Michael Löwy
Depois do episódio dos Coletes Amarelos, em 2018-19, que protagonizaram uma ampla e inédita mobilização de camadas populares marginalizadas contra as políticas neoliberais do presidente Emmanuel Macron, assistimos nos últimos meses a uma nova luta social, agora sob a direção dos sindicatos. Trata-se do protesto da classe trabalhadora diante de uma contrarreforma tipicamente mercadista do sistema de pensões. Ao invés de uma organização coletiva, baseada na solidariedade intergeracional, o governo propõe um sistema por pontos individual.
O novo formato rompe com toda a estrutura criada em 1944-45, no momento da libertação da França da ocupação nazista. Com o projeto definido por Macron, a idade de aposentadoria seria estendida, obrigando os idosos a trabalharem mais anos e impedindo os jovens, principais vítimas do desemprego, de conseguirem trabalho. Os mais prejudicados são trabalhadores como ferroviários, limpadores dos esgotos, enfermeiras etc. que, devido às difíceis condições de trabalho, tinham conquistado o direito a uma aposentadoria precoce, depois de anos de luta. Macron alega que a reforma é universal e suprime estatutos “privilegiados”. Mas ela mantém os privilégios de alguns setores muito específicos, como militares, policiais, magistrados, ministros etc.
Segundo os cálculos dos sindicatos, o tal ponto individual resultaria numa redução geral do nível das pensões, sobretudo para as mulheres e os trabalhadores precários.
Fundos privados
Um dos objetivos da reforma é obrigar uma parte dos trabalhadores a investir nos fundos de pensão privados para compensar a perda da pensão pública. Trata-se de um ótimo negócio para esses fundos “abutres”. O patronato, por meio de sua organização (Movimento das Empresas da França Medef), apoia com entusiasmo a reforma, sobretudo o aumento da idade de aposentadoria. Já que todos com o aumento da expectativa de vida vivemos mais anos, por que não continuar trabalhando? Se dependesse deles, os trabalhadores só se aposentariam depois de mortos.
A mobilização contra essa infâmia foi sem precedentes na história contemporânea da França. Durante dois meses, greves paralisaram boa parte do transporte urbano e ferroviário, refinarias de petróleo, hospitais, escolas e alguns setores privados. Estudantes, professores, advogados, médicos, enfermeiras, lixeiros, operários da indústria, artistas, condutores de trem e de ônibus se mobilizaram, com o apoio dos Coletes Amarelos, em enormes manifestações de centenas de milhares e às vezes milhões nas ruas da França. Foi notável a grande participação de mulheres e jovens. As dançarinas da Ópera de Paris se puseram em greve e com o apoio dos músicos deram espetáculos gratuitos para os manifestantes, em frente ao edifício histórico. A organização do protesto foi dirigida por uma frente sindical, incluindo a CGT, Solidários Unidos e Democráticos (SUD), um sindicato pequeno e muito combativo, a Força Operária (FO), mais moderado, mas indigando com a reforma. O sindicato mais reformista, a Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), hesitou constantemente entre apoio à reforma e à negociação com o governo.
Batalha da opinião pública
O protesto ganhou a batalha da opinião pública. Apesar da propaganda governamental, apoiada por quase toda a mídia, 62% da população se manifestou contrária à reforma. Quando a oposição de esquerda no Parlamento socialistas, comunistas e França Insubmissa exigiu um referendo para que a população pudesse se pronunciar sobre a reforma, 71% dos franceses se manifestaram a favor dessa proposta.
Ela foi recusada pelo governo, que teme perder uma votação democrática. Até o Conselho Constitucional, instituição pouco crítica, considerou o projeto de reforma altamente insatisfatório.
Qual a resposta do governo a essa mobilização? A mais brutal repressão policial da França moderna, desde o fim da guerra colonial (1961), com cinco mortos, dezenas de mutilados (perda de uma mão ou de um olho), centenas de feridos e milhares de prisões. Utilizando balas de borracha (proibidas no resto da Europa) e colocando milhares de policias armados até os dentes nas ruas, o governo não encontrou outro argumento em resposta ao protesto social a não ser o cassetete.
Passando com um rolo compressor sobre os sindicatos, a juventude, e sobre a maior parte da opinião pública, o governo está buscando aprovar a lei pelo Parlamento, valendo-se do chamado “decreto 49.3” para impedir o debate. Resultado político: queda vertiginosa da popularidade de Macron e de seu partido.
É curioso verificar que Macron segue exatamente o mesmo caminho do predecessor, François Hollande, do Partido Socialista, que também impôs, na marra uma reforma impopular das leis trabalhistas. Resultado: suicídio político de Hollande, que sequer se apresentou para reeleição. Até parece que esses senhores são heróicos kamikazes do neoliberalismo: sacrificam a carreira política pela nobre causa do Imperador, perdão do capital financeiro… no momento em que escrevemos estas linhas, Macron está impondo sua lei, mas existem ainda várias etapas antes que seja definitivamente aprovada.