Luciana Genro
A Operação Lava-Jato desmontou o PMDB do Rio, mandou para a cadeia o todo-poderoso Eduardo Cunha, o exgovernador Sergio Cabral, o principal executivo da Odebrecht e o burguês que foi a cara do capitalismo brasileiro. Quando alguém imaginava que no regime burguês brasileiro, marcado pelo castigo e a pena contra os pobres e negros e pela impunidade dos burgueses, teríamos tais figuras atrás das grades? Pois aconteceu. E tem gente que se reivindica de esquerda e acha ruim. Mas um dos méritos inegáveis da Operação Lava-Jato é ter ampliado o debate sobre criminologia e seletividade do sistema penal. Antes restrito ao ambiente acadêmico progressista, o assunto entrou no debate político. Mas, sob o pretexto de defender um direito penal menos seletivo, há quem tenha se colocado na defesa dos envolvidos na Lava-Jato, chegando a caracterizar a operação como uma ação do imperialismo e de ter por objetivo destruir o PT. Há quem diga até mesmo que Sergio Moro é fascista, numa grave e perigosa banalização do fascismo.
Aqueles que são contra a Lava-Jato, se levassem seu raciocínio até o final deveriam propor uma campanha pela libertação de José Dirceu, Cunha, Cabral e Eike. Está difícil? Parece absurdo? Pois então. Na lógica há a demonstração por absurdo. Se a premissa leva a uma conclusão considerada absurda então é porque a premissa está errada. Este é o caso.
Aqui não quero polemizar com os advogados constituídos pelos réus e investigados, visto que estes estão fazendo o seu trabalho, devidamente remunerado. Nem mesmo com os “advogados políticos” membros da cúpula petista. Destes é compreensível esta postura, visto que a situação para eles é mesmo dramática e este discurso de viés progressista é muito útil para elidir o verdadeiro problema do envolvimento de seus quadros em corrupção. Mas há muita gente bem intencionada que embarcou neste discurso, pessoas que mesmo não sendo do PT acabam, querendo ou não, fazendo o jogo petista. É com estes que pretendo dialogar.
O principal e mais importante exercício de poder do sistema penal se realiza dentro de um modelo de arbitrariedade concedida pela própria lei.
Começo recorrendo ao clássico Eugênio Zaffaroni para definir o exercício do poder nos sistemas penais. A primeira constatação é que a própria lei possibilita o espaço da arbitrariedade e da seletividade. Zaffaroni ensina que a seletividade, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social são características estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. Ele diz ainda que “o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. (…) Os órgãos executivos têm ‘espaço legal’ para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem.”
Nilo Batista segue na mesma trilha, apontando que “o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. (As exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário).”
Criminologia, braço do controle social
A criminologia positivista promoveu uma separação da sociedade, não só entre os homens delinquentes e não delinquentes, mas entre as classes delinquentes e não delinquentes. O delinquente é estereotipado e seu “perfil” criminoso transmitido por todos os aparelhos ideológicos, no conceito de Louis Althusser, através do senso comum e da ciência supostamente neutra e objetiva. Ela tornou-se uma “ciência” do controle social. Lola Aniyar de Castro explica:
“Hoje, como dissemos, sabe-se que a criminalização começa pelas formulações legais (vertente “legal” da criminologia), o que se faz basicamente segundo o pertencimento de classe. O chamado princípio da legalidade ou de reserva fará a distribuição dos ilegalismos, colocando uns em leis penais e outros em leis administrativas, civis ou mercantis, basicamente orientado no sentido da proteção da ordem burguesa inaugurada pela revolução francesa.”
Pode-se afirmar também que se desenvolve um sistema penal subterrâneo, paralelo ao aparente e positivado.
“Assim, encontramos uma não criminalização de condutas de grave dano e custo social, características do papel das classes hegemônicas no sistema global. Em contrapartida, o sistema penal aparente criminaliza prioritariamente condutas que são mais facilmente localizáveis no âmbito das classes subalternas. Essa constatação decorre não apenas das incriminações, mas da maneira como estas se articulam com a rede sancionatória (tamanho da pena, qualidade da sanção: penal ou administrativa, civil ou mercantil; caráter estigmatizante; procedimentos privilegiados, etc).”
