O governo Bolsonaro incentiva a transformação de escolas públicas em Colégios Militares e promete verbas suplementares a municípios que aderirem ao programa. Além de dúvidas legais, a Lei Orçamentária anual não prevê dinheiro suficiente para a modalidade. Há muita coisa nebulosa na proposta anunciada como mudança substancial na Educação pública.
Catarina de Almeida Santos
O Brasil não é para principiantes, frase atribuída a Tom Jobim, talvez seja um bom exemplo para traduzir o quão complexo é pensar o país e seu revés, e ilustrar o tema deste texto: a militarização das escolas públicas e o programa do governo federal sobre escolas cívico-militares. Qualquer proposta voltada para o controle das escolas, por meio do disciplinamento dos corpos, controle de estudantes, profissionais da educação e processos pedagógicos vindas do atual governo, não pode ser vista com surpresa. Mas isso muda de figura quando sabemos que as mais de cem escolas militarizadas no país não partiram do presidente Jair Bolsonaro e sua genial equipe de ministros. Ao contrário, trata-se de um processo que vem se dando em sistemas comandados por gestores públicos de diferentes matizes ideológicas, sendo muitos deles eleitos com propostas ditas participativas e democráticas. Mas é inegável, porém, que a proposta do governo federal impulsionou a militarização em alguns estados e municípios.
Papel das Forças Armadas
Quando candidato nas eleições de 2018, Jair Messias Bolsonaro, ao apresentar a proposta de governo, ressaltou a importância das Forças Armadas para o país e afirmou que “no papel de consolidação nacional, devemos lembrar da participação das Forças Armadas no processo de atendimento da saúde e da educação da população” e prometeu que em dois anos implantaria “um colégio militar em todas as capitais de Estado1 ”. Para entender a diferença entre a proposta do candidato e a política do presidente é importante diferenciar o que são os Colégios Militares, as escolas de formação dos integrantes das forças, as escolas privadas que se autodenominam militares, as instituições privadas criadas e geridas por integrantes ou associações das corporações, as escolas públicas militarizadas nas redes estaduais e distrital, além das escolas municipais que são militarizadas utilizando a “metodologia” dos colégios das polícias militares e a proposta de escolas cívico-militares do governo federal. Como visto, o presidente, à época da campanha, prometeu criar um colégio militar em cada capital Os Colégios Militares são organizações militares, que funcionam como estabelecimentos de ensino de educação básica e são vinculados às corporações, como Exército, Polícias Militares e Corpo de Bombeiros. Esses colégios são criados por leis específicas, fazem parte da estrutura das corporações e Secretarias de Segurança, no caso dos Colégios da Polícia Militar e, em alguns casos, os dos Corpos de Bombeiros. As normas e regras de funcionamento do ensino militar, são definidas por lei específica, obedecendo em grande medida as normas das corporações.
Educação básica do Exército
educação básica do Exército Como o presidente se referiu ao papel das Forças Armadas para a educação e prometeu criar um colégio em cada capital, vamos começar a análise pelo Colégio Militar de educação básica do Exército. De acordo com o Regulamento dos Colégios Militares do Exército, estes são organizações militares, que integram o Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB), um dos subsistemas do Sistema de Ensino do Exército e estão diretamente subordinados à Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial (DEPA). Os objetivos principais dos Colégios desse tipo são atender primeiramente aos dependentes de militares de carreira do Exército e demais candidatos, por meio de processo seletivo. Além disso, busca “capacitar os alunos para o ingresso em estabelecimento de ensino militares, com prioridade para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), e para as instituições civis de ensino superior” (BRASIL, 2008). A proposta educativa dos CM, apesar de ter como base a legislação federal de educação, obedece às leis e aos regulamentos em vigor no Exército, e é desenvolvida segundo do os valores e as tradições daquela Arma. Existem atualmente no Brasil 13 Colégios de educação básica do Exército, instalados nas cidades de Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza, Juiz de Fora, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e Santa Maria. Estes têm valor aluno/ano, segundo matéria do Estado de São Paulo de 25 de agosto de 2018, de cerca de R$ 19 mil. Tais colégios são custeados pelo Exército, cobram taxas dos alunos, possuem uma infraestrutura diferenciada em comparação com as demais escolas públicas, contando com piscinas, laboratórios diversos, inclusive de robótica e professores com salários superiores a R$ 10 mil O Exército possui ainda as escolas de formação dos oficiais, em diferentes áreas: Escolas Militares (forma os oficiais ou os sargentos de carreira do Exército Brasileiro), Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN); Escola de Sargentos das Armas (ESA); Escola de Saúde do Exército (EsSEx); Escola de Formação Complementar do Exército (EsFCEx); Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx); Instituto Militar de Engenharia (IME) e a Escola de Sargentos de Logística (EsSLog).
