Luiz Arnaldo Campos Edson Miagusko
Finalizamos a elaboração deste texto no exato centésimo dia contado a partir do relato do primeiro caso de um vírus desconhecido e com alto poder de contaminação, identificado na região de Wuhan (China). Isso obrigou o governo chinês a decretar sérias restrições de isolamento e controle social para evitar a propagação. A maioria dos países ocidentais, incluindo o Brasil, relevou a epidemia como um problema chinês, resultado de costumes exóticos, num indisfarçável racismo res – suscitado contra esse povo oriental. O vírus só passou a ser levado a sério quando rompeu fronteiras e chegou à Europa, com o epicentro no Norte da Itália e cenas de enterros coletivos, falta de leitos e quarentena obrigatória decretada pelo governo desse país.
Em cem dias o novo coronavírus se disseminou em escala global. A epidemia saiu da Ásia, se espalhou pela Europa (Itália e Espanha como países com maior quantidade de casos), deslocou-se para os Estados Unidos e chegou ao Brasil e à América Latina.
Da China aos Estados Unidos, da Itália à França, da Espanha à Alemanha, da Índia ao Brasil, a maioria dos governos foi obrigada a impor medidas de quarentena suspendendo aulas, fechando indústrias e comércio, restringindo a mobilidade entre cidades e regiões, com a finalidade de achatar a curva da pandemia e evitar o colapso dos sistemas de saúde.
Efeitos imprevisíveis
Os efeitos da pandemia não são totalmente previsíveis, mas estima-se que haverá uma perda de vidas maior que na II Guerra Mundial, uma crise econômica maior que 2008 e o colapso de sistemas de saúde pelo mundo. Segundo dados da Oxfam, estima-se que mais de 500 milhões de pessoas possam retornar à pobreza.
Muitos dizem que o mundo nunca mais será como antes e que esta crise marcará os rumos da nossa geração. A imagem hiperbólica é carregada de sentido e faz cada um perceber a ameaça do vírus individual e coletivamente, agregando ao contexto atual de crise econômica, uma dimensão sanitária.
O mundo pós-vírus será muito diferente deste que estamos presenciando e esse futuro já está em disputa agora. Por enquanto, quase todos os governos do mundo, à exceção do brasileiro e poucos outros, buscam preservar os cidadãos com medidas de quarentena e injeção de recursos do Estado na economia. Antigos neoliberais e defensores dos mercados recorreram ao remédio do Estado para salvar a economia e os cidadãos da crise, com medidas semelhantes de aumento da dívida pública, socorro das empresas e distribuição de recursos para que os indivíduos permaneçam em quarentena.
Contudo, essa brecha que faz o neoliberal mais ortodoxo clamar pelos recursos estatais é apenas momentânea. O pós-pandemia já está em disputa neste presente insustentável que nos levou até aqui e da sua mudança dependerá o futuro.
O desastre da ofensiva
A pandemia chegou ao Brasil num cenário de baixo crescimento econômico e crise política do governo Bolsonaro. Os resultados medíocres do primeiro ano de governo, mesmo com as políticas de ajuste fiscal do ultraliberal Paulo Guedes, não reativaram a economia e tampouco geraram empregos, legando ao país um crescimento econômico pífio, alto desemprego e ataques aos direitos sociais e civis.
A chegada do vírus, em grande escala, se deu quando Bolsonaro tentava se manter na ofensiva, convocando grandes manifestações contra o Congresso e o STF, num movimento destinado a fazer avançar o autoritarismo, emparedar a esquerda, os movimentos sociais e instituições da República. A sirene de alarme da pandemia e as primeiras medidas de isolamento social melaram as anuncia – das manifestações da extrema direita. E as posições tomadas pelo ex-capitão para enfrentar a crise, num primeiro momento em compasso com líderes direitistas mundiais, como Donald Trump, dos Estados Unidos e Boris Johnson, do Reino Unido, tiveram um resultado desastroso para seu governo. Em primeiro lugar, o isolamento internacional.
Abandono do negacionismo
A violência da pandemia obrigou rapidamente os líderes dos EUA e Grã-Bretanha a abandonarem posturas negacionistas e aderirem ao isolamento social. Bolsonaro ficou sozinho, sendo alvo de ridicularização em todo planeta, acompanhado no seu despautério apenas por bufões grotescos como os presidentes da Bielo-Rússia e da Turcomenistão, tipos esdrúxulos, sem a menor relevância mundial. Em segundo lugar, abriu uma crise com o ex-ministro da Saúde, perdeu aliados importantes como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, o prefeito de Salvador ACM Neto e diversos cardeais do DEM. A insistência em menosprezar a epidemia e os apelos para a volta da normalidade como meio de salvar a economia erodiram o apoio na classe média que passou a expressar repúdio por meio de “panelaços” diários nas capitais e cidades médias do país.
