Antônia Andrade
No final da década de 90, do ângulo economicista produziram-se e ampliaram-se espaços para expressões dissimuladas de “humanitárias”, por meio das quais se enfatizaram conceitos como justiça social, equidade, comunitário, inclusão, oportunidade e empowerment, todos articulados pela ideia de que o que faz sobreviver uma sociedade são os vínculos de solidariedade, de paz e de prosperidade. São conceitos que promovem apaziguamento à classe trabalhadora, de natureza “redentora” para todos os males criados pela crise capitalista.
Destacado dentre essas categorias, o termo empowerment, segundo alguns estudiosos afirmam, originou-se nos Estados Unidos no final da década de 70 e, desde o início da década de 90, esta forma de linguagem tem sido utilizada em documentos de organismos nacionais e internacionais para estabelecimento de políticas públicas. Trata-se do pressuposto de que grupos historicamente excluídos e discriminados na sociedade sofrem de uma “ausência” de poder, que resulta no enfraquecimento da luta para usufruto de seus direitos políticos, econômicos e sociais. Para mudar esta circunstância, é imperativo que ocorra empowerment ou “empoderamento” de sujeitos, individuais e coletivos. Trata-se de categoria de natureza ambígua, cujo entendimento é apresentado sob diferentes formas na literatura.
A aproximação desse conceito, tanto teoricamente quanto de forma instrumental, vem ocorrendo com mais frequência vinculada à questão de gênero. A lógica da sociedade patriarcal que originou as desigualdades de gênero, ainda presente, carece de reflexão a partir das relações de classe, gênero e etnia. Nesse contexto, compreende-se a situação imposta à mulher de um espaço social que, em geral, abrange a função da maternidade e do trabalho doméstico. Também nos permite compreender, no tocante à ocupação de espaços de cargos de direção, que a mulher ainda necessita mobilizar forças físicas, intelectuais ou morais para obter visibilidade e algum prestígio, e que, muitas vezes, seus esforços para ser reconhecida acabam sendo usurpados pelos homens ocupantes de cargos de direção.
No cenário político brasileiro, dados de 2014 divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no relatório anual socioeconômico da mulher demonstram que a participação das mulheres em cargos de gestão e de representatividade política ainda é menos visível que a dos homens, mesmo sendo as mulheres 52,1% do eleitorado do país. Segundo os dados do IBGE (2012), 42,6 % dos cargos de direção são ocupados por homens brancos, 25,4% por mulheres brancas, 19,6% por homens negros, 10,8% por mulheres negras e 1,6% por outros/as.
Notadamente existe uma sobreposição vinculada à questão de gênero e raça/etnia, que também se manifesta no mercado de trabalho Segundo a PNAD 2014, a proporção do rendimento das mulheres em relação ao rendimento dos homens passou de 73,5%, em 2013, para 74,5%, em 2014. Em média, em 2014, os homens receberam R$ 1.987, enquanto as mulheres, R$ 1.480. Vemos como as demandas por oportunidades iguais de trabalho continuam em pauta em todas as agendas para criação de políticas para as mulheres.
Muitos estudiosos, dentre eles SYED1 (2010), questionam a eficácia e a forma como as políticas de empoderamento são criadas. Eles destacam a lógica do mercado capitalista dominante no debate sobre igualdade de gênero e de oportunidades encontradas no Gender Empowerment Measure (GEM), usado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para medir o avanço dos programas de empoderamento. A avaliação mede a participação feminina no setor formal de emprego, não considerando atividades econômicas não remuneradas dos indivíduos dentro ou fora da casa, e com foco no rendimento individual.
Pode-se considerar que a partir da visão do feminismo liberal, o conceito de empowerment fica minimizado à igualdade em relação aos homens do rendimento produtivo do mercado de trabalho. Nesse sentido, empoderar-se vem do poder econômico/produtivo, e não de outros aspectos, como o bem-estar social e humano dos indivíduos. As feministas liberais, ao invés de promover rupturas com o status quo do capitalismo fortaleceram suas bases, enfraquecendo a perspectiva revolucionária do movimento de mulheres.
Não desejamos aqui negar o valor que o viés econômico tem para o empoderamento feminino. Pelo contrário, o desenvolvimento econômico é imprescindível para que as mulheres melhorem sua posição na sociedade. No entanto, é necessário que não fetichizemos o empowerment econômico, pois de nada valerá se ele for utilizado a serviço do mercado e não da emancipação humana. Para isso ocorrer, depende da consciência do movimento feminista, do povo, pois não se trata de um processo espontâneo ou “dado” por alguém, movido por um poder que domina e dirige outros seres humanos. Na lógica revolucionária, o empoderamento não é obra do capital, mas da classe trabalhadora, organizada conscientemente.
