Valerio Arcary
- A conjuntura mudou, e exige da esquerda uma mudança na tática. Quando nossos inimigos enfraquecem, a mão não pode tremer, é preciso bater mais forte. Uma maioria dos setores organizados da classe trabalhadora e da juventude já está na oposição. Chegou a hora de agitar Fora Bolsonaro!
O gatilho foi o alinhamento insólito de Bolsonaro com as teses negacionistas da pandemia devastadora que assola o mundo. Estamos na inusitada situação de um presidente em luta pública contra o ex-ministro da área diante de uma guerra pela saúde pública. A emergência sanitária e as divisões na classe dominante provocaram um isolamento de Bolsonaro. O desgaste é um processo em curso, tem dinâmica lenta, mas é clara.
Nas últimas semanas, a maioria dos governos estaduais passou a questionar a orientação da Presidência da República e o apoio de alguns dos principais grupos de mídia do país a Mandetta. Uma crise política está escancarada, e vivemos uma situação anômala, excepcional e anormal de “dualidade de poder” institucional, porém, o paradoxo é que durante um tempo prevaleceu a linha do ex-ministro, não a de Bolsonaro. Não parece sustentável, indefinidamente.
Mas, ao conflito de poderes, e de iniciativa diante da crise. Abriu-se uma conjuntura de instabilidade, mas deve se fechar. O poder não é compatível com um impasse prolongado, quando há um perigo imenso no horizonte.
A mudança na conjuntura impacta as distintas classes sociais de forma diferente. Os dias passaram a contar por semanas, e as semanas por meses. Tudo se acelerou. Uma parcela da classe média, sob a ameaça da iminência de um cataclismo sanitário sem precedentes, perdeu confiança na capacidade de Bolsonaro responder à emergência sanitária, e começou a se manifestar nas janelas. Uma maioria dos setores organizados da classe trabalhadora se consolidou na oposição. Uma maioria burguesa pressiona para que todas as instituições, Congresso e STF e, se necessário até o generalato, enquadrem Bolsonaro, e imponham uma tutela.
Mas isso só é possível, parcial e efemeramente, e parece improvável que se mantenha, pois entre outros fatores, Bolsonaro tem uma personalidade messiânica, uma corrente de massas neofascista, importante resiliência política no aparelho repressivo do Estado e apoio do governo norte-americano.
Uma nova conjuntura impõe uma mudança na tática. Quando há giros na situação política é comum que as organizações de esquerda sofram com um nível mais áspero de polêmica interna. Entram em crise e não é raro que se dividam. Portanto, o PSOL acaba de passar por uma prova importante.
A executiva nacional do PSOL já aprovou uma resolução que levanta o Fora Bolsonaro e Mourão. Apresentou a defesa de que a melhor saída deve ser a luta por eleições diretas livres e antecipadas, pois Mourão não tem legitimidade para assumir a presidência. Livres porque é necessário anular as decisões da Lava-Jato, e garantir a restituição dos direitos políticos de Lula. Essa decisão facilita uma maior unidade entre as diferentes correntes do partido. Poderemos discutir se o fez de forma atrasada ou adiantada, o que é um debate que pode ser educativo, mas é um balanço. Balanços têm o seu lugar e são indispensáveis para uma militância séria, mas com maturidade. Nem mais, nem menos. O que é, realmente, importante é que a confluência na necessidade de exigir o Abaixo o governo abre o caminho para que o PSOL se fortaleça.
- Fora Bolsonaro é uma consigna de agitação. Não é para a ação. As palavras de ordem para a ação são aquelas articuladas com a necessidade de salvar vidas: defender os profissionais de saúde que estão abandonados na primeira linha de defesa, proibir demissões, defender os salários de quem tem emprego, e construir a solidariedade.
A conjuntura mudou com o enfraquecimento de Bolsonaro, mas a situação reacionária ainda está longe de mudar. São dois níveis de abstração distintos na análise da realidade: estrutura social e superestrutura política. As relações sociais de força se alteram quando se precipitam embates em que, claramente, ocorre uma vitória ou derrota de uma das classes em luta.
