Juliano Medeiros
Vitor Lucena
O veterano senador Bernie Sanders, précandidato democrata à Casa Branca, tornouse a grande novidade da política nos Estados Unidos desde o movimento Ocuppy. Não apenas por declarar-se socialista ou destilar um profundo ódio contra o sistema financeiro, mas por ter dado corpo, dentro de um sistema político extremamente viciado, a um programa que representa a indignação de milhões de estadunidenses especialmente jovens e imigrantes com a completa derrocada do “sonho americano” de prosperidade e ascensão social pelo trabalho.
Em sua campanha, Bernie Sanders denuncia os efeitos nocivos da liberdade de que gozam os monopólios e o mercado financeiro nos Estados Unidos. A rigor, nem parece um candidato do Partido Democrata, que com seu homônimo republicano co-patrocinou desde sempre a farra dos bancos em Wall Street e foi o responsável pelo resgate de mais de U$ 700 bilhões no auge da crise econômica que explodiu em 2009. Diante dos privilégios do sistema financeiro, Sanders é taxativo: se um banco é muito grande para falir, então é muito grande para existir. Para ele, essas instituições adquiriram muito poder econômico e político, colocando em perigo a economia e o processo político estadunidense. Sanders defende que o governo atue para “fracionar” esses grandes monopólios. Esse é um exemplo das saídas que o senador democrata tem apresentado em sua campanha pela indicação de seu partido. Mas antes de levá-las como propostas à eleição presidencial, Sanders terá de derrotar uma adversária de peso: Hillary Clinton, Secretária de Estado de Obama durante seu primeiro governo, ex-senadora, e uma política fortemente ligada às grandes corporações, que certamente não querem um candidato que se reivindica socialista ocupando a Casa Branca. Para isso, o senador democrata se apoia num amplo movimento que tem como principal protagonista uma parcela da juventude que se frustrou com os limites dos governos de Barack Obama e já não confia nos velhos políticos algo curioso, considerando que Sanders é um septuagenário.
O programa de Sanders é bastante radical. Enquanto governos de todas as colorações compartilham com os trabalhadores os prejuízos da crise econômica, Sanders propõe a ampliação dos direitos e mais mecanismos de regulação sobre o mercado. Por isso, sua vitória nas primárias do Partido Democrata e, quem sabe, nas eleições presidenciais, poderia significar uma enorme reviravolta naquela que é a maior economia e a principal potência militar do planeta.
Nada garante, é claro, que Sanders não esteja vendendo “gato por lebre”. Quando Obama derrotou a mesma Hillary Clinton em sua primeira eleição, também teceu duras críticas ao poder dos monopólios e do capital financeiro para, logo em seguida, injetar bilhões para salvá-los da bancarrota. Não parece ser o caso de Sanders, que se reivindica um socialista muito antes de se tornar o fenômeno em que se converteu.
As propostas de Sanders
Mas quais são as propostas de Sanders e por que elas são consideradas tão radicais? E o que aconteceria, no mundo e no Brasil, se algumas de suas propostas fossem colocadas em prática na maior potência imperialista do planeta? Seu programa se estrutura em oito eixos temáticos, destinados a defender as seguintes posições:
- a) salário mínimo digno;
- b) geração de empregos que paguem decentemente;
- c) equidade dos direitos LGBT;
- d) reforma do sistema financeiro;
- e) mudança na política migratória;
- f) luta contra as mudanças climáticas e defesa do meio ambiente;
- g) fim do poder econômico na política;
- h) fortalecimento do sistema de proteção social aos trabalhadores e trabalhadoras.
