David Adler
“Toda política é política internacional”, Juan Domingo Perón costumava dizer. Existem poucos casos que ilustram melhor essa máxima do que a eleição presidencial de 2022 no Brasil. Seu resultado não apenas molda a trajetória da democracia brasileira, mas também da integração latino-americana e da reconfiguração da ordem internacional em geral.
Lula disputa voltar ao poder no contexto de um sistema mundial em crise. Somente nos últimos quatro anos da presidência de Bolsonaro, uma série de crises se espalhou pelos sistemas internacionais financeiro, alimentar e de saúde – sem nenhuma liderança no cenário internacional para enfrentá-las.
Em 2020, a pandemia de Covid-19 assolou o mundo. “O vírus não conhece fronteiras”, dissemos. Mas, em vez de construir uma resposta de saúde global, nossos governos acumularam vacinas, aumentaram os lucros farmacêuticos e rejeitaram os pedidos vindos do Sul Global para compartilhar tecnologias médicas que teriam salvado centenas de milhares de vidas.
Em 2021, a conferência da ONU sobre mudanças climáticas, COP26, foi realizada em Glasgow. “Esta é literalmente a última chance de salvar o planeta”, disse até mesmo o então príncipe Charles aos presidentes e primeiros-ministros reunidos na Escócia. Mas nossos governos não conseguiram produzir um plano comum para limitar o aquecimento global a 1,5°C, condenando as regiões mais pobres do mundo a sofrerem inundações, secas e migração forçada de seus lares e terras ancestrais.
Lula disputa volta ao poder no contexto de um sistema mundial em crise financeira, sanitária e alimentar
Em 2022, o aumento do preço dos alimentos criou uma crise de fome ”sem precedentes” em todo o mundo, de acordo com o Programa Alimentar Mundial. Mas enquanto 828 milhões de pessoas agora vão para a cama com fome todas as noites, países como os Estados Unidos da América desperdiçam até 40% de seu suprimento de alimentos que, não consumidos, são enviados para apodrecerem em aterros.
Lula concorre à Presidência em meio a essas crises sobrepostas. E embora seus votos tenham vindo de milhões de brasileiros no primeiro turno, seu possível mandato vem de povos de todo o hemisfério e de todo o mundo. Do Paquistão à África do Sul e ao vizinho Uruguai, líderes de todos os continentes agora esperam que Lula e um novo governo brasileiro liderem uma transformação do sistema internacional.
Essa transformação não é mais urgente em nenhum outro lugar do que na América Latina. Ao longo dos últimos cinco anos, novos governos progressistas chegaram ao poder apesar das crescentes táticas radicais e autoritárias da direita reacionária, da guerra jurídica à midiática e à física. No entanto, esses projetos até agora não conseguiram se coesionar em uma nova visão para a integração regional. Da sobrevivência da CELAC ao ressurgimento da UNASUL, a tarefa de Lula é tanto articular o programa de integração internacional quanto empregar sua vontade política para reconstruir essas instituições.
Infelizmente, é verdade que Lula continua sendo a única figura política com credibilidade, legitimidade e capacidade de falar através das divisões ideológicas, geopolíticas e geográficas que atravessam a América Latina hoje – e, portanto, é a única figura que pode capitalizar sobre o breve ciclo político que levou ao poder governos populares de Tijuana à Patagônia.
No entanto, a mesma urgência se aplica ao nível global. A guerra na Ucrânia revelou o quanto o Sul Global é vulnerável a conflitos entre grandes potências em qualquer canto do mundo. A transformação do sistema internacional – em direção a uma maior resiliência, autonomia e soberania – não é um luxo de esquerda. É uma questão de sobrevivência para bilhões de pessoas ao redor do mundo.
A questão é, no entanto, quanto peso a liderança de Lula pode suportar. Os desafios que o Brasil enfrenta são muitos, desde a fome e a educação, até o desenvolvimento industrial. Um novo governo terá suas mãos ocupadas realizando reformas domésticas e confrontando inimigos domésticos. Existe um risco real de que as questões internacionais sejam relegadas a uma prioridade menor diante desses desafios locais.
A responsabilidade, portanto, é das forças progressistas do mundo não esperarem pela palavra ou ação de Lula, mas organizar-se agora de tal forma que o próximo governo de Brasília não seja solicitado a fazer todo o trabalho pesado, mas possa se encaixar em processos de construção e renovação institucional em curso. É somente por meio do exercício combinado e simultâneo de vontade política que podemos ter sucesso para enfrentar as crises internacionais na escala que elas exigem.
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David Adler é coordenador geral da Internacional Progressista