Francia Márquez tornou-se a primeira mulher negra a ocupar o topo do poder executivo de seu país, como vice-presidenta no mandato de 2022–2026, ao lado do presidente Gustavo Petro. A coalizão Pacto Histórico saiu vitoriosa na eleição de junho de 2022 com 50,44% dos votos, o que representou o apoio de cerca de 11,2 milhões de eleitores que escolheram pela primeira vez na história da Colômbia um governo de esquerda (DAMACENO, 2022a).
Antes disso, Francia foi a terceira candidata à presidência mais votada no primeiro turno1, junto ao partido Polo Democrático Alternativo, com mais de 783 mil votos, o que seria equivalente a 14% do eleitorado. A mobilização em torno dela foi tão forte, que sua votação foi superior à do candidato de centro, Sergio Fajardo. Por consequência, Gustavo Petro, que foi o mais votado, não teve outro caminho a não ser chamá-la para ser sua vice-presidenta, caso contrário, ele não teria conseguido ganhar as eleições no segundo turno.
Quando a perguntaram a Marquez sobre o motivo da sua candidatura, ela respondeu que escolheu concorrer ao cargo “porque nossos governos deram as costas ao povo, à justiça e à paz”2 e também que seu maior temor “é que as pessoas continuassem elegendo os mesmos que perpetuam a violência”.3 (LOIAZA, 2022).
Francia Elena Márquez Mina, que prefere ser chamada pelo seu nome completo, para que os sobrenomes da sua mãe e suas/seus ancestrais sejam lembradas/os, nasceu no dia 1 de dezembro de 1981, no povoado de Yolombó, em uma montanha ladeada por dois rios na cidade de Suárez, departamento de Cauca, localizado ao sudoeste da Colômbia. Criada por sua mãe junto com mais 11 irmãos, quando criança sonhava em ser cantora, bailarina, atriz e até antropóloga cultural, pois tinha vontade de conhecer a fundo sua cultura e as raízes africanas. Acabou, porém, estudando Direito e dedicando-se às artes e às lutas (CÓRDOBA, 2022). Mãe solo, engravidou aos 16 anos do seu primeiro filho e aos 21 anos de sua filha, e assim se viu obrigada a trabalhar nas minas de ouro e como empregada doméstica para sustentar sua família (DAMACENO, 2022b).
De acordo com a sua biografia,4 Francia aprendeu com suas avós e avôs sobre a importância de suas raízes ancestrais com o cuidado e o cultivo da terra, e assim cresceu e se fortaleceu como mulher negra e afrodescendente, com valores, princípios e saberes ancestrais em um país extremamente racista.
“Sou parte de uma história de luta e resistência que começou com meus ancestrais trazidos em condição de escravidão. Sou parte da luta contra o racismo estrutural, sou parte daqueles que lutam para seguir parindo a liberdade e a justiça” (MÁRQUEZ apud MELLO, 2022).
Desde de cedo, Márquez conseguia mobilizar as mulheres de sua comunidade para sair às ruas e reivindicar seus direitos. Entre 2010 e 2013 foi presidenta da Associação de Mulheres Afrodescentes de Yolombó e em 1997 passou a integrar um dos movimentos negros mais importantes da Colômbia, o Processos das Comunidades Negras (PCN) e mais recentemente, em 2020 formou-se em Direito pela Universidade de Santiago de Cali, com o objetivo de fortalecer a luta com seu conhecimento (CÓRDOBA, 2022).
“Me tornei uma ativista no processo de comunidades negras onde aprendi a me reconhecer como mulher negra, a reconhecer meu cabelo, minha negritude, com orgulho, porque esse país nos fez sentir vergonha, nos fez sentir que somos responsáveis pelos infortúnios que tivemos que viver” (MÁRQUEZ apud LOAIZA, 2022).
A região em que Francia nasceu é marcada por conflitos entre o narcotráfico e os paramilitares, além da exploração ambiental por parte das transnacionais, principalmente da indústria de mineração. Por ter crescido vendo o garimpo ilegal destruir a mineração artesanal, pesca, agricultura e todo o sistema produtivo natural de sua comunidade, Márquez passou a denunciar os projetos extrativistas. Aos 15 anos de idade, no final dos anos 1990, ela participou ativamente da denúncia sobre os efeitos do megaprojeto de extensão de uma barragem no rio Ovejas (DAMACENO, 2022b). Mas foi em 2009, por conta da mineração, diante da ameaça de despejo à comunidade La Toma de Suárez, que Francia teve que assumir uma posição mais direta como liderança comunitária.
Organizou então uma ação para denunciar as atividades das transnacionais que estavam contaminando o Rio Ovejas com mercúrio, afetando toda a sua comunidade que ali pescava. Como o pedido foi negado duas vezes, ocorreram diversas mobilizações de resistência sob a liderança de Francia. E apenas em 2013, com grande pressão popular, a Corte Suprema de Justiça concedeu reparação coletiva para 27 conselhos comunitários da região afetada pela mineração (MELLO, 2022).
Nesse contexto, ela passou a ter maior visibilidade como representante legal do conselho comunitário de La Toma e as universidades começaram a chamá-la para dar palestras. Foi nesse momento que passou a receber as primeiras ameaças de morte e, ao escapar de uma tentativa de assassinato, foi obrigada a fugir com os dois filhos para outra cidade em 2014. Infelizmente, não foi a última tentativa e sobreviveu a mais outras três tentativas, o que a fez se tornar uma das vozes mais atuantes contra as políticas de morte (ALVES, 2022).
