Deputado federal eleito com a maior votação da história da esquerda brasileira, Guilherme Castro Boulos, 40, ou simplesmente Boulos, saiu das eleições de 2022 consagrado como a maior liderança pública do PSOL. Os 1.001.472 votos que ele recebeu nas urnas paulistas fizeram mais do que levar o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ao Congresso Nacional: consagraram a força popular de uma liderança em ascensão, que desponta como o principal herdeiro do espólio político do campo progressista no pós-lulismo, e criaram expectativas para sua atuação enquanto parlamentar e para as eleições subsequentes, de 2024, quando Boulos disputará mais uma vez, desta vez como um dos favoritos, a Prefeitura de São Paulo – a maior cidade da América Latina. Rejeitando o favoritismo, o líder sem-teto e psolista aponta, nesta entrevista para o editor-chefe da Revista Socialismo e Liberdade, Yuri Silva, as pautas que levará como prioridade para o Congresso Nacional nos próximos quatro anos, uma análise profunda sobre a extrema-direita mundial e os desafios de renovação da esquerda e os rumos do Governo Lula.
Yuri Silva – Qual a análise que você faz da eleição? Nós nos livramos do fantasma do fascismo, o bolsonarismo se consolidou como uma força política ou nem uma coisa nem outra?
Guilherme Boulos – A eleição foi uma grande vitória popular. Nós derrotamos Bolsonaro, que foi o pior presidente da nossa história, que organizou um movimento de extrema-direita no Brasil, com base social e que queria levar o país, se reeleito, para um caminho sem volta. Agora, derrotar o Bolsonaro foi apenas a primeira batalha. A segunda batalha vai ser o enfrentamento ao bolsonarismo, que vai continuar sendo necessário mesmo com o Lula no Governo. Eles vão ser a principal oposição ao Lula, uma oposição raivosa, mobilizada, peso nas ruas e nas redes. E nós vamos ter que ter muita força, organização e mobilização para derrotá-los.
YS- Ao que você atribui a expressão de votos que você teve, mesmo com todas as dificuldades que os movimentos sociais viveram nos últimos anos nesse governo? As pessoas estão sinalizando um desejo de uma Política diferente?
GB- Eu acredito que a nossa votação, sendo o deputado mais votado de São Paulo, deputado mais votado da história da esquerda brasileira, ela aponta para um desejo de enfrentamento ao bolsonarismo em São Paulo. Lembrando que o deputado mais votado há quatro anos foi o ‘Bananinha’ [Eduardo Bolsonaro]. E aponta também uma perspectiva de renovação, de construção de um caminho de esquerda, ligado ao trabalho de base, aos movimentos sociais, que é de onde eu venho e onde eu continuarei atuando, e com base no que vamos travar uma batalha no Congresso Nacional no ano que vem, com a perspectiva de a gente avançar em novas conquistas no Congresso e da maior cidade da América Latina, que é São Paulo.
YS- Como é que deve ser seu mandato na Câmara? Quais linhas serão prioridades?
GB- Nosso mandato vai ter três eixos prioritários. O primeiro é desenvolver e formular políticas de combate à fome. E nós já temos, a partir das Cozinhas Solidárias, desenvolvidas pelo MTST, um caminho, um exemplo que queremos que se torne política pública. Nossa ideia é apresentar um projeto para que as Cozinhas Solidárias se tornem políticas ligadas à agricultura familiar, à agroecologia, a projetos de distribuição de alimentos nos bairros, a hortas comunitárias nas periferias, enfim, nós vamos transformar isso em lei e política de Estado no Brasil. O segundo é uma pauta que levo há 20 anos no MTST, que é a moradia. O Governo Lula já sinalizou a retomada dos investimentos em moradia e a gente quer que isso aconteça também a partir de novos moldes, com direito à cidade, com desapropriação de imóveis no Centro, com a retomada de mutirões, com uma política nacional de atendimento à população em situação de rua. Então também vamos travar essa batalha no Congresso e aprovar leis nesse sentido. E uma terceira é um combate geral às desigualdades. Nós vamos estar na linha de frente. Nosso mandato vai expressar isso. A defesa de uma reforma tributária progressiva, com a taxação de grandes fortunas e lucros e dividendos, de políticas de retomada do investimento público para distribuição de renda no Brasil, de aumento e valorização real do salário-mínimo, ou seja, medidas que reduzam as desigualdades no país.
