Por Pedro Ferraracio Charbel[1]
No dia 29 de maio, o povo colombiano foi às urnas e conferiu mais de 8,5 milhões de votos à chapa do Pacto Histórico, composta por Gustavo Petro e Francia Marquez. Trata-se da maior votação que uma chapa presidencial já recebeu em toda a história da Colômbia, seja em primeiro ou segundo turno. Proporcionalmente, de acordo com os resultados da pré-contagem, o atual senador, ex-prefeito de Bogotá e ex-guerrilheiro, juntamente à advogada negra, feminista, e militante ambientalista ligada a movimentos sociais, vão ao segundo turno com mais de 40% dos votos válidos. Esse resultado histórico indica um constante e significativo crescimento da expressão eleitoral da esquerda na Colômbia, que já havia passado de 9% nas eleições presidenciais de 2010 para 25% em 2018. Esses números demonstram um anseio implacável da população colombiana por mudança, e obrigam a direita a se reorganizar taticamente.
Isso porque, em um país extremamente desigual e violento, sob um regime oligárquico narco-militarista à serviço do imperialismo estadunidense, esse resultado eleitoral do primeiro turno é um passo histórico para esquerda e a primeira derrota eleitoral da extrema-direita colombiana, comandada pelo ex-presidente Álvaro Uribe. Seu candidato oficial, Frederico “Fico” Gutiérrez, ficou em terceiro lugar, com 23,91% dos votos, atrás do populista de direita Rodolfo Hernández, que foi bem sucedido em se apresentar como candidato antissistema. Totalmente ausente nos debates televisivos e com forte presença nas redes sociais, Hernández obteve mais de 28% dos votos, número muito superior aos 10% que lhe conferiam as pesquisas há duas semanas das eleições. Já às vésperas do pleito, diante do desempenho fraco do candidato governista, ele passou a ser apontado como saída para a preservação do projeto uribista e, tão logo a pré-contagem se encerrou, Fico declarou seu apoio a ele.
O projeto da direita uribista tem se caracterizado pelo violento controle social e pela sôfrega acumulação de capital por meio da guerra permanente contra supostos inimigos internos – em aliança com grupos paramilitares e narcotraficantes – e pela destruição do meio ambiente através do extrativismo desenfreado. A primeira disruptura a esse projeto ocorreu em 2016, no contexto da assinatura do Acordo de Paz entre o ex-aliado e sucessor de Uribe, Juan Manoel Santos, e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Rodolfo Hernández e toda a extrema-direita estiveram contra esse acordo, mas o fato é que o processo de paz reconfigurou a subjetividade do povo colombiano, havendo uma inédita abertura do debate político. Foram colocados na ordem do dia questionamentos não só sobre a militarização e violência política, como também sobre justiça social, direito à terra e defesa do meio ambiente.
Com exceção da reserva de assentos no Legislativo para a versão partidária das FARC, o Comunes, nenhum dispositivo do acordo foi implementado. Pelo contrário: desde sua assinatura, mais de 340 ex-guerrilheiros foram assassinados, sendo 245 apenas durante o atual governo de Ivan Duque, uribista eleito em 2018. A violência política na Colômbia chega, agora, a níveis equiparáveis aos anteriores à assinatura do acordo: já são mais de 1300 lideranças assassinadas desde 2016, sendo 78 apenas em 2022. Além disso, cresce também o número de pessoas desaparecidas (a Colômbia é líder na região), deslocadas (600 mil em 2022) e de vítimas de confinamento (45 mil em neste ano) em decorrência das atividades de grupos paramilitares e narcotraficantes, que desfrutam de ampla conivência das forças armadas.
A esse contexto, somam-se, ainda, os esforços de criminalização e repressão de manifestações e movimentos sociais. Durante as massivas manifestações no marco do Paro Nacional de 2021, 97 pessoas perderam seus olhos em decorrência da ação das forças militares, 75 foram mortas e mais de 1800 foram presas arbitrariamente. Realizadas entre abril e junho de 2021, essas manifestações foram as maiores já vistas na história da Colômbia e, assim como nas massivas manifestações de 2019, tanto as políticas neoliberais de Duque quanto o desrespeito aos acordos de paz foram os principais alvos dos protestos. Ambas as jornadas se configuram como outra importante disruptura ao projeto uribista e produziram uma potente energia política incorporada com sucesso pelo então recém formado Pacto Histórico. Essa inédita coalizão de partidos e movimentos sociais, foi capaz de captar a pulsação das ruas e viabilizar desfechos eleitorais para os anseios ali manifestados.