Dentro de uma mesma situação existem diversas conjunturas. Uma análise só é marxista se a sua referência é a luta de classes. O que define uma situação é a relação social de forças, ou o estudo das posições relativas na estrutura da sociedade da burguesia, dos trabalhadores e setores oprimidos e da classe média. As relações sociais de forças são mais estáveis que as relações políticas de força. Porque as relações políticas de força, ou a posição relativa do governo, das diferentes instituições de poder, como o Congresso, o Judiciário, as Forças Armadas, os governos estaduais, os partidos políticos, na superestrutura da vida social se alteram, oscilam, deslocam-se mais rapidamente. Mas este descompasso é transitório.
A conjuntura mudou, embora a situação ainda seja reacionária, ou seja, a classe trabalhadora permanece, infelizmente, na defensiva. Até agora, foram os governadores que se fortaleceram, não a esquerda. Ignorar que a situação permanece reacionária seria uma ilusão, mas desconsiderar a mudança da conjuntura seria um erro gravíssimo. Podemos e devemos nos inspirar no bom e velho empirismo leninista para a análise.
Recordemos que o contexto histórico recente deve ser levado em conta. O golpe de 2016 triunfou com pouca resistência, o que só é explicável pelo que foi a orientação dos governos do PT e as divisões que geraram dentro da classe trabalhadora e na juventude. Viemos de derrotas acumuladas, e abriu-se uma situação reacionária. Lembremos, também, que nenhum governo cai, se não for derrubado, seja a “frio” ou a “quente”. Acontece que a “frio” é muito incomum. E a “quente” depende da entrada em cena das massas populares à chilena. Nenhuma luta está perdida antes que acabe. E a luta contra Bolsonaro está apenas começando.
Nunca será bastante sublinhar que a potência da resistência a Bolsonaro esteve no movimento de mulheres que construiu o #EleNão na hora mais triste de 2018, e entre a juventude que protagonizou o tsunami da educação em 2019. Serão, provavelmente, a primeira linha quando pudermos voltar às ruas.
Fora Bolsonaro é o centro da luta para salvar vidas. Por quatro razões: (a) porque a pandemia é de máxima gravidade; (b) porque Bolsonaro errou rude, deixou um flanco aberto, subestimou o medo da população diante de drama de saúde pública, abriu uma crise na relação com as instituições; (c) porque uma onda de protestos se iniciou mesmo nas condições de quarentena, com a ocupação das janelas e deve ser impulsionada; (d) porque o embrião de uma Frente Única de Esquerda ganhou força com a plataforma das Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular.
- Mudou a conjuntura, e ela exige lucidez e coragem. Audácia, audácia e audácia. Abriu-se uma brecha para a oposição, portanto, para a esquerda
Só que a luta para que a esquerda ocupe um lugar central na oposição a Bolsonaro não é simples. O Brasil contemporâneo nunca viveu as sequelas de uma guerra. O impacto de um cataclismo em poucas semanas, infelizmente, com a possibilidade de dezenas de milhares de mortes, é imprevisível. Será, provavelmente, um terremoto na consciência de dezenas de milhões.
Não há razão, contudo, para alimentar ilusões “facilistas” de que o processo de desgaste de Bolsonaro será gradual e constante, menos ainda que resulte, necessariamente no aumento da confiança na esquerda. Tudo estará em disputa. Bolsonaro reagirá e tem ambições bonapartistas. Dória e Witzel, que foram garantia da governabilidade de Bolsonaro, já se reposicionaram pela necessidade de uma unidade nacional de emergência contra Bolsonaro. Haverá ação e reação, e uma luta implacável.
Bolsonaro enfraqueceu, mas mantém apoio. Há uma oportunidade. A burguesia está dividida em torno de um tema central, o que é uma novidade. Não acontece desde 2017, quando do escândalo da gravação de Michel Temer com Joesley Batista na garagem do Palácio do Jaburu. Uma maioria da classe dominante apoia a tática de mitigação defendida pelos governadores e até por uma ala do próprio governo Bolsonaro, liderada por Mandetta.
