece intocado. Enquanto Freire é cada vez mais lido (e não apenas nas instituições educacionais), Carvalho é cada vez mais tratado como um velho tarado, produtor de escatologias inclusive por setores da direita e do reacionarismo militar. Daí advém a segunda conclusão: algumas ideias são definitivamente mais arrojadas do que outras, e não há nada que os linchadores de Paulo Freire e Karl Marx possam fazer a respeito. Além, é claro, de parar de falar mal de livros e autores que não leram. Ou de os lerem de uma vez por todas.