-Renata Souza -Camila Pires – Isabel Mansur – Rayanne Soares
Pouco depois de tomar posse como ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves anunciou uma “nova era” para o Brasil: “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. Se a afirmação da ministra foi uma metáfora, como disse, o significado está evidente. Homens e mulheres devem ter funções sociais preestabelecidas. Sendo assim, a igualdade universal entre as pessoas fundamento primeiro dos direitos humanos e da concepção republicana de Estado, é excluída de forma sistêmica na nova pasta.
No Brasil, mulheres são mortas barbaramente todos os dias. A maioria dos casos fatais é precedida por pesadas violências. Em 2016, segundo estudo feito pelo Instituto Sou da Paz, metade das mulheres mortas foram vítimas de arma de fogo.
Entre elas, 25% dentro das próprias casas. Absurdas e chocantes, essas sucessivas agressões e violências não se baseiam em qualquer característica natural ou biológica, mas em relações sociais de sexo (e gênero) que estão socialmente arraigadas no bipe dominação-subordinação.
Muitas violências contra as mulheres são toleradas. Da imposição de padrões de beleza como forma de aceitação social ao enquadramento na condição de mera reprodutora e do tratamento como objeto sexual, sujeita a maus-tratos e assédios à objetificação como propriedade privada de seus maridos. Nesse sentido, são naturalizadas as relações sociais que viram ao avesso a condição social de vítima: as mulheres são responsabilizadas por toda e qualquer agressão que as atinjam.
Somente em janeiro de 2019 tivemos 107 casos de feminicídio. Destes, 68 com consequências letais e 39 tentativas de homicídio. De acordo com o levantamento de Jefferson Nascimento, doutor em Direito pela USP, há uma média de cinco ocorrências por dia em pelo menos 94 cidades, distribuídas em 21 estados. Um dos crimes mais bárbaros desse início de 2019 foi o homicídio de uma travesti em Campinas, que teve o coração arrancado. O Brasil também é o país que mais mata pessoas trans no mundo. São 162 casos de assassinato somente em 2018. O discurso de ódio incentiva essas mortes, e todas e todos que encarnam em seus corpos a diversidade são alvos.
Maria da Penha: avanços e desafios
No Brasil, onde a violência contra a mulher é considerada uma questão de ordem privada e não da esfera pública, a Lei Maria da Penha é um marco fundamental para a garantia do direito à vida e integridade das mulheres. Trata-se do resultado de um amplo debate público envolvendo a sociedade e o movimento feminista. É uma lei penal acrescida, paralelamente, de políticas públicas especializadas em atendimento às mulheres. Significou um grande avanço no combate e na prevenção da violência contra a mulher.
No entanto, a subnotificação dos registros de denúncias aponta a existência de inúmeros desafios a serem superados na prevenção da violência contra a mulher. Um estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicado em 2017, aponta que o endurecimento penal com o objetivo de conter a evolução de violações mais simples para crimes graves não foi eficiente. Segundo o estudo, mulheres em situação de violência demandam proteção e afastamento do agressor, sem perder de vista uma solução conciliadora e, por isso, rejeitam a solução penal.
As mulheres em situação de violência também esbarram na dimensão da dependência econômica. Elas permanecem subordinadas e reféns pela dependência material e pela total omissão do Estado em garantir políticas públicas que promovam autonomia. Entre o ano de 2016 e 2107, por exemplo, 23 abrigos foram fechados por cortes no orçamento, conforme apontou o relatório da ONG Human Rights Watch. Já a Secretaria Nacional de Políticas para a Mulher informou que, no último levantamento em maio de 2018, o número das casas abrigo era de 77 em todo país. Nota-se que, mesmo antes dos fechamentos, a quantidade era insuficiente.
As iniciativas e instrumentos legais de combate à violência contra a mulher esbarram, portanto, na inexistência de alternativas concretas de proteção como o atendimento psicossocial humanizado, no medo, no sentimento de vergonha e na revitimização da mulher pelos agentes públicos. O machismo e a cultura patriarcal culpam a vítima da violência sexista. Assim, as instituições públicas, jurídicas e policiais se omitem na execução de medidas protetivas, impedindo que serviços de atendimento funcionem de forma eficaz.