O desgaste presidencial resultou no fortalecimento de alternativas de centro direita para as eleições presidenciais de 2022. Os governadores Dória “gerente privatizador” e Witzel “tiro na cabecinha” até ontem aliados, hoje se tornaram os principais opositores por fazerem o óbvio, sendo elogiados até mesmo por uma parte da esquerda.
Do mesmo lado estão o vice-presidente Hamilton Mourão, que na campanha eleitoral defendeu posições golpistas, o presidente da Câmara Rodrigo Maia, parceiro do ultraliberal Paulo Guedes tanto no ajuste fiscal, responsável por inviabilizar o enfrentamento da pandemia pelos brasileiros de baixa renda como na destruição gradativa da proteção social e desregulamentação do trabalho.
O capítulo dramático dessa ópera bufa foi o incensamento de, Luiz Henrique Mandetta, como novo herói nacional, simplesmente por fazer contraponto aos absurdos de Bolsonaro. Em seguida, o ministro foi demitido por brilhar mais que seu superior. No entanto, a insuficiência de leitos, a falta de insumos hospitalares, as dificuldades para o enfrentamento de uma pandemia que o governo antes observava passivamente, nada mais é do que o capítulo mais dramático de um modelo privatista de saúde, construído nas últimas décadas com o apoio relevante do ex-ministro.
Rainha da Inglaterra
Abandonado por aliados, o desgaste de Bolsonaro chegou a tal ponto que passaram a pipocar nas redes sociais rumores, até agora não confirmados, da transformação do presidente, pelos generais de seu governo, em uma espécie de” rainha da Inglaterra”, cabendo ao general Braga Neto, chefe da Casa Civil, o comando administrativo do Planalto.
Bolsonaro perdeu a oportunidade, que crises externas extremas abrem, de se tornar um líder capaz de unir e guiar o país no enfrentamento de um inimigo comum, que não distingue classes sociais. Porém, apesar de tudo, não está politicamente morto. O espetáculo diário promovido com suas caminhadas em locais públicos, espécie de reality show transmitido pelas redes sociais para os apoiadores, revela uma estratégia de “defensor da economia e dos empregos”, voltada simultaneamente para empresários e setores mais pobres da população. Desresponsabilizando-se pelo combate à pandemia e sendo extremamente vagaroso nas ações econômicas para minimizar os resultados do isolamento social, o presidente busca se eximir das medidas duras e necessárias para o enfrentamento do novo coronavírus.
Com a popularidade em baixa, procura de imediato fidelizar os 30% da sociedade, considerados o núcleo duro e aposta num futuro de baixa letalidade do novo coronavírus para capitalizar o que chama de “histeria” de seus inimigos e adversários políticos.
De qualquer forma, sairá da crise menor do que entrou. Se, como dizem vários autores, a pandemia pode ser comparada a uma guerra, o covid-19 tem para Bolsonaro o mesmo efeito do “General Inverno” que dizimou as tropas alemãs quando da invasão da União Soviética.
Ampliando a desigualdade
A política negacionista do governo brasileiro não se limita aos aspectos sanitários da crise e se estende para as medidas econômicas adotadas. Num momento em que bastiões do neoliberalismo reconhecem a falência do receituário neoliberal para se contrapor a uma hecatombe mundial e sem o menor constrangimento passam a adotar medidas keynesianas clássicas de garantia de emprego e renda para os trabalhadores e setores mais vulneráveis, a dupla Bolsonaro-Guedes permanece aferrada às ideias estapafúrdias como a facilitação de demissões e cortes salariais, em boa hora rejeitadas pelo povo e os parlamentares.
Uma primeira medida para destinar uma renda básica de R$ 600 para atender trabalhadores informais ou sem meios para obter renda no meio da quarentena foi aprovada pelo Congresso e começou a ser implementada apenas três semanas depois. Mas trata-se de algo insuficiente para enfrentar a crise. E ao se examinar mais detidamente o seu pacote, supostamente redistributivo, é possível notar uma série de arapucas. Segundo o Sebrae, dos 30% micro e pequenos empresários que tiveram de buscar empréstimos para manter os negócios, 29,5% ainda aguardam uma resposta das instituições financeiras e 58% tiveram os pedidos simplesmente negados, na segunda quinzena de abril. Apesar de o socorro aos bancos ter sido anunciado como meio de permitir o financiamento da produção, na prática, o sistema financeiro, numa atitude genocida, entesoura esses recursos destinados a minorar os efeitos da crise.