Salvar vidas é um programa humanitário. Unidade na ação é legítima contra Bolsonaro. Mas não há um programa comum possível. A tática da Frente Ampla com Maia ou Dória prepara uma derrota que será fatal. A esquerda deve se diferenciar com programa próprio que precisa ser ordenado pela defesa da quarentena total e nenhuma demissão, porque todas as vidas importam. Deve exigir que, diante da crise, os mais ricos devem pagar pelo preço dela e, portanto, diante da tragédia, as grandes fortunas e as grandes corporações têm que ser taxadas. Por último, deve-se dizer que Bolsonaro tem que ser deslocado.
No início de março, a posição negacionista de Bolsonaro diante do perigo de uma pandemia catastrófica não era excepcional. Não era somente Bolsonaro que defendia a continuidade da atividade econômica, a facilitação do contágio em massa para uma rápida imunidade de grupo e o isolamento social dos idosos. Era compartilhada pelos governos dos EUA, do Reino Unido, e até da Itália e da França, e só o colapso do sistema hospitalar na Lombardia levou a um reposicionamento.
A posição de Bolsonaro contra o distanciamento social parece uma loucura, mas obedece a um método. É a expressão de uma visão de mundo. Responde à assustadora mistura de estratégia neofascista e ideologia ultraliberal. Naturalizava uma visão assombrosa de eugenia social. Há um debate na esquerda sobre a sanidade mental de Bolsonaro. É plausível discutir, seriamente, o problema, pois é indispensável saber contra quem lutamos. É claro que há que considerar, em alguma medida, o papel do indivíduo na história. O comportamento de Bolsonaro sugere uma mente paranoica, mas subestimá-lo constantemente tem sido um grave erro.
Ele é um monstro, não importa se é doido. Não será com um atestado médico de insanidade que será derrotado. Não é um bom critério de luta política priorizar a acusação dos inimigos de classe como dementes, maníacos, psicopatas. Socialistas não consideram que a sociedade se divide entre os saudáveis e os malucos. Não reduzimos nossa luta a uma avaliação clínica, psicológica. O bolsonarismo é uma corrente política neofascista que tem apoio de um terço da população. Mas, também, porque respeitamos aqueles que, entre nós, têm sofrimento psíquico.
- Aonde vamos? A situação vai ficar muito mais grave, antes de melhorar. Ela vai nos colocar diante de desafios perigosos. A possibilidade de interrupção do mandato se abriu, embora não seja a mais provável, porque não tem apoio de nenhuma fração burguesa importante. Mas a crise sanitária pode ser explosiva, Bolsonaro pode cometer erros muito mais graves, e as massas populares podem entrar em cena.
Viemos há cinco anos de acumulação ininterrupta de vitórias das forças reacionárias, mas não houve derrota histórica. Há que evitar tanto os otimismos “selvagens”, quanto os pessimismos “hipocondríacos”. Sejamos realistas, portanto, paciência revolucionária. Nossa aposta repousa na confiança de que em situações extremas as massas populares e a juventude liberam forças extraordinárias, e tiram lições políticas mais rapidamente.
Os cenários políticos serão condicionados pela evolução da crise sanitária e da crise econômico-social. Eles serão decisivos para prever os desdobramentos políticos. Os parâmetros objetivos que permitem projetar a dinâmica da evolução da pandemia no Brasil serão, essencialmente, a extensão e intensidade do contágio, e a taxa de letalidade.
Não há dados incontroversos, uma vez que não foram feitos testes em massa e é improvável que se consiga fazê-los antes de maio. Não está claro quais serão as terríveis dimensões da catástrofe, mas serão dramáticos, porque as projeções mais moderadas consideram dezenas de milhares de óbitos já na primeira onda, e as mais apocalípticas não menos de centenas de milhares.
O impacto poderá favorecer as inevitáveis conclamações à “unidade nacional” contra o vírus. Governos e mídia apresentarão o flagelo como inevitável, anistiando os governos em todas as esferas. Mesmo assim, é possível que esse discurso não seja suficiente para acalmar o mal-estar popular, pois associada ao crescimento da demanda por atendimento hospitalar, veremos as condições materiais de sobrevivência das grandes massas se deteriorar. A aprovação do programa de renda mínima de emergência para cinquenta milhões de pessoas será um fator de relativa atenuação da catástrofe, mas tem prazo curto de validade, porque uma segunda onda de contágio é previsível.