Vejamos quais suas as propostas em cada um desses eixos:
a) Salário Digno: segundo Bernie Sanders, os Estados Unidos contam com um dos níveis de renda e bem-estar social mais desiguais do planeta. Atualmente, 10% dos ricos do país possuem quase a mesma renda que os 90% restante da população. Para o senador democrata, milhares de estadunidenses trabalham para receber um salário insuficiente, ou como diz, “um salário de inanição” que deveria ser elevado a U$ 15 por hora (hoje não passa de U$ 10/hora). Além disso, o senador defende a total equiparação salarial entre homens e mulheres e o direito à livre organização sindical, como forma de garantir a defesa dos direitos trabalhistas;
b) Geração de empregos: segundo a campanha de Sanders, a verdadeira taxa de desemprego é muito maior que aquela anunciada pelas estatísticas oficiais. Ele destaca que entre os jovens afro-americanos, a taxa de desemprego chega aos 50%. Para gerar empregos, Sanders propõe uma saída tipicamente keynesiana: desenvolver um grande plano de modernização da infraestrutura para criar 13 milhões de novos postos de trabalho. Além disso, Sanders tem se posicionado frontalmente contra os tratados de livre-comércio como o NAFTA, TPP e até a normalização de relações comerciais com a China. Ele não diz, porém, se revogará esses tratados.
c) Equidade dos direitos LGBT: Sanders afirma que assinará a Lei da Igualdade, a lei por uma Família para Cada Criança e todos os projetos que proíbam a discriminação contra a comunidade LGBT. Em relação à segurança pública, Sanders afirma que trabalhará para que as forças policiais utilizem intervenções mais justas junto às pessoas transgênero, especialmente no caso de mulheres transgênero, vítimas recorrentes da violência policial. No plano econômico, Sanders se compromete a proibir a discriminação contra as pessoas LGBT por parte de credores e bancos para que estas pessoas não sejam proibidas de acessar hipotecas, linhas de crédito, ou empréstimos estudantis. O mais importante, porém, é a decisão de Sanders de vetar qualquer legislação que pretenda “proteger” a liberdade religiosa às custas de outros direitos, como os da comunidade LGBT, enfrentando frontalmente as religiões mais conservadoras dos EUA.
d) Reforma do sistema financeiro: aqui está a mais ousada das propostas de Bernie Sanders: aprovar uma legislação antimonopolista que proíba a existência de megacorporações financeiras como as de Wall Street, fragmentando os grandes bancos e proibindo o acesso dessas instituições às facilidades de descontos e uso de depósitos assegurados às suas arriscadas atividades econômicas. Além disso, Sanders defende a criação de um imposto sobre transações financeiras “que diminuiria a incidência arriscada contraproducente das negociações de alta velocidade e outras formas de especulação financeira”. Os recursos oriundos deste imposto seriam destinados a programas de educação superior gratuita. Sanders ainda defende um projeto para pôr fim às práticas de Wall Street de pagar grandes incentivos a executivos bancários que assumam postos de alto nível no governo. Para os mais pobres, Sanders defende um limite máximo de 15% de juros sobre os cartões de crédito (que no Brasil, podem chegar a quase 400%). Por fim, a reforma do sistema financeiro do pré-candidato democrata inclui uma auditoria no Federal Reserve (FED) o Banco Central dos EUA para verificar os recursos utilizados no resgate dos bancos no auge da crise em 2009.
e) Mudança na política migratória: muitos dos avanços anunciados por Obama ou nunca saíram do papel ou foram questionados pela Suprema Corte em ações movidas pelo Partido Republicano. As propostas de Sanders, ainda mais radicais, buscam promover uma política migratória “justa e compassiva”. Sua plataforma prevê medidas que favoreçam a integração dos imigrantes, desmantelando os programas desumanos de deportação e os centros privados de detenção. Além disso, Sanders promete proteger as comunidades de fronteira, utilizando meios para unir famílias destruídas por deportações arbitrárias, com o retorno de membros considerados ilegais. Sanders propõe ainda a reestruturação do sistema econômico para garantir vistos de permanência e a extensão da cobertura médica aos imigrantes de baixa renda (o chamado “Obamacare”).
