Por Gilberto Maringoni
O PSOL é o único partido que tem paridade de gênero na Câmara, sem que isso tenha sido produto de políticas de cotas. Como vê essa característica?
Isso é resultado de um compromisso do PSOL, desde a fundação, de defender as bandeiras dos direitos da mulher brasileira. Temos 50% de mulheres na direção do partido e paridade nos espaços partidários. Essas marcas estão em linha com o momento em que a crise econômica apareceu para as mulheres, e para as mulheres negras, de uma forma muito brutal. Vejo perfis semelhantes sendo lançados em outras legendas, mas que não têm a mesma legitimidade, a mesma expressão que o PSOL tem. E, hoje, há o elemento, infelizmente, do assassinado da Marielle e da luta por justiça por ela. O efeito reverso dessa tragédia, dessa brutalidade, foi o fortalecimento, a maior identificação de mulheres negras, além do chamado para que entrem na política.
Você chegou ao Congresso talvez na pior legislatura que já tivemos, com personagens folclóricos e fundamentalistas religiosos. Qual foi sua primeira impressão e como foi o primeiro ano de mandato?
Eu sabia que o cenário político do país era catastrófico, pois Bolsonaro havia sido eleito com votos até nas camadas populares, que tradicionalmente escolhiam a esquerda e que passaram a confiar nessa expressão autoritária e ultraliberal. Fiquei um tanto chocada pelo descompromisso que os parlamentares governistas têm com o país. Ali, temos a política levada à concepção de likes no Facebook, a visualizações no YouTube e ao negacionismo e obscurantismo como normas de conduta. É uma desqualificação completa. Não tem debate político. Há espetáculo, show de horrores e, quanto mais baixo o nível, melhor para dezenas de parlamentares novos. Então, choca bastante e entristece observar o nível a que chegou a política institucional no país. Mas, eu já havia desenvolvido minhas defesas – e aprendi a ter estômago – na Câmara Municipal de São Paulo. Foi um estágio importante para chegar aqui. É muito triste que estejamos passando pelo cenário que vejo em Brasília.
Como é o ambiente político no Congresso? Há ameaças à segurança dos parlamentares de oposição?
Nunca cheguei a ter uma ameaça física ou de morte direta por bolsonaristas no Congresso. Acontece muito nas redes sociais. A gente sabe que eles acabam inflando robôs ou pessoas para terem esse comportamento. Há ofensas, xingamentos, ameaças, tentativa de intimidação e muito bate-boca baixo nível. Não se trata de um debate de ideias, mesmo sendo as piores ideias possíveis. O nível de desqualificação e de constrangimento é muito grande. Na direita tradicional, são poucos os que entram nessa dinâmica, mas essa onda bolsonarista de parlamentares youtubers, que vivem da imagem para suas bolhas e se alimentam do clima de medo, está em cena o tempo todo. As parlamentares – principalmente a Talíria, a Áurea, a Fernanda e eu – somos muito agredidas.
Você vê uma normalização do governo Bolsonaro, no sentido de uma aceitação dele pelas instituições?
São muitos aspectos, mas eu destacaria três. Primeiro, ele ganhou a narrativa sobre a pandemia. Houve uma disputa entre o obscurantismo – a ideia de que não havia o que fazer diante da doença – e a Ciência. Ou seja, o esforço de isolamento social foi sabotado. Houve algumas medidas muito tímidas aprovadas pelo Congresso, de apoio aos trabalhadores e a pequenas empresas e, mesmo assim, o cenário sanitário, social e econômico do Brasil é difícil. Passados vários meses de pandemia, ele ganhou esse debate por inaptidão dos governadores e prefeitos, que acabaram cedendo para medidas tímidas de contenção e muito apelo do mercado. Isso sem contar a lógica da austeridade, de não haver investimento público para garantir que a sociedade não entre em um gigantesco colapso. O segundo elemento tem a ver com o modelo econômico que se escolheu. Por mais que tenha havido uma concessão do mercado, de que agora ou o Estado entra ou acabou o Brasil, isso teve um limite. Parece que viraram totalmente a chave e foi o momento em que o mercado abraçou de vez Bolsonaro. Isso também se expressou nas escolhas dentro da Câmara. Hoje, o líder do governo é o Ricardo Barros (PP-PR), que esteve em todos os governos e representa uma direita tradicional, ligada ao centrão. Bolsonaro agora tem apelo em setores em que não tinha voto, em função do auxílio emergencial. E há um terceiro fator que é a proximidade do calendário eleitoral. As forças políticas estão voltadas para ganhar as principais prefeituras. É um momento complexo. Por isso, também, ele aproveita para apresentar medidas como essa reforma administrativa. É uma atrocidade completa para o funcionalismo e para os serviços públicos. Os partidos fisiológicos estão no bolso do bolsonarismo. Votam agendas absurdas e se calam diante de retrocessos e ataques autoritários. Tentou-se criar um cenário de que o Congresso estaria trabalhando para salvar o país, enquanto apenas Bolsonaro seria uma tragédia. Ele tomou algumas medidas sociais muito tímidas. A mais relevante foi o auxílio emergencial, fruto da oposição e, em especial, da liderança do PSOL. Mas a agenda da austeridade segue com a direita buscando se unificar.