Nesse contexto, temos três grandes cenários políticos. O primeiro e mais provável, no momento, é que a pressão pelo enquadramento de Bolsonaro seja, em alguma medida, bem sucedida durante a crise. Enquanto ganha tempo, e procura sair do isolamento, Bolsonaro pode tolerar um “freio de arrumação” das alas em disputa, ou uma gestão do ministério articulada pelos generais do Planalto e mediada por Braga Neto. Seria um passo atrás, transitório, enquanto se verifica o ritmo da pandemia e suas sequelas econômicas.
Ninguém sabe, realmente, as negociações que aconteceram nessas últimas semanas na cozinha do Palácio, mas parece prevalecer um acordo de divisão de tarefas, em que Bolsonaro e sua ala neofascista, contrariados, aceitaram que a linha de Mandetta continue sendo aplicada, diante do jogo de pressões. Embora Bolsonaro tenha provado que é incontrolável. Essa hipótese é a que tem hoje o apoio explícito da maioria da classe dominante.
A segunda hipótese é que diante de um agravamento desastroso da pandemia, da insatisfação social crescente, do comportamento irresponsável de Bolsonaro, e o perigo de uma subversão revolucionária a chilena, uma maioria burguesa se constitua defendendo um deslocamento de Bolsonaro a “frio”, pelas regras constitucionais. Acontece que o Brasil não é a Argentina. Seria uma solução extrema para a burguesia brasileira, portanto, menos provável. A tradição da cultura política em Brasília é a negociação permanente.
O maior problema é que Bolsonaro nunca aceitará a renúncia. Não é o seu perfil político, social ou psicológico. Não é Jânio Quadros, embora venha ensaiando blefes bonapartistas, como o de 15 de março. Por outro lado, a urgência de manutenção da linha de distanciamento social não é a mesma do início dos anos 1960. Líderes como Bolsonaro lutam até o fim. Preferem a morte à rendição sem luta. Apelaria à mobilização de massas de suas hordas envenenadas pela ideologia neofascista.
Nessas circunstâncias, porque um animal político encurralado é muito perigoso, Bolsonaro poderia apelar para a decretação de Estado de sítio, a tentação golpista. Um deslocamento a “frio” teria que ser, portanto, uma intervenção implacável, cirúrgica, instantânea: um impeachment de emergência, feito às pressas, e negociado com o Supremo, “com tudo”. Ou uma combinação de impeachment parlamentar com julgamento do STF. Sempre existem advogados habilidosos para a arquitetura de um processo.
A terceira hipótese seria a abertura de um deslocamento a “quente”, uma derrubada revolucionária de Bolsonaro. Essa hipótese, que deve ser a estratégia do PSOL, e por ela deve lutar para construir a Frente Única de Esquerda é, por enquanto, infelizmente, muito improvável, por várias razões. O maior obstáculo é que ela não depende somente das sequelas do cataclismo sanitário e social, ou das barbaridades que Bolsonaro venha a cometer.
Para que a situação venha evoluir nessa direção são necessárias, também, outras três condições. A primeira é que a burguesia e seus representantes, tanto no Congresso Nacional e STF, como nos governos estaduais, venham a cometer erros de gestão da crise que levem a uma ruína nacional sem precedentes, um fracasso retumbante. A segunda é que as massas entrem em cena com disposição revolucionária de luta. A terceira é que os partidos de esquerda com maior influência não aceitem os cantos de sereia da classe dominante, e não abracem a estratégia quietista de deixar sangrar Bolsonaro até 2022, aceitando dar tempo para ele se recuperar, com medo de medir forças nas ruas. Ou, tão grave quanto, uma rendição diante de Mourão como um mal menor.
O papel da esquerda deve ser a defesa de uma saída anticapitalista. O Brasil precisa de uma esquerda com instinto de poder e um programa socialista.