Não à toa, em março de 2022, nas eleições legislativas, quando também se realizaram as prévias que definiram a chapa Petro-Francia, o Pacto Histórico teve uma votação inédita para a esquerda, conquistando 20 cadeiras no Senado e 31 na Câmara. Na atual corrida presidencial, o Pacto conta também com o apoio de setores liberais e parte significativa dos verdes colombianos, além do Comunes, que não integra a coalizão mas apoia a chapa. O histórico de fraude e violência nas eleições da Colômbia é, no entanto, uma permanente ameaça. Nas eleições legislativas, a recontagem revelou quase 390 mil votos para o Pacto que não haviam sido computados. No pleito do dia 29 de maio também existem fortes indícios de irregularidades: da impossibilidade de fiscalização da totalidade do software utilizado, até o funcionamento de urnas sem a presença fiscais, passando pela da compra de votos e constrangimento de eleitores em comunidades controladas por paramilitares. Além disso, se multiplicam as notícias falsas e existem ameaças comprovadas à vida de Petro que tem sido obrigado, assim como Francia, a cancelar agendas públicas de campanha.
Marcado para o dia 19 de junho, o segundo turno será difícil e o resultado deve ser acirrado. A experiência brasileira ensina que apesar de uma figura patética, Rodolfo Hernández não deve ser ridicularizado ou subestimado. O suposto “outsider” da política, que se apresenta como engenheiro, foi prefeito de Bucaramanga e enfrenta um processo por corrupção já em fase avançada. Sua estratégia de redes sociais tem sido bem sucedida, sobretudo no TikTok, e seu perfil conservador e discurso populista contra a corrupção encontra eco em diversos setores, sendo capaz de angariar votos tanto de pessoas mais pobres que querem mudanças, quanto das elites que anseiam desesperadamente pela continuidade do uribismo. A campanha de Petro e Francia foi muito bem sucedida em derrotar o governo, mas poderia ter melhorado ainda mais seu desempenho se tivesse se reformulado, já no primeiro turno, diante do crescimento de Hernández, sujeito com posicionamentos peculiares e explosivos sobre diversos temas e cuja fortuna milionária advém das parcelas cobradas de famílias pobres pelas unidades habitacionais que sua empresa constrói.
“Cambio” tem sido a palavra de ordem de ambas as campanhas que agora se enfrentam no segundo turno. O Pacto corre o risco de reforçar a percepção de que Hernández significa alguma mudança se seguir com a estratégia de classificar Petro como a “boa mudança” e seu adversário, curinga do uribismo, como a “má mudança”. A chapa de Petro tem potencial de ampliar sua votação na disputa pelo eleitorado mais pobre e entre colombianos no exterior, mas a vitória dependerá, assim como grande parte das eleições na América Latina, do voto feminino e da juventude – e aqui o papel de Francia pode ser especialmente decisivo. Também será necessário consolidar e crescer as votações da chapa nas zonas onde tiveram melhores resultados (Pacífico, Caribe e Bogotá), buscando diminuir a abstenção pelo menos nestes locais. Essa não é, no entanto, uma tarefa fácil, já que a participação eleitoral na Colômbia costuma girar em torno de 50%, e o índice de 54% neste ano já é considerado elevado.
A vitória do Pacto Histórico não será fácil, mas se consumada, significará mudanças significativas e urgentes para a Colômbia, a começar pela implementação do Acordo de Paz e pela promoção dos direitos assegurados pela Constituição de 1991. A declarada opção pela promoção do bem-viver – ou “vivir sabroso” conforme formula Francia Marquez – pavimentaria o caminho para conquistas e avanços ainda mais profundos e estruturais, frutos da força da pressão das ruas e dos movimentos sociais. Essa mesma força deverá se materializar em forte oposição, nas ruas e também no Legislativo, no cenário de uma vitória de Hernández. Nesse caso, ainda assim o passo histórico da esquerda foi dado, e é provável que a direita uribista não seja capaz de formular uma alternativa viável para as próximas eleições, de modo que, a depender do fiasco do eventual governo Hernández e da continuidade da aliança de forças progressistas, as chances de vitória da esquerda em 2026 nunca foram tão altas. A Colômbia e toda a América Latina anseiam por este “cambio pela vida”.
[1] Representou a Fundação Lauro Campos Marielle Franco na delegação do PSOL para o primeiro turno das eleições colombianas. Formado em Relações Internacionais e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é assessor internacional e de direitos humanos da Liderança do PSOL na Câmara dos Deputados.