É assim que o traficante se torna o grande vilão. Não são os políticos corruptos, os criminosos do colarinho branco ou os sonegadores os alvos da guerra. Estes são crimes mais comuns no âmbito das classes privilegiadas. Também não é o grande traficante, o dono do avião, do helicóptero ou dos contatos internacionais para o transporte das grandes quantidades de droga. O alvo são os traficantes que vivem nas favelas, mesmo que em mansões, e que fazem parte da classe de delinquentes perigosos.
O problema não é a Lava-Jato
Partindo desta análise chegamos facilmente à conclusão de que o problema do sistema penal e do processo penal no Brasil está longe de ser a lava-Jato. Ao contrário, no que diz respeito ao alvo, ela é a exceção que confirma a regra, penalizando membros da burguesia e da casta política que normalmente estão a salvo do sistema. Os crimes que ela persegue também não são os clássicos crimes que atingem os mais pobres, como o roubo ou o tráfico. É a corrupção, crime característico das elites políticas e econômicas. Crimes que, portanto, merecem uma persecução penal dura.
Além disso, a ideia de que há uma seletividade partidária não resiste a uma mínima análise. Não somente petistas estão sendo investigados. Cabral e Cunha, líderes da quadrilha no Rio de Janeiro, estão merecidamente presos. Caso não estivessem, certamente estariam agindo para impedir as investigações. Os nomes de Serra, Aécio e Alckmin também estão aparecendo, embora a mídia dê a eles um tratamento bem mais ameno. Também estão presos os líderes da quadrilha que estavam do lado de lá do balcão, como os executivos das empreiteiras sendo Marcelo Odebrecht o símbolo maior e Eike Batista, o queridinho do capitalismo tupiniquim. Não é pouca coisa.
Sobre as prisões, informações divulgadas pelo Ministério Público Federal (MPF) em setembro de 2016 revelam que, naquela data, dos 239 acusados, apenas 9% estavam presos – e 3% presos sem condenação. Considerando que 40% dos presos no Brasil são provisórios, isto é, não foram julgados, podemos perceber que as prisões preventivas da Lava-Jato estão dentro da “normalidade” do sistema, sendo até mais justificadas do que tantas outras, pois se tratando de pessoas com poder e influência a possibilidade de interferência no processo é real. Das 453 decisões em habeas-corpus levadas a tribunais superiores, mais de 95% confirmaram as decisões da Lava-Jato.
As eventuais arbitrariedades cometidas (como a condução coercitiva de Lula ou algumas prisões preventivas espetaculosas) não são características específicas desta operação. Ao contrário, pelo fato de os investigados terem recursos financeiros para pagar ótimos advogados, a maioria dos excessos têm sido corrigidos nas instâncias superiores, o que raramente ocorre com os investigados por tráfico, por exemplo, que são a imensa maioria da massa carcerária (um em cada três presos). Aliás, a lei de drogas, promulgada por Lula em 2006, trouxe um aumento de 8,7% (45.133) dos presos por tráfico para 32,6% (182.779) em 2017.
Além disso, o horror, mais uma vez revelado pela matança nos presídios, colocou no devido lugar as alegações de “estado de exceção” feitas por acusados que contam com os advogados mais bem pagos do país. Sim, o sistema penal e prisional do Brasil vive em estado de exceção há muito tempo, embora muitos só tenham percebido agora.
É preciso exigir a continuidade das investigações, doa a quem doer
Isso não significa que possamos confiar no Poder Judiciário para “salvar” o Brasil. De jeito nenhum. Ao contrário, normalmente o Judiciário é o algoz de quem mais precisa de apoio. Mas as contradições e necessidades do modo de regulação do sistema abrem brechas, como a que estamos vendo agora com a prisão de quadrilhas do colarinho branco e políticos das altas rodas do poder. O establishment político é o alvo.
A esquerda que não explorar as brechas e as contradições do regime político não vai ter sucesso na disputa com os políticos do sistema que se fantasiam de anti-sistema, como Bolsonaro e Trump, ou mesmo com políticos de direita, hipócritas ou não, que fazem da luta contra a corrupção uma bandeira. Eles estão aí para capturar a insatisfação e esterilizá-la.
Corrupção não é um detalhe, não é um deslize. A corrupção é responsável pelo desvio de bilhões, tira médicos dos postos de saúde e professores das escolas. Essa luta é nossa, sempre foi. Aliás, o PT ganhou a classe média com esta bandeira. Perdeu quando repetiu o passado. Agora é a hora de construir o futuro.