Sílvia Ferraro
Vozes quase unânimes na esquerda concordam que a hegemonia do PT chegou ao fim. É uma trajetória que se iniciou no movimento pró-PT no início da década de 80, ancorado em um forte ascenso operário-popular que sacudiu a ditadura militar e fez emergir os sujeitos proletários com suas organizações na cena política brasileira.
Mas o ciclo que se iniciou exuberante terminou de forma trágica. O PT definha aos olhos da classe que ele representou sem esboço de resistência. O signo progressivo do classismo e da rebeldia foi paulatinamente se adaptando ao regime do capital. Foram anos de transmutação em que prevaleceu a estratégia do pacto social e do pragmatismo parlamentar.
É importante considerar que Lula mantém um capital político que se revela nas últimas pesquisas. O líder das greves operárias ou a memória do lulismo, que fez pequenas concessões aos setores mais explorados, ainda é capaz, sem grandes paixões, de capitalizar o voto popular. Num momento de fortalecimento da direita, o grande desafio da esquerda coerente será ter a capacidade de enfrentar o projeto reacionário de aumento do patamar de exploração, porém, sem cair na reedição do pacto lulista.
Analisar a trajetória petista é essencial para entender como um grande movimento social emancipador foi derrotado pelas forças reacionárias. Grandes oportunidades foram desperdiçadas por uma direção que preferiu pactuar com o mercado financeiro, com o agronegócio e com as empreiteiras do que com a força que vinha das greves e das ruas.
Há muitos exemplos de como esta direção, tendo José Dirceu e Lula à frente, foram responsáveis por este curso. Em 1992, diante da mobilização espontânea pela derrubada de Collor, José Dirceu orientou o diretório petista a preservar o calendário eleitoral, o mesmo se repetindo em 1999, quando os movimentos sociais davam sinais de recuperação ao fazer a grande Marcha pelo “Fora FHC” em Brasília. A partir da derrota eleitoral de 1989, a direção petista abraçou a estratégia de ganhar as eleições cacifando Lula como inofensivo ao capital imperialista. A aliança do operário com o empresário José de Alencar e a Carta ao Povo Brasileiro sacramentaram o pacto com a intenção de apaziguar aqueles que estavam ansiosos pelas transformações sociais.
Daí em diante, o desmonte das mobilizações e a cooptação dos movimentos sociais, combinado com pequenas concessões como a redução do desemprego, o aumento do salário mínimo, o Bolsa-Família e a expansão do acesso às universidades, conseguiram camuflar o escândalo dos governos petistas: a transferência de imensas riquezas para as mãos dos mais ricos. Não foi à toa que Lula disse que os bancos nunca ganharam tanto como com o seu governo e a oposição burguesa até 2012 foi comportada e silenciosa. Para além disso, a troca de interesses com as empreiteiras colocou o PT na vala comum do fisiologismo.
Mas as consequências da crise econômica ficaram insustentáveis a partir de 2012 e impossibilitaram a continuidade da sustentação do pacto entre o PT e as frações burguesas.
Governos de colaboração de classes só se sustentam quando as frações dominantes saem ganhando. A ilusão que o PT construiu de que é possível governar para todos, cumpriu um papel regressivo. Imobilizou a classe trabalhadora para resistir ao próprio golpe e fez retroceder a consciência popular para não diferenciar a direita da esquerda ou os patrões dos trabalhadores. O classismo dos anos 80 se esfarelou e sua ruína produziu o imobilismo e a cooptação dos movimentos comandados pela direção petista.
Em meio à crise, o PT mais uma vez fez uma opção conservadora. Quis manter o pacto a qualquer custo, vendeu a alma pela confiança do mercado, anunciou o ajuste fiscal e a retirada de direitos. Esta foi a política que abriu o caminho para as forças reacionárias e conduziu a classe trabalhadora ao matadouro, sem ter condições de reagir. Infelizmente, não é só o PT que está pagando o preço de sua traição. O golpe colocou em piores condições a correlação de forças para o conjunto dos explorados e oprimidos e a direita avança com o seu veneno para cima de toda a esquerda.
Ser coerente com esta análise implica em lutar com todas as forças para que o proletariado brasileiro não seja enganado novamente. Uma geração inteira viu seus sonhos arrancados e a descrença tomou conta de muitos. Muita energia revolucionária se perdeu e se dissipou.
A esquerda que permaneceu combativa em oposição ao PT, e que também lutou contra o golpe, tem a responsabilidade de apresentar um projeto e construir uma alternativa que possa apaixonar as novas gerações que já estão resistindo aos planos de retrocesso. São os jovens que estão ocupando escolas e universidades, são as mulheres e LGBTs que saem às ruas contra os Cunhas e Bolsonaros, são as famílias que ocupam os prédios e terrenos vazios das grandes cidades, mas são também os operários, hoje mais receosos em fazer greves com o medo do desemprego, e os mais de 12 milhões de desempregados que viram presas fáceis do discurso neopentecostal. Junto a estes também estão aqueles que estão morrendo na luta contra o agronegócio. Os indígenas, os quilombolas e os sem-terra foram acuados e estão sendo exterminados por um projeto que priorizou a expansão das comodities.
Apaixonar as novas gerações e a multiplicidade de movimentos implica abandonar definitivamente o velho e dar espaço ao novo. Será necessária firmeza para não reeditar saídas como Frente Ampla e nem sucumbir a Lula 2018, se esta hipótese se concretizar. Ao mesmo tempo será necessário exercitar a generosidade para construir a unidade da esquerda socialista disposta a abrir mão de projetos sectários.
Dois desafios se colocam para aqueles que irão trilhar o caminho da ousadia.
O primeiro é a construção de um programa que possa dar sentido a todas as lutas. Um programa de mobilização permanente que se enfrente com a estrutura injusta, desigual e subalterna do capitalismo brasileiro. Um programa de transição “que combine as tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista”.
O outro desafio é tornar este programa vivo e dedicar energia militante ao trabalho de base. Sem organização não é possível construir esta força viva de carne e osso que possa ser o sujeito coletivo de sua emancipação.