Os mantras neoliberais anteriores são incapazes de oferecer qualquer alternativa para enfrentar os efeitos da pandemia. A única saída para o país minimizar e enfrentar essa crise de longo prazo é uma política distributiva capaz de privilegiar o atendimento da ampla maioria dos brasileiros que vivem do trabalho, com papel indutor do Estado e medidas de redistribuição para fazer pesar os sacrifícios sobre aqueles que mais podem arcar com a crise.
Não é demais lembrar que o Brasil é o vice-campeão da desigualdade social no mundo com 1% dos habitantes concentrando 28,3% da renda nacional, atrás apenas do Catar. Segundo o mesmo relatório da Oxfam, cinco bilionários concentram a mesma renda de 100 milhões de brasileiros. A desigualdade brasileira é um dos principais entraves para a resolução dessa crise de largas proporções e só é possível salvar vidas se atentarmos para a centralidade.
A Luta contra a destruição
Nada melhor que esta pandemia para revelar o caráter de destruição nacional do governo Bolsonaro e a insânia que preside seus atos e orienta seus seguidores. Nas vésperas da Páscoa, como notou o jornalista Ricardo Kotscho, uma macabra carreata de apoiadores, com automóveis e motos importadas, além de caminhões de último tipo, circulou pela Avenida Pau lista com sirenes ligadas sem se importar com os vários hospitais lotados de atingidos pelo coronavírus.
Esse é apenas um símbolo de uma política, baseada na provocação e confrontação permanentes, indiferente à sorte da maioria da população. Porém, essa política débil, com diversos flancos expostos não tem sofrido um combate a altura por parte da oposição, particularmente do setor mais à esquerda. O PDT, de Ciro Gomes, se aferra ao projeto de construir um polo ao mesmo tempo, contrário a Bolsonaro e Lula e, com isso, consegue na prática, debilitar a luta contra o monstro genocida. Ao PSOL e o PT falta a elaboração de um programa de medidas econômicas para enfrentar a crise. Pois, se no terreno sanitário e contraposição entre o “fique em casa” e a política bolsonarista de “isolamento vertical” vem conseguindo ser feita, na área das medidas socioeconômicas, a esquerda até agora não conseguiu apresentar uma proposta que globalmente se confronte com os planos do governo, limitando-se a ações reativas contra os aspectos mais calamitosos dessa política. A lacuna precisa urgentemente ser preenchida, principalmente se considerarmos o cenário pós-crise onde o centro da política certamente será a disputa entre os distintos projetos de reconstrução do país.
Por outro lado, trazem vivas esperanças os esforços e mobilizações autônomas desenvolvidas por grupos e pessoas sejam nos “panelaços”, nas redes sociais ou em ações de solidariedade social. Com as ruas interditadas a criação de novos espaços de militância social deve ser vista com grande otimismo.
Um futuro imprevisível
Até agora ninguém sabe quanto vai durar e até onde irá se estender a pandemia, mas uma coisa é certa: os resultados já são catastróficos para a Humanidade. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o covid-19 já destruiu o equivalente a 14 milhões de empregos na América Latina e Caribe. Já os dados do Sebrae são ainda mais alarmantes. Para este organismo, só no Brasil, nove milhões de trabalhado – res já foram demitidos e, pelo menos, 600 mil micros e pequenas empresas fecharam as portas.
É difícil prever o quadro social e político que emergirá no planeta quando o coronavírus passar. Mais angustiante ainda se ouvirmos as vozes que preveem esta como apenas a primeira de uma série de pandemias. Certamente o atual padrão de neoliberalismo global sairá profundamente debilitado, mas, estamos longe de vislumbrar que alternativa se afirmará. Por um lado, o crescimento de propostas de extrema direita nacionalistas e xenófobas parece ser uma possibilidade, assim como não pode ser descartado um retorno a um keynesianismo mitigado que procure fazer frente a um período prolongado de privações. Porém, se há algo espantoso nessa pandemia global, como nos alerta Bruno Latour, é a suspensão, em questão de se – manas e em todo o mundo, de um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível redirecionar ou desacelerar.
Ficou provada a possibilidade de colocar fim à irracionalidade desse modelo responsável pela adoção de modos de vida predatórios e cada vez mais desiguais. Este acontecimento deve servir de estímulo às lutas contra novas catástrofes anunciadas como a crise ambiental e o aquecimento global. Para lutadores anticapitalistas do mundo inteiro é um motivo de alento.