Escolas das PMs
As corporações das Polícias Militares também possuem colégios em 23 estados da federação, denominados de Colégio Tiradentes da Polícia Militar ou Colégio da Polícia Militar, acrescido do nome de algum militar de alta patente. Esses colégios são instituições públicas militares de ensino, localizadas em várias unidades da federação, com destaque para o estado de Minas Gerais. Ali existem 30 unidades em diversas cidades todas administradas pela Polícia Militar do Estado. As normas de funcionamento, os objetivos e finalidades são definidos no Regimento de cada rede e têm como base os princípios estabelecidos nos regimentos das PMs de cada unidade da federação. Vale ressaltar, no entanto, que em certos locais, algumas escolas públicas militarizadas receberam o nome de Colégio Tiradentes, como no caso de Roraima e Mato Grosso.
Unidades dos bombeiros
Os Colégios dos Corpos de Bombeiros, presentes em sete estados da federação (Ceará, DF, Maranhão, Tocantins, Amazonas, Amapá e Acre) também são instituições militares, que em alguns casos possuem caráter público e privado. São financiados pelas mensalidades pagas pelos alunos, ao mesmo tempo que participam de programas como o de Livro Didático. Todos contam com muitos servidores, inclusive professores da corporação. Em alguns estados e no DF os colégios dos bombeiros são chamados de D. Pedro II, mas em outros também possuem nomes de militares de alta patente ou de grandes personalidades, como o é caso do Colégio Militar do Corpo de Bombeiros do Ceará – Escritora Rachel de Queiroz.
Estabelecimentos conveniados
As escolas militarizadas são instituições civis públicas, vinculadas às Secretarias estaduais, distrital e municipais de Educação. Por meio de convênios com as Secretarias de Segurança, ou com a Polícia Militar, tais instituições passaram a ser geridas em conjunto com as polícias das respectivas unidades federadas, ou passam a contar com a presença de monitores cívico-militares. Também se enquadram nesse quesito aqueles estabelecimentos conveniados com os comandos das PMs, passando a contar com assessoria da corporação para a aplicação da “Metodologia dos Colégios da Polícia Militar” ou processo de gestão compartilhada nas escolas municipais. Há, ainda, no país, escolas privadas que utilizam a chamada “metodologia” dos colégios da Polícia Militar, redes de escolas privadas que autodenominam “Escola da Polícia Militar”, mas que pertencem a grupos filantrópicos e não seguem necessariamente as normas regimentais das corporações militares. No grupo das escolas privadas existem aquelas criadas por associação de militares7 para atender, prioritariamente, aos filhos de militares. Essas escolas possuem normas e princípios militares, mas são financiadas pelas mensalidades pagas pelos pais e não pela corporação.
Nova nomenclatura
A nomenclatura Escolas Cívico-Militares foi cunhada pelo governo federal, a partir do Decreto nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019, que mudou a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Educação, criando a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares. Até então, nenhuma escola militarizada utilizava essa denominação. As bases legais que definem o direito à educação no Brasil, bem como a forma de organização das redes e escolas para a garantia desse direito são: a Constituição Federal de 1988, a LDB nº 9.394 de 1996 e os planos nacionais de educação. Nessa legislação não existe a figura da escola militar, que segundo a LDB deve ter o ensino regulado por lei específica. Não é prevista a militarização das escolas públicas, nem a gestão compartilhada com a polícia. Por essa base legal e legislações correlatas, os princípios que regem a educação nacional são opostos aos princípios que regem as diferentes corporações policiais, tendo em vista que entre eles estão: a gestão democrática, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, a valorização do profissional da educação escolar, além do respeito a liberdade e apreço a tolerância. De acordo com o §1º do art. 67 da LDB, a experiência docente é pré-requisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério. As demais funções, além da docência, estão definidas no § 2º do mesmo artigo como “as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades educativas” nos diferentes níveis e modalidades, nas instituições de educação básica “incluídas, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico”. Assim, os convênios firmados entre as Secretarias de Educação de estados, municípios e Distrito Federal e as de Segurança Pública, para designação de policiais das diferentes forças para assumir funções de profissionais da Educação não encontram respaldo na legislação nacional e fere os princípios que regem o ensino no Brasil. Tendo em vista a quantidade de sistemas de Ensino no país, é difícil precisar quantas escolas militarizadas ao certo temos, já que além das escolas públicas estaduais, gestores/as municipais vêm militarizando unidades de ensino por decretos e viabilizando a implementação por meio de convênio e parcerias com as Secretarias de Segurança Públicas dos estados.