Você acredita que faltou um combate mais estrito à questão da pandemia por parte da oposição?
Existem alguns limites impostos pela própria pressão da agenda de austeridade no Brasil. Mesmo que a gente tenha aprovado o orçamento de guerra, mesmo que os liberais do mundo inteiro soubessem que seria necessário investimento estatal para lidar com a pandemia, aqui no Brasil o tema não ganhou a sociedade. Isso teve muita expressão no Congresso. Uma camada da população não foi bem atendida. São pequenos comerciantes, empresários que quebram e trabalhadores demitidos, que tiveram redução salarial. O auxílio emergencial não atingiu diretamente essas pessoas. O isolamento social acabou aparecendo como um privilégio. Existe um problema em parte dos setores da esquerda ou da oposição sobre essa compreensão dos limites e da capacidade de investimento do Estado. Tem a ver com uma questão ideológica, uma concepção liberal da sociedade. Assim, Bolsonaro acabou ganhando essa disputa de narrativa. Ele diz: “Eu avisei que a gente tinha que se preocupar com as questões econômicas, avisei que não dava para as pessoas ficarem em isolamento social”. Chegamos à naturalização do caos, da barbárie. O PSOL é uma exceção, pois soube combinar bem a agenda, embora tenha limitações na comunicação com a população. E há também o elemento da rua, que conta muito. Não tinha rua, não tinha luta, e assim fica tudo mais difícil.
UMA TRAJETÓRIA CONSTRUÍDA COM BASE NA CONFIANÇA
Sâmia Bomfim, 31, líder da bancada do PSOL na Câmara, apresenta uma trajetória política tão sólida quanto meteórica. Tendo começado a militância política no movimento estudantil em 2006, chegou à Câmara Municipal de São Paulo, exatos dez anos depois, impulsionada por 12.464 votos. Em 2018, candidata a deputada federal, obteve 249.887 sufrágios, ou vinte vezes a votação anterior. “Acho que nossas vitórias integram um fenômeno propiciado pelo espaço que as causas feministas ocuparam nas eleições. A Talíria Petrone foi na mesma brecha, assim como a Áurea Carolina e a própria Marielle”, assinala.
Há outra questão a ser levada em conta. Essa paulista de Presidente Prudente teve uma atuação fulgurante na oposição à gestão João Dória na prefeitura de São Paulo. Marcada por uma política de desmonte da máquina pública e por uma agressiva relação com os servidores, a administração teve como reação uma expressiva greve de professores em 2018. Sâmia se colocou ao lado da categoria, tanto em plenário, como participando de manifestações, propagando a luta e angariando aliados na sociedade. Por vários dias e noites, acampou com eles na frente da sede do Executivo municipal. Começava ali uma sólida relação de confiança mútua.
Filha de um policial civil e de uma servidora (técnico-administrativa) da Secretaria da Fazenda, não havia ninguém na família que exercesse atividade política regular. A vida mudou ao vir para São Paulo, aos 17 anos, depois de ser aprovada na Faculdade de Letras na USP. Militante estudantil e sindical – é funcionária de carreira na Universidade – filiou-se em 2011 ao PSOL.
Com um mandato voltado para o direito das mulheres e a defesa dos serviços públicos, com destaque para a Educação, Sâmia abraça agora causas colocadas em pauta pela ação do governo Bolsonaro, como o meio ambiente. “O Pantanal está em chamas, o estado de São Paulo está sendo destruído, a Amazônia é desmontada e o orçamento dos órgãos de fiscalização e controle são dilapidados. Não dá para não intervir nessa área”, diz a parlamentar, que é ainda titular da Comissão de Ciência e Tecnologia.
O governo cortou pela metade o auxílio emergencial. Isso pode ter consequências para a população?