YS – Você teme sofrer resistências num Congresso conservador como o brasileiro, por causa da sua expressão como líder do MTST?
GB – Certamente nossa atuação vai sofrer resistência e nós nunca pensamos que seria diferente. Nós estamos levando o movimento social para um espaço acostumado a ser um espaço de lobbys empresariais, de lobbys financeiros, e nós vamos travar essa batalha com muita competitividade, enfrentando as bancadas do atraso, as bancadas dos bancos, das grandes empreiteiras, dos interesses financeiros, e enfrentando sobretudo o bolsonarismo que ainda estará presente no Congresso. Será uma boa luta.
YS- Muito tem se debatido sobre ocupar o governo Lula ou não, dentro do PSOL. Mas a grande questão é: qual o papel do PSOL histórico, considerando que estamos diante de um novo governo Lula e da ameaça permanente da extrema-direita?
GB- O PSOL teve um grande acerto esse ano, uma encruzilhada histórica, que era apoiar o Lula contra o bolsonarismo e Bolsonaro na campanha ou lançar uma candidatura própria. E o PSOL soube se posicionar, fez parte da frente ampla, ajudou a eleger o Lula e isso foi um acerto histórico do nosso partido. O PSOL tem caminhado cada vez mais — as últimas eleições mostram isso, a presença nos movimentos de juventude mostra isso — para ser um partido capilarizado, com trabalho de base, com uma base mais popular e periférica. Isso é muito importante. O PSOL é um partido que representa a renovação da esquerda brasileira. Para cumprir essa tarefa histórica, o PSOL precisa, ao mesmo tempo que mantém suas bandeiras, seus princípios e uma defesa intransigente das pautas populares, ser um partido que também saiba ampliar, que saiba ter unidade, que tenha capacidade de diálogo, inclusive para enfrentar o crescimento da extrema-direita no Brasil.
YS- Você acredita que o Governo Lula terá espaço para as pautas mais caras para a esquerda brasileira ou vai ter dificuldades diante da ampla Coalizão que foi feita para vencer a eleição?
GB- Eu acredito que o governo vai ser um espaço de disputa. Do mesmo jeito que ele se elegeu com uma frente ampla, ele se compõe com uma coalizão ampla. Terão setores liberais pressionando o governo, terão setores do agronegócio pressionando o governo, do centrão pressionando o governo, e nosso papel é justamente puxar essa corda para a esquerda. O papel do PSOL nesse momento é justamente levar a agenda política do país e do governo mais à esquerda. Nós vamos fazer isso no parlamento, nas ruas, em todos os espaços políticos em que a gente possa estar presente. Se só um lado atua, a correlação de forças desequilibrar. Nós vamos atuar para levar as pautas populares para o centro e levar a agenda do país à esquerda.
YS- Você entra nas próximas eleições como favorito a vencer e governar a maior cidade da América Latina, que é São Paulo. Isso lhe causa ansiedade? Qual a tarefa prioritária que está colocada para você, Guilherme Boulos, daqui até 2024?
Não existe favoritismo antes da hora. Nós estamos a um ano e meio das eleições de 2024. Nós não escondemos de ninguém nosso desejo de conseguir ganhar a Prefeitura da maior cidade da América Latina. Mas não de ganhar por ganhar, mas ganhar para enfrentar a desigualdade brutal que tem em São Paulo, para poder ter uma política decente de moradia, de segurança alimentar, uma política para as periferias, invertendo prioridades na cidade. Eu acredito que nós vamos construir uma frente progressista plural e potente para ganhar essas eleições em 2024. Mas antes de 2024 tem 2023 e nós precisamos vencer o desafio de derrotar o bolsonarismo, de reconstruir o Brasil, de fazer o Governo Lula dar certo e atender os anseios populares, para chegar em 2024 com muita força, não só para ganhar São Paulo, mas outras grandes capitais do país.
YS- Você acredita que as forças conservadoras vão se unir para disputar contigo ou vão divididas para as urnas? Muitas dessas forças fazem parte do Governo Lula também. Isso é um problema?
Não está claro ainda qual vai ser o xadrez eleitoral de 2024 em São Paulo. Mas acredito que vamos conseguir unir o campo progressista de um lado. E o outro campo terá o Ricardo Nunes, atual prefeito, tentando a sua reeleição junto com o centrão paulistano, que manda na Câmara há muito tempo, representado pelo Milton Leite. E o bolsonarismo provavelmente terá uma candidatura na capital. Esses serão os nossos adversários.