f) Luta contra as mudanças climáticas e defesa do meio ambiente: visivelmente, um dos pontos mais frágeis da plataforma de Sanders. Para lutar contra o aquecimento global, o pré-candidato democrata defende a transformação da matriz energética dos Estados Unidos, diminuindo a dependência dos combustíveis fósseis. Seu programa utiliza jargões da chamada economia verde, como “eficiência energética” e “sustentabilidade”. Sanders defende uma maior utilização da energia eólica e solar, bem como a criação de um imposto para onerar as emissões de carbono e metano. Porém, não indica se e como essas mudanças compensarão o atual volume de utilização energética do país.
g) Fim do poder econômico na política: o pré-candidato democrata é taxativo sobre o tema: “a liberdade não significa que se possa comprar o governo dos Estados Unidos”. Ele denuncia como as companhias petroleiras, os fabricantes de produtos farmacêuticos, os banqueiros de Wall Street e outros interesses econômicos poderosos têm “investido” no sistema político estadunidense durante anos. Como primeira medida, Sanders propõe uma emenda constitucional que anule a decisão da Suprema Corte de 2010 que passou a considerar as grandes corporações como possuidoras dos mesmos direitos dos cidadãos comuns. Propõe ainda uma lei de transparência para demonstrar a quantidade de recursos privados presentes na política dos Estados Unidos. Além de sua própria campanha não receber nenhum centavo das grandes corporações.
h) Fortalecimento do sistema de proteção social aos trabalhadores e trabalhadoras: os dados apresentados por Bernie Sanders revelam a verdadeira face do “sonho americano”: entre 22 nações ricas, a única que não garante nenhum tipo de licença remunerada por doença e que não proporciona pensão para pessoas em tratamento contra o câncer. Além disso, é a única economia avançada e uma das únicas nações em todo o mundo que não garante férias remuneradas. Para reverter essa situação, Sanders propõe aprovar o “Family Act”, que garante para cada empregado doze semanas de ausência para questões familiares e médicas por ano. Este programa seria financiado através de um programa de seguros, parecido com a Seguridade Social brasileira. Os trabalhadores pagariam por ele com um custo equivalente a uma xícara de café por semana. Seria uma espécie de FGTS. Além disso, Sanders defende que os empregadores assegurem pelo menos 10 dias de férias remuneradas por ano, já que esse benefício não existe nos Estados Unidos O pré-candidato democrata defende ainda a criação de uma legislação que garanta ao menos sete dias de licença saúde a todos os empregados estadunidenses.
Impactos da eleição de Sanders na América Latina e no Brasil
Sanders não menciona a América Latina e muito menos do Brasil em seu resumido programa. Apesar de se manifestar sobre os migrantes latinos que estão nos Estados Unidos, não se debruça sobre as consequências das mudanças que propõe e seus efeitos no reequilíbrio das relações internacionais, seja em relação aos inimigos que os Estados Unidos “elegeram” nas últimas décadas, seja em relação aos países que sofrem influência direta da política e da economia estadunidense.
O avanço do pré-candidato nas pesquisas de intenção de voto, porém, atiçou apoios e críticas de várias ordens. Particularmente quanto à contundência de seu programa econômico para os parâmetros do que é a economia estadunidense, intelectuais e for madores de opinião trataram de produzir cenários quanto às possibilidades de sucesso ou fracasso de suas propostas.