A lógica predominantemente punitivista como diretriz da aplicação da Lei Maria da Penha, não é suficiente para conter o feminicídio. É preciso avançar com o comprometimento do Estado em políticas públicas de gênero. Políticas que eduquem para a desconstrução dos valores da cultura patriarcal, legitimadora da violência e da discriminação da mulher. Por meio do ambiente escolar, mas também em outros espaços mais amplos como campanhas publicitárias públicas, poderia se promover o debate envolvendo toda a sociedade, encarando a violência contra a mulher como um problema social e a prevenção no domínio do interesse público.
Flexibilização da posse de armas
Na contramão desses acúmulos, o governo Bolsonaro nomeou uma equipe ministerial que reforça os estereótipos de gênero. Vai adiante, aprofundando a desigualdade e a violência sexista. Por exemplo, encara o debate sobre a violência contra a mulher nas escolas públicas como ideologia de gênero. Além disso, nomeou Sérgio Moro como ministro da Justiça e Segurança Pública, que apresentou um pacote que altera o Código Penal sobre a legítima defesa. Na prática, essa alteração na lei pode acarretar que, se uma mulher for assassinada durante uma “briga de casal”, pode haver a alegação do excesso em razão de “violenta emoção”. Abre-se, portanto, um precedente para absolvição sumária do assassino, o que significa um enorme retrocesso do ponto de vista penal.
Outro contrassenso do governo Bolsonaro é a flexibilização da posse de armas. Ora, se já somos o quinto país em mortes violentas de mulheres no mundo, liderando o ranking mundial de feminicídio na ONU, o que atinge na maioria as negras, a política é um atentado à vida das mulheres.
Em 2016, a cada 24 horas, seis mulheres foram assassinadas por arma de fogo no país. Destas, 560 foram assassinadas dentro de casa. São dados da pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz, já cita neste artigo. Duas em cada três vítimas foram mortas dentro da própria casa entre 2016 e 2017, segundo pesquisa de 2018 do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo. A referida pesquisa também evidenciou que 85% dos agressores tinham relações de intimidade com as vítimas, ou seja, foram maridos, namorados, companheiros.
Na pesquisa “Raio X do Feminicídio em São Paulo”, feita pelo Ministério Público do estado entre 2016 e 2017, também são apontados alguns indicadores importantes para entender o grave risco à vida das mulheres: entre os meios mais usados em feminicídios, a arma de fogo é o segundo, ficando atrás somente de objetos cortantes, faca, foice ou canivete.
Como aponta a antropóloga Débora Diniz, o argumento dos defensores da flexibilização da posse de armas é de que ajudaria na “defesa do patrimônio” privado e doméstico. Numa sociedade de valores patriarcais arraigados como a brasileira, é preciso entender, diz a antropóloga, que as mulheres ainda são tidas como objeto e território de posse. Nesse contexto, ela conclui, possuir armas de fogo é um objeto de desejo dos homens, o que evidencia que há gênero na política de armas, na medida em que a arma é um instrumento de poder.
Em outras palavras, flexibilizar a posse de armas vai aumentar o número de casos de feminicídio, sobretudo em ambiente doméstico, por dificultar que mulheres procurem assistência, além de assombrar e vulnerabilizá-las, fazendo com que se sintam intimidadas pelos parceiros e denunciem menos.
A nova direita e a “ideologia de gênero”
A nova direita usa o debate de gênero para esconder o que não lhe interessa: a ideologia que está sendo reforçada, apesar de velha e empoeirada, é a do machismo. Aumentando o controle e inviabilizando o debate, relega-se o sexismo e as tragédias à normalidade. Na família tradicional brasileira não há espaço para questionamentos, somente obediência e submissão.
Damares Alves apaziguou a gravidade dos tempos que estavam por vir na forma cômica de seu anúncio, tão disfarçado quanto grotesco. Não surpreende que, para efeito de políticas públicas, o ministério sequer apresente planos racionais para diminuição do número de feminicídios no país. A banalização do machismo é o velho-novo alicerce para agressão, desrespeito e assassinato de mulheres.
Caberá a nós garantir o controle sobre os nossos corpos e vidas. A nova era também anuncia as novas protagonistas: a linha de frente será, inevitavelmente, da força das mulheres.