José Luís Fevereiro
A figura do impeachment, tal como inscrito na legislação brasileira, por crime de responsabilidade, submetido à interpretação política de uma maioria parlamentar qualificada, não é um mecanismo de aprimoramento democrático. Desde o impeachment de Collor, passando pelo de Dilma e agora no Rio de Janeiro o processo aberto de impedimento do prefeito Marcelo Crivella demonstram que esse mecanismo tem servido à burguesia para que esta se livre de governos que se tornaram disfuncionais aos seus interesses.
A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandados executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise.
Concertação oligárquica
Collor foi deposto com a esquerda fornecendo a mobilização nas ruas e as oligarquias concertando entre si a formação de um novo governo que viabilizasse a estabilização do regime e a vitória eleitoral em 1994. Olhando retrospectivamente, se Collor não tivesse sido derrubado, a coalizão conservadora que o elegeu em 1989 chegaria às eleições presidenciais de 1994 desmoralizada e com enormes dificuldades de apresentar um candidato competitivo contra Lula. Provavelmente, não havia para a esquerda outro caminho em 1992, a não ser a derrubada de Collor, pela pressão da base social e pelas dimensões da crise. Mas, com exceção de Brizola, que relutou em aderir ao impeachment, nenhum setor da esquerda compreendeu as implicações dessa ação. Brizola vinha dos anos 1950 e assistira às tentativas de derrubar Vargas, de impedir a posse de Juscelino, de bloquear a posse de Jango e, finalmente, ao golpe de 1964. Certamente, o sexto sentido estava ativado para a defesa de mandatos populares contra manobras que os interrompessem. Brizola vinha de longe.
Dilma foi derrubada em 2016, apesar de todas as concessões que fez, mas, pela natureza da base social, não podia entregar tudo que a burguesia queria. Com a crise e consequente perda de popularidade, o destino dela estava traçado.
No Rio de Janeiro a movimentação pelo impeachment do prefeito visa arrumar a casa para a construção de uma candidatura do campo conservador em 2020, livre do ônus de defender o colapso administrativo de Crivella. Esse movimento não deve ter a colaboração da esquerda. Não nos cabe ajudar a resolver as crises políticas da burguesia.
Impeachment de Bolsonaro
Quando escrevo este texto, em 19 de maio, começa a circular pela grande imprensa e pelo Congresso a hipótese de derrubada de Bolsonaro. Algo que semanas antes entrava como mera especulação em conversas reservadas passa a ser tratado à luz do dia. Está medianamente claro que Bolsonaro é inepto para fazer avançar com consistência a agenda ultraliberal da coalizão da Casa Grande que o elegeu. O rápido desgaste do governo, o prolongamento sem fim da crise econômica e as ações grotescas da parte circense do ministério minam o apoio mesmo entre parte das classes médias conservadoras. É notória a movimentação do vice, o general Hamilton Mourão, para se colocar como capaz de retomar a agenda da burguesia sem manobras diversionistas e sem se envolver em polêmicas secundárias.
As extraordinárias manifestações de 15 de maio recolocam a esquerda no cenário político pela primeira vez em anos, com real capacidade de mobilização. As expectativas de fortes demonstrações de força são reais e estão longe das tradicionais avaliações bravateiras tão comuns em parte da esquerda. Esse é um capital político de peso. O sucesso dessas ações enfraquecerá mais ainda Bolsonaro, que por um lado busca também mobilizar os seus contra os inimigos imaginários de sempre.
Tempos acelerados
Os tempos da política estão acelerados. Fazer previsões nos últimos meses virou tarefa de enorme risco, mas confirma-se um cenário de grandes mobilizações contra a reforma da Previdência e os cortes de verba da Educação, bem como a crescente fragilidade de Bolsonaro em mobilizar os seguidores mais fiéis, com dificuldade de levar adiante o programa ultraliberal de Paulo Guedes. Nesse sentido, a burguesia avançará na tentativa de se livrar do capitão. Não será difícil encontrar as razões no laranjal da família, como o avanço das investigações contra Flavio Bolsonaro. Podem chegar até à comprovação de relações com as milícias cariocas, muito além da mera simpatia e das relações pessoais com alguns de seus membros.
Foi a aliança das mais diversas frações da burguesia que elegeu Bolsonaro, um outsider inconfiável, da mesma forma que em 1989 foi essa mesma aliança que elegeu Collor. Em ambos os casos atingido o objetivo de derrotar a esquerda, sobra para a oligarquia administrar a crise política decorrente do recurso a outsiders empoderados.
Nosso adversário não é Bolsonaro, assim como não era Collor, nem é Crivella. Nosso adversário é o projeto oligárquico excludente dirigido pela aliança das burguesias financeira e agrária que hegemonizaram as outras frações da burguesia, para quem esses atores nunca passaram de peões a serem usados e, se necessário, descartados. Não podemos nos contentar com o descarte dos peões.
Novas eleições
O acúmulo de forças que estamos obtendo nas ruas não pode servir de linha auxiliar à resolução da crise política por parte da elite. Sempre que está falou em pacificação da política foi para reestabelecer um arranjo que reorganizou as forças e impôs a paz dos cemitérios ao andar de baixo.
A vulgarização do impeachment, a naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usada impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.
No cenário nacional o general Mourão se desloca. Na política e no futebol quem se desloca recebe. Nosso papel é o de negar-lhe terreno. No agravamento da crise política devemos contrapor ao impeachment a defesa de novas eleições. Nenhum acordo sem novas eleições. Nenhum voto a favor de impeachment sem novas eleições.
“Hoje como ontem o impeachment será queima de arquivo”.