Duas manifestações explicitam a polarização entre as impressões que Sanders tem causado. Uma primeira que ganhou as redes foi do economista e professor da University of Massachussetts at Amherst, Gerald “Jerry” Friedman. Em seu trabalho, Jerry defende que a combinação entre taxação dos mais ricos, investimentos públicos em infraestrutura e gastos sociais, e melhoria nas condições de trabalho gerariam um ciclo virtuoso de redução do desemprego, evolução do consumo dos mais pobres, crescimento acelerado, redução das desigualdades, da pobreza e do déficit público. Compara o programa de Sanders ao New Deal e deduz que ele enfrentaria dificuldades principalmente políticas, além de entraves como o fim do momento expansionista e aumento das taxas de juros do FED. Mas, uma vez bem sucedido, levaria o país a taxas de crescimento nunca antes vistas. Por outro lado, veio rapidamente uma carta2 de quatro ex-conselheiros do Conselho de Assuntos Econômicos, envolvendo assessores dos últimos governos democratas (Bill Clinton e Barack Obama), afirmando que as projeções não se baseiam em “evidências econômicas”, sem dizer ao certo quais seriam. O debate pelas redes e revistas especializadas continua. Certo ou errado, demonstra que a surpreendente competitividade de Sanders na disputa fez com que suas propostas comecem a ser debatidas, e de alguma forma levadas a sério, pelo próprio establishment.
Partindo do pressuposto de que as perspectivas mais otimistas estejam corretas e que ao menos parcialmente vinguem as pretensões de Sanders na retomada do crescimento e do emprego, uma questão se abre: até que ponto o fortalecimento do capitalismo via Estado nos Estados Unidos favorece, do ponto de vista econômico e geopolítico, os países periféricos sob hegemonia estadunidense, especialmente os países latino-americanos, e particularmente o Brasil? Quais os efeitos particulares na renda mais baixa, na distribuição de rendas e recursos públicos, no crescimento e no emprego nacionais? E qual seria o poder do dólar frente às moedas mais frágeis, e seus efeitos na inflação e nos juros delas?
Segundo o Itamaraty, os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do Brasil, com fluxo de mais de U$ 60 bilhões em 2014, e o maior investidor estrangeiro, com estoque de aproximadamente U$ 115 bilhões.
Por isso, qualquer mudança no ritmo do crescimento da renda estadunidense influencia a economia brasileira. Se o produto estadunidense crescesse no ritmo necessário para gerar os empregos que Sanders promete, haveria alguma chance desse fluxo aumentar, pegando carona nos estímulos estatais à economia estadunidense. Ainda assim, se confirmada a tendência que o Brasil assumiu nos últimos anos de reprimarização da sua economia, poderia significar um aumento da dependência econômica e tecnológica em relação a eles.
Os efeitos das eleições de um candidato à esquerda nos Estados Unidos e um programa de estímulos à economia e redução da pobreza podem produzir efeitos, portanto, contraditórios em relação aos países periféricos, particularmente se mantida a tendência de subserviência econômica, financeira, tecnológica e política. No capitalismo, os efeitos das crises são rapidamente socializados com os países pobres. O desenvolvimento do centro, a estabilidade, o crescimento da renda, só atingem os países na órbita das potências de maneira colateral.
Não se descarta, e talvez seja algo a se esperar, que medidas progressistas praticadas pelos países centrais, de estímulo fiscal, controle e aumento da tributação de capitais, impliquem numa mudança de todo paradigma regulatório da economia capitalista. Caberia ao Brasil ter tanta ousadia quanto o pré-candidato Bernie Sanders na formulação de sua política econômica e de redução das desigualdades. Hoje, a mentalidade do ajuste fiscal, da “retomada da confiança” dos empresários, encontra questionamento até nos países mais ricos. Sanders é o maior exemplo disso.
Para os brasileiros, interessa acompanhar o desenrolar das primárias, sobretudo se Bernie Sanders avançar para uma nomeação e disputa das eleições contra os Republicanos. Tanto por essas influências diretas na renda e na moeda nacional que podem advir daí, quanto porque um novo movimento de revisão das políticas de desenvolvimento, fiscais e de controle de capitais pode surgir. Ainda que não tenha força para avançar, a candidatura de Sanders demonstra que a liberalidade da economia encontra críticos e entusiastas da mudança em parcela significativa do povo da maior economia capitalista do mundo.
Juliano Medeiros é historiador, Presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.
Vitor Lucena é agente da fiscalização financeira do TCESP, mestrando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP e militante do PSOL.