Francia também liderou a Marcha dos Turbantes, na qual 70 mulheres saíram de La Toma rumo à Bogotá, para exigir do governo a titulação coletiva de terras. Em 10 dias, andaram mais de 600 quilômetros e chegaram ao destino final mais de 80 mulheres e 30 jovens usando turbantes na cabeça (ALEJO, 2021). Protestaram em frente ao Ministério do Interior por quase 20 dias, obrigando o governo a expulsar as fazendas ilegais ao redor do rio Ovejas.
Quando perguntaram à Márquez qual foi sua motivação para não desistir dessa mobilização, respondeu que seu maior medo é que as pessoas parem de lutar por seus direitos e desistam de mudar a política (ALEJO, 2021). Foi por conta dessa ação que ela teve uma visibilidade mundial e ganhou o Prêmio Goldman, em 2018, conhecido como o “Prêmio Nobel do Meio Ambiente’’.
Márquez andou pelo país, na campanha para a Presidência, citando a importância de “Vivir sabroso” (viver de forma saborosa), com o intuito de fazer referência à filosofia de vida das comunidades e dos movimentos negros do Afro-Pacífico colombiano. Como ela mesma explicou, vivir sabroso se refere a viver sem medo, com dignidade e com garantia de direitos. Ligada à filosofia Ubuntu, de origem Africana Bantu que significa “sou porque nós somos”, colocou no centro do debate político a importância de dignificar a política e tornar visível “os ninguéns”: “venho do território dos ninguém, venho de territórios esquecidos em termos de investimento social, mas violados por uma política de morte”. Assim, Francia Márquez, vem denunciando e combatendo, da luta pelas comunidades negras à vice-presidência, as desigualdades raciais, sociais e de gênero, que historicamente foram produzidas de forma violenta pelos muros coloniais da sociedade colombiana.
Notas
1 Disponível em: < https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/06/negra-e-mulher-francia-marquez-quebra-paradigmas-ao-chegar-a-vice-presidencia-da-colombia.ghtml> Acesso em 07 mar. 2023.
2 Disponível em: <https://www.terra.com.br/nos/quem-e-francia-marquez-a-ativista-que-se-torna-a-primeira-vice-presidente-negra-da-colombia,f3b0e46027819022a4875e5d0ccca87061ggy0ao.html> Acesso em 10 fev. 2023
3 Francia Márquez em entrevista [online] realizada por Carlos Mayorga Alejo. Disponível em <https://mujeresypaz.poligran.edu.co/pdf/Francia-Marquez-entrevista.pdf> Acesso em 10 fev. 2023.
4 Disponível em: <https://www.franciamarquezmina.com/quienes-somos/> Acesso em 10 fev. 2023.
Referências
• ALEJO, Carlos Mayorga. Mujeres guerreras que buscan la paz: entrevista com Francia Márquez. Unidad de Investigación Periodísta, 2021. Disponível em: < https://mujeresypaz.poligran.edu.co/Francia.html> Acesso em 17 de fevereiro de 2023
• ALVES, Jaime Amparo. A esquerda colombiana e o governo das ninguéns. Brasil247,2022. Disponível em: <https://www.brasil247.com/blog/a-esquerda-colombiana-e-o-governo-das-ninguens> Acesso em 15 de fevereiro de 2023.
• CÓRDOBA, Willher Pino. Francia Márquez: das lutas sociais à vice-presidência da Colômbia. Disponível em: <https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/francia-marquez-from-social-struggle-to-the-vice-presidency-of-colombia/> Acesso em 16 de fevereiro de 2023.
• DAMACENO, Walmir. A esquerda colombiana e libertação da afro latino américa. 2022b. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/a-esquerda-colombiana-e-libertacao-da-afro-latino-america Acesso em 15 de fevereiro de 2023.
• DAMACENO, Walmir. Eleição de Francia Márquez a vice presidenta da Colômbia se traduz na libertação da afro latino américa. 2022a. Disponível em: <https://www.brasil247.com/blog/eleicao-de-francia-marquez-a-vice-presidenta-da-colombia-se-traduz-na-libertacao-da-afro-latino-america > Acesso em 15 de fevereiro de 2023.
• LOAIZA, Melissa Velásquez. Quem é Francia Márquez, vice-presidente eleita da Colômbia. CNN Bogotá, 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/quem-e-francia-marquez-vice-presidente-eleita-da-colombia/> Acesso em 20 fevereiro de 2023.
• MELLO, Michele. “Quem é Francia Márquez, a primeira mulher negra vice-presidenta na Colômbia? Advogada, ativista ambiental, mãe solo, Francia representa a cara colombiana excluída dos espaços de poder”. Brasil de Fato. São Paulo, 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/06/20/quem-e-francia-marquez-a-primeira-mulher-negra-vice-presidenta-na-colombia> Acesso em 20 de fevereiro de 2023.
Geinne Monteiro de Souza Guerra É Geógrafa, Professora do Ensino Básico, Pesquisadora – Ativista do Movimento Negro e Mestranda em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP).