Luiz Araújo
Passados os primeiros meses de gestão e convivendo já com o segundo titular da pasta, muito se fala que o Ministério da Educação é um barco sem rumo. Em termos administrativos, estritamente de gestão, tal argumento pode ter alguma validade. Nenhum planejamento foi realizado e não foram expostas diretrizes consistentes, com exceção de um power point com ideias genéricas por Ricardo Vélez, o breve. Contudo, tais fatos exibem apenas a superfície do problema.
O governo Bolsonaro escolheu algumas áreas em que poderia travar a batalha ideológica contra o “marxismo cultural” e a influência “nefasta” dos comunistas nos costumes, fenômenos que colocariam em risco a integridade da família brasileira. O chefe do Executivo definiu o eixo do discurso, juntamente com a adoção de um sentimento antipolítico e promessas fáceis, porém ineficazes para se combater a violência. É errado exigir dele um programa econômico para tirar o país de uma das piores crises de sua história, propostas para gerar emprego e renda ou quaisquer outros desafios reais e prioritários para o cotidiano de milhões de brasileiros.
Segundo maior orçamento
O Ministério da Educação representa o segundo maior orçamento da Esplanada e estabelece programas educacionais que chegam até escolas de todos os municípios brasileiros. Ele poderia ter sido importante moeda de troca para compor uma base de sustentação no Congresso. Tanto na escolha de Ricardo Veléz, quanto na substituição por Abraham Weintraub, o que contou na escolha presidencial foi garantir que o ministro tivesse disposição para travar a guerra ideológica no “espaço do inimigo”, ou seja, que tivesse coragem para enfrentar a esquerda no que julga ser seu próprio terreno.
A guerra ideológica empreendida pelo MEC teve vários capítulos, nenhum deles com efetividade para além da propaganda e para manter o tema em evidência nas redes sociais. A gestão dos dois ministros contempla a tentativa de se obrigar alunos a entoarem cotidianamente o hino nacional até o anúncio de que seriam cortadas verbas dos cursos de sociologia e filosofia, em que pese os absurdos que tais posturas carregam. Se entrássemos nas lógicas dos responsáveis pelo MEC, tais iniciativas seriam inócuas para os propósitos anunciados. Elas não possuem a propriedade de deter qualquer suposta propaganda comunista ou coisa do gênero, mas conseguem manter viva a imagem de que o governo tem a determinação de combater os inimigos que sensibilizam a base social mais ativa.
“Fora Paulo Freire”!
É verdade que o presidente declarou apoio ao projeto apresentado por uma deputada do PSL visando retirar o título de patrono da educação concedido a Paulo Freire, mas o dispositivo ainda terá longa tramitação congressual. Caso venha a ser aprovado, isso por si só não diminuirá a curto prazo o prestígio e a importância pedagógica de Freire nos currículos e nas pesquisas educacionais.
Já o estimulo à vigilância e à perseguição de professores em sala de aula, sempre disseminada pelo presidente, têm o poder de empoderar pais e alunos conservadores e intimidar profissionais mais críticos, podendo ter repercussão concreta na forma como determinados assuntos são tratados em aula. Além disso, pode-se criar uma onda de restrição a debates críticos, diminuindo a importância das escolas e universidades como espaço de reflexões amplas e, por vezes, contrárias a este ou aquele governo.
Das propostas destinadas a combater as ideias progressistas, a mais efetiva respaldada pelo MEC, especialmente na gestão de Veléz, é a de incentivar a militarização de escolas públicas. Essa ideia não começou neste governo, mas tem crescido muito após a vitória. Essa sim é uma iniciativa que cria um formato educacional que coíbe a livre manifestação da comunidade, afora os problemas pedagógicos inerentes a esse processo. Mesmo que no atual momento o MEC pouco ou nada tenha de destinação de recursos para apoiar o ente federado a ser conquistado para a proposta, essa linha é eficaz no combate ao inimigo real do conservadorismo: atacar o livre pensar e a liberdade de organização.
Mas, e para além de combater moinhos de vento da ideologia marxista, o que esperar do MEC no governo Bolsonaro? Apesar da instabilidade dos primeiros meses (dois ministros, várias trocas de chefias e guerra entre militares e olavistas) podemos afirmar que alguns indícios já se apresentam e devem estar presentes nos debates dos setores que defendem a educação pública em nosso país.