Sem dúvida. E essa é uma oportunidade que o PSOL não pode desperdiçar e espero que a oposição saiba compreender também. Bolsonaro, individualmente, gosta do aumento de sua popularidade, mas está muito comprometido e amarrado com a agenda do mercado, assim como Rodrigo Maia, o centrão e companhia. E isso significa não furar o teto de gastos. Desde já, o PSOL apresentou a política de renda permanente, sem nenhum centavo a menos. E não somente enquanto durar o estado de calamidade, mas R$ 600 a perder de vista porque, infelizmente, a previsão de recuperação econômica é quase nula a curto, médio e longo prazos.
Estamos em plena disputa eleitoral? Como você vê o quadro?
Acho que vão errar muito os candidatos que não souberem responder às demandas mais imediatas que a pandemia trouxe ao Brasil do ponto de vista sanitário, mas principalmente diante do caos social, com o problema de renda, de desemprego, de carestia e de precarização das condições de vida. Nisso, o PSOL tende a ter espaço, falando a verdade para o povo e enfrentando essa agenda econômica. Mas vai ser muito difícil para o partido. Em São Paulo, o espaço do Guilherme Boulos e da Luiza Erundina tem a ver com o perfil dos dois e com uma fragilidade da chapa do PT, já que o nome do Jilmar Tatto não agrada ao Lula, à militância, e não vai agradar ao povo da cidade. As máquinas vão entrar em jogo. Acho que vai ser um processo eleitoral importante para tornar o PSOL ainda mais um partido de gente grande, um player no cenário nacional e não um partido marginal.
A reforma administrativa e tributária pode ter a tramitação atrasada?
Sim, por conta do calendário eleitoral. É uma medida impopular votar contra os três setores do funcionalismo público, municipal, estadual e federal. E há muitos itens impopulares na reforma administrativa, como o regime único dos servidores, a possibilidade de extinção de órgãos e cargos, mudança de um regime previdenciário próprio para o regime geral. Mas o governo apresentou uma proposta neste ano porque precisava mostrar algo ao mercado, responder a essa lógica fiscalista, dizer que é responsável, que precisa tirar dinheiro dos tais privilegiados (como se os servidores o fossem) para poder pagar a conta da crise.
Na vitória do Fundeb, formou-se uma ampla aliança, com 499 votos a 7. Como aconteceu essa articulação?
O Fundeb está sendo discutido há muitos anos no Congresso Nacional. No início, havia um clima de grande pessimismo entre a oposição. Eu fiz parte da comissão da Câmara que examinou a medida, desde o começo do ano passado. O MEC não atuou, não ajudou na construção do projeto e colocava sempre uma série de empecilhos. A principal vitória foi a constitucionalização do Fundeb, pois era um grande risco não garantir que ele fosse uma política permanente de Estado. Houve uma forte mobilização de educadores, que aprenderam a militar em redes sociais. Recebi milhares de mensagens de WhatsApp, e-mail e o gabinete não parava de receber ligações. Isso foi muito importante porque, no limite, não perder voto dos professores é algo que conta para as deputadas e deputados. Houve também uma atuação direta de governadores e prefeitos, que procuraram parlamentares. Sem Fundeb, não haveria dinheiro para pagar salários e abrir escolas. O revés dessa vitória é o orçamento da educação para o ano que vem. É uma tragédia. Não se perdem as conquistas do Fundeb, mas são colocadas em risco, pois se retira um volume enorme de recursos da educação superior. A luta pela educação novamente vai ser fundamental.
O orçamento para o ano que vem não prevê verbas para medidas anticíclicas para impulsionar a economia. Ao contrário, sinalizam a continuidade da recessão. Como vê a situação?
Isso nos colocará um desafio muito grande em torno da reforma administrativa. Eles estão apresentando o desmonte do funcionalismo e dos serviços públicos como a possibilidade de obterem uma folga financeira. A lógica é a mesma da reforma da Previdência – com a hipotética economia de um trilhão – e a trabalhista, com uma promessa de aumento do número de empregos. A bola da vez é a reforma administrativa. Os servidores precisam desde já construir um processo de luta, aliando esse debate ao tema dos serviços públicos. Vai ser um momento de aumento do desemprego, miséria, fome, num contexto de depressão profunda em que não vai haver verba suficiente para manter os postos de saúde, as UBS. Estão propondo modificações estruturais de Estado e não pode haver forma alguma de vacilação para que nossa luta tenha capacidade de se desenvolver de fato.