Jogo sem regras definidas
No dia 5 de setembro de 2019, o presidente da República instituiu, por meio do Decreto nº 10.004, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), tendo, de acordo com o art. 1º, a finalidade de promover a melhoria na qualidade da educação básica no ensino fundamental e no ensino médio. Pelo decreto, as escolas públicas regulares estaduais, municipais ou distritais que aderirem ao Programa deixam de ser escolas civis públicas e tornam-se Escolas Cívico-Militares. Entre os princípios do Pecim estão a implementação preferencial nas escolas públicas regulares em situação de vulnerabilidade social, fortalecimento de valores humanos e cívicos e a adoção de modelo de gestão escolar baseado nos Colégios Militares. No que tange aos objetivos, destacam-se os de colaborar para a formação humana e cívica e a redução dos índices de violência nas escolas públicas regulares. Em que pese o citado decreto definir que na gestão de processos didático-pedagógicos será respeitada a autonomia das Secretarias de Educação dos entes federados e as atribuições conferidas exclusivamente aos docentes. De acordo com as diretrizes do Programa as escolas seguirão práticas pedagógicas e padrões de ensino dos Colégios Militares do Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. O decreto estabelece, ainda, como diretriz, o emprego de oficiais e praças das PMs, dos Bombeiros, além de militares inativos das forças Armadas. Eles devem atuar nas áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa, funções que pela LDB devem ser desenvolvidas pelos profissionais do magistério. O próprio decreto define no art. 24 que “os militares que atuarem nas Escolas Cívico- -Militares não serão considerados, para todos os fins, como profissionais da educação básica, nos termos do disposto no art. 61 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996”9. Mesmo assim, os militares estão sendo designados para desempenhar funções exclusivas desses profissionais.
Regras de implantação
Regras de implantação após 15 estados, o DF e 643 municípios aderirem ao programa, segundo informações do site do MEC, foi publicada no Diário Oficial de 20 de novembro de 2019, a portaria nº 2.015, definindo as regras de implantação do Pecim em 2020. Embora não conste em nenhuma das legislações do Programa, o MEC anunciou, desde o início, que cada escola que aderisse a proposta receberia R$ 1 milhão, sendo que a pretensão do ministério é implantar a proposta em 54 escolas públicas regulares em 2020. Pela data da publicação da portaria, percebe-se que as regras do jogo estão sendo definidas com a partida em andamento. Analisando os critérios eliminatórios e classificatórios definidos no documento, possivelmente a maior parte dos municípios nem teria se candidato, caso tais parâmetros tivessem sido publicados à época de lançamento da proposta. De acordo com o item I do art. 10, serão eliminados os municípios que não possuírem, entre os residentes, pelo menos três militares da reserva das Forças Armadas “na proporção de 3 (três) candidatos, oficiais, para cada tarefa a ser exercida na Ecim [com as patentes requeridas] e 2 (dois) candidatos, praças, para cada tarefa a ser exercida na Ecim (considerando o mínimo de doze monitores por escolas até o ideal de dezesseis)”10. No dia 21 de novembro, o ministro da Educação anunciou as cidades selecionadas, em 23 estados e no DF. Elas terão 54 escolas civis públicas transformadas em Escolas Cívico-Militares, em 2020.
E o dinheiro?
Apesar de continuar afirmando que cada escola ao aderir ao Programa em 2020 receberá R$ 1 milhão, a previsão da Lei Orçamentária Anual é de apenas R$32 milhões para o setor. Vale ressaltar, que de acordo com matéria publicada na Folha de São Paulo12, no dia 21.11.2019, do total dos recursos anunciados, R$ 28 milhões serão repassados para o Ministério da Defesa pagar pessoal, tendo em vista que os militares da Forças Armadas envolvidos no programa receberão um adicional de 30% de gratificação. Em síntese, ao que tudo indica, a promessa de R$1 milhão para cada unidade se traduzirá na presença de oficiais federais dando ordens nas escolas. Segundo informações do governo, naquelas que receberão oficiais federais da reserva, o recurso destinado à escola será usado apenas para o pagamento desse pessoal.