É fundamental compreender a realidade social além das aparências. A máxima do empowerment sob o viés do capital, defendida por grupos hegemônicos, está voltada para satisfação de grupos privados, com ênfase nas capacidades de competências que cada pessoa deve adquirir no mercado educacional para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho, pela competitividade. Assim, as trabalhadoras estarão “prontas” para vivenciar os princípios da “qualidade total”, “vestem a camisa da empresa” para atingir o grau máximo de eficiência e produtividade, na busca pelo empoderamento pessoal. Nessa relação, deixa-se de lado a luta coletiva e responsabilizam-se os sujeitos, as mulheres, pela sua “ausência” de empoderamento, pelos seus fracassos.
É necessário estabelecer a unidade na relação entre educação e cidadania, considerando que, quanto mais educados nessa lógica, mais condições terão os sujeitos de lutar, exigindo seus direitos e cumprindo seus deveres. Nessa perspectiva, o pensamento de Gramsci é basilar para se compreender a função do professor como intelectual. Para ele, a ciência e a arte política consideram uma totalidade de normas práticas de pesquisas e de observações particulares com utilidade para mover o interesse pela realidade concreta e promover concepções políticas mais rigorosas. (GRAMSCI2, 2001).
O conceito de cidadania trabalhado por Gramsci pode orientar o movimento político contra hegemônico que uma organização feminista comprometida com outro projeto de sociedade precisa fazer frente ao domínio de classes sua dimensão machista. Para ele, segundo MOCHCOVITCH (1992), cidadania.
É a condição de cidadão, que se expressa num conjunto de direitos e deveres perante o Estado. Na ordem democrática, todos os indivíduos nascidos em um país são, formalmente pelo menos, cidadãos, portadores de direitos políticos e, nas democracias mais avançadas, de direitos sociais. […] A cidadania deve assegurar a cada cidadão, pelo menos, ‘abstratamente’, as condições gerais de se tornar ‘governante’. (MOCHCOVITCH, 1992, p. 66, grifos do autor).
A saída apresentada por Gramsci (2000) nos Cadernos do cárcere é a “escola unitária”, concebida não para atender interesses de grupos, e sim para ser garantida a todas as classes pelo Estado, de maneira que permita a cada cidadão tornar-se governante, ou seja, experimentar o empoderamento. Gramsci defende como aspecto organizativo decisivo dessa escola a possibilidade de “criar os valores fundamentais do ‘humanismo’, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral, necessárias a uma posterior especialização”. A preocupação do autor nessa dinâmica se volta para a formação para a intelectualidade, e ele afirma que “[…] todos os homens são intelectuais” (GRAMSCI5, 1979, p. 07), apesar de nem todos exercerem tal papel.
Por conseguinte, não podemos restringir a formação de tais intelectuais apenas ao espaço escolar. O princípio educativo que os movimentos sociais desenvolvem em suas ações de luta, de enfrentamento aos problemas sociais como representantes do povo, são inegáveis estruturas educativas de formação de intelectuais que defendam a transformação da sociedade. E quando transformam o meio, transformam a si mesmos. Os movimentos sociais também são organizações produtoras de intelectuais e de empoderamento, pois a educação dos sujeitos ocorre de múltiplas formas e dimensões.
Movimentos sociais são todas as formas de organização dos oprimidos que contribuem para a transformação da sociedade. Sua origem são os problemas concretos vividos pelo povo condições de vida e trabalho; discriminações de gênero, raça, classe, opção sexual, credo religioso; destruição do ambiente; formas de participação política etc mas seu início se dá pela intervenção de um “agente de mediação social” (intelectual orgânico, educador popular), ou seja, por militância e não de forma espontânea. (SOUZA6, 2003, p.4. grifos do autor).
Entende-se que essas questões conectam a importância da organização, de um empoderamento que seja coletivo, que naturalmente levam a projeto de disputa de sociedade contra-hegemônico, de um movimento para denúncias, rupturas com as problemáticas vividas pelas classes sociais mais desfavorecidas, sobretudo entre as mulheres, pois os movimentos sociais:
São aqueles que difundem a concepção de mundo revolucionária entre as classes subalternas. São aqueles que se imiscuem na vida prática das massas e trabalham sobre o bom senso, procurando elevar a consciência dispersa e fragmentária das massas ao nível de uma concepção de mundo coerente e homogênea os intelectuais orgânicos são dirigentes e organizadores. (MOCHCOVITCH, 1992, p. 18).
Na compreensão gramsciana, a função do “intelectual orgânico”, engajado na luta política, cumpre seu papel revolucionário. Nesse sentido é importante que se compreenda o papel do movimento feminista, concebido como instrumento de lutas e atuação de grupos antagônicos que ora atua para o desenvolvimento da força produtiva e do lucro, ora, enquanto organizadores que promovem o confronto político e ideológico, da busca da hegemonia. No entanto, é importante enfatizar que a luta hegemônica defendida por Gramsci legitima a práxis como categoria fundamental para compreendermos o sentido pessoal e o significado social do empoderamento como projeto de resistência, pois ele:
Não é o instrumento de governos ou de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas… a práxis é “expressão das classes subalternas” que querem educar a si mesmas na arte do governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades inclusive as desagradáveis e evitar enganos. (GRAMSCI, 1970, p.270).