YS- O fascismo está crescendo no mundo e essa edição da Socialismo e Liberdade traz algumas análises sobre isso. Como você enxerga esse cenário mundial diante do avanço da extrema-direita em vários países?
A extrema-direita teve um ciclo mundial. Ganhou nos EUA com Trump, já tinha ganho antes o Brexit no Reino Unido, ganhou em alguns países europeus, chegou a ganhar na América Latina para além do Bolsonaro. A questão é que, de um lado, esse ciclo conseguiu organizar um momento de extrema-direita social, com base popular, e isso é preocupante. Aqui no Brasil, por exemplo, nem a Ditadura Militar, por 21 anos, conseguiu construir um movimento ideológico de extrema-direita na sociedade. E isso nós vamos precisar combater por um longo tempo, para poder isolá-los, para poder tirar parte da adesão popular que eles ainda têm, para poder travar a batalha cultural. Mas, por outro lado, esse ciclo também começou a demonstrar os seus limites. A extrema-direita, quando começou a ascender com Trump e ganhou no Brasil com Bolsonaro, vislumbrava um ciclo de longo prazo. Mas o Trump não se reelegeu, o Bolsonaro não se reelegeu, eles tiveram derrotas em outros países, ou seja, a extrema-direita também mostrou que a resistência que ela gera no campo democrático das sociedades é uma resistência forte e potente, como foi aqui no Brasil. Agora, os dados estão lançados e a batalha vai seguir. Cada vez mais vai ter um esvaziamento do centro político, e isso já acontece no Brasil e se expressou nas últimas eleições, e um debate polarizado entre o campo da esquerda e a extrema-direita disputando os rumos da sociedade.
YS- O que justifica esse crescimento do fascismo? O capitalismo não tem sido mais capaz de dar respostas para as pessoas ou há uma crise da esquerda no mundo também?
Esse crescimento da extrema-direita eu acredito que é a combinação de três fatores. De um lado, a incapacidade do capitalismo liberal de atender aos anseios mais elementares de sobrevivência da maioria do povo. O capitalismo tem produzido sistematicamente miséria, desamparo, crise econômica, desemprego, perda das condições regulares e estáveis de trabalho, com precarização e insegurança na vida das pessoas, e a extrema-direita soube em vários países traduzir isso com discurso nacionalista, anti-globalismo, e a partir disso mobilizar parte dos trabalhadores desiludidos. O segundo fator é uma crise política de representação, porque as democracias liberais também mostram, a cada dia, o seu limite. O sentimento de antipolítica, de rejeição à política, de descrença com as saídas políticas, é forte no mundo todo. Aqui no Brasil teve o componente específico da Lava Jato ainda. E isso deu à extrema-direita o discurso de salvadores da pátria, dos que viriam representar o povo contra os políticos. E um terceiro fator é um debate de conservadorismo moral que a extrema-direita incorporou, diante do crescimento de pautas fundamentais, como o antirracismo, como a pauta feminista, como a pauta LGBT, então se juntou um certo ressentimento social do homem branco, tradicional de classe média contra esses avanços. E a extrema-direita canalizou isso num discurso político e cultural. É evidente que a extrema-direita ter sido capaz de mobilizar para si parte da insatisfação econômica dos mais pobres e parte da insatisfação política com o sistema também revela um problema com a esquerda, que não disputou esse sentimento, que não foi capaz de disputar esse sentimento adequadamente. Em parte, porque, em muitas partes do mundo, em muitos lugares do mundo, essa esquerda mais excessivamente moderada, social-democrata – e aí peguem o caso da Europa – praticamente se confundiu com o sistema, adotou uma agenda neoliberal muitas vezes, se envolveu com o sistema político tradicional, de privilégios. Então isso coloca para nós, além do desafio de combater com unidade e de forma intransigente a extrema-direita, o desafio de renovação da esquerda, de construção de uma esquerda intransigente na defesa das pautas populares e dos direitos sociais, que volte a ser vista na sociedade como a defensora dos trabalhadores – que foi parte também do debate que permitiu o Lula ganhar a eleição esse ano. De uma esquerda que também tem um projeto ousado de reforma política, de mudanças no sistema político, de combate a privilégios e à elitização do sistema político, de aumento da participação democrática em maior intensidade, avançando para caminhos de democracia participativa, enfim, de uma esquerda renovada e conectada com as pautas essenciais da sociedade do século XXI. Nosso desafio é ajudar a gestar essa esquerda.