Austeridade fiscal e mental
O primeiro indício é de que, ao contrário da experiência de outros governos, inclusive conservadores, temos um Ministério afinado com a política de austeridade fiscal, ou seja, não há resistência, mesmo que simbólica, do órgão diante de sucessivas restrições orçamentárias. A postura diante de dois cortes violentos (R$ 5,8 bilhões e R$ 1,7 bilhão) é singular. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia que gerencia os principais programas para a educação básica, de alta sensibilidade na relação com governadores e prefeitos, sofreu corte de 47% e nenhum comentário foi ouvido por parte do comando do MEC, para ficar apenas em um exemplo.
O segundo indício é de que podemos estar vivenciando a famosa junção do útil com o agradável: um ministro que enxerga nas universidades um antro de comunistas apresenta como solução do “problema” cortes cruéis na manutenção dessas instituições. Desde que a crise econômica se agravou e especialmente após a aprovação da Emenda Constitucional 95 definidora do teto de gastos por vinte anos -, o custeio e os investimentos das universidades e dos institutos federais sofrem reduções ano a ano, tanto na peça orçamentária quanto na execução efetiva. Isso tem aumentado a precariedade dos serviços de manutenção e prejudicando atividades de pesquisa e extensão. Neste ano, com a complacência do comando do órgão, o MEC tem “colaborado” de forma generosa com a aplicação dos cortes.
Lobby privatista
O terceiro indício, pouco explorado até o momento nos discursos e nas matérias sobre o que acontece no MEC, é o velho e azeitado lobby privatista. Este encontrou um terreno fértil para proliferar com mais desenvoltura. Não é coincidência que, no meio da crise administrativa que marcou os 100 dias de Veléz Rodrigues no comando do Ministério, foi feito um “mutirão” para agilizar 120 processos de credenciamento de novas instituições universitárias privadas, procedimento que dá mais liberdade para que essas instituições estabeleçam a quantidade de vagas a serem ofertadas, por exemplo.
O quarto indício, mas não menos importante, é que, afora a guerra ideológica, não existe um plano educacional consistente nem para a educação básica e nem para o ensino superior. O Plano Nacional de Educação não é referência de trabalho para o governo. O diálogo com os gestores estaduais, municipais ou com reitores não faz parte da cartilha de trabalho. Restam sobre a mesa propostas isoladas e factoides deliberadas para se manter a base social conservadora concordante com um Ministério pronto a defender os costumes tradicionais de imaginários ataques desagregadores da família.
Desmonte geral
O cenário mais provável é que os quatro anos de mandato de Bolsonaro representem um contínuo desmonte das frágeis bases educacionais erigidas em governos anteriores, que as universidades e institutos vivam crises periódicas de manutenção, provocando soluções heterodoxas e privatistas para manter serviços funcionando e uma guerra permanente e recorrente contra as diferenças políticas e ideológicas. Haverá tentativas pouco federativas de intervir no cotidiano das escolas de educação básica, 99% administradas por estados e municípios e ataques à liberdade de cátedra nas universidades. Isso poderá ocorrer por meio de cortes de recursos para pesquisas críticas, por ações de intimidação na esfera administrativa.
E, de forma interligada e como consequência do sucateamento dos programas e das instituições públicas, o setor privado poderá apresentar mais protagonismo na oferta educacional, o que pressionará o governo a elevar gastos com subsídios de toda ordem. Isso porque, com a crise, não existe espaço no orçamento das famílias brasileiras para custear diretamente o acesso ao ensino superior.
Repercussões e mobilizações
Contudo, sempre há uma pedra no meio do caminho, mesmo com governos autoritários. A retomada de mobilizações estudantis, a repercussão negativa que os recentes cortes orçamentários tiveram na sociedade, as mobilizações de docentes e dos demais servidores contra a reforma da Previdência e o acúmulo histórico de lutas por melhoria da educação podem impedir que o caos se estabeleça e podem, inclusive, encurtar a permanência do atual ministro.
Se há um fator determinante para qualquer desfecho de crise é a presença do povo. Essa entidade esquecida nos cálculos de governos e desprezada pelas elites, mas que insiste em lutar contra a opressão. São mulheres negras periféricas que viram os filhos ingressarem na Universidade, muitos sendo os primeiros da família. São estudantes que vivenciaram um período de participação social e não aceitam recuos. São brasileiras e brasileiros que teimam em não perder direitos conquistados com muita luta. Essas atrizes e esses atores sempre fazem a diferença.