Por Djalma Nery e Monica Stival
Vivemos, certamente, tempos de crises. A profunda crise de representação e representatividade, somada às crises política e institucional presentes na sociedade brasileira, e inseridas no contexto de crise global das democracias, nos leva a buscar alternativas que nos permitam construir um futuro melhor. Todas elas demonstram a necessidade de uma profunda reforma do Estado.
A elite política nacional (dirigentes de órgãos partidários, parlamentares estaduais e federais, figuras públicas de destaque, entre outros) está entre as mais privilegiadas do mundo, seja na comparação com pares de outras nações ou com a realidade do trabalhador(a) médio(a) brasileiro(a). Além disso, essa elite não poderia estar mais distante do perfil de nossa população em termos de gênero, raça, diversidade, faixa etária e nível socioeconômico. Vivemos, em verdade, uma inversão que se materializa em maiorias minorizadas por um modelo de representação predominantemente masculino, branco, heteronormativo e ocupado por representantes do capital e seus lacaios.
Neste cenário distópico surgem caminhos que buscam colaborar para a superação destes desvios e para construção de uma sociedade mais democrática, justa e participativa. Um deles é a experiência de mandatos coletivos e compartilhados. Ainda que não efetivamente regulamentados juridicamente, a experiência tem sido uma forma de ressignificar a institucionalidade por meio de arranjos políticos mais plurais e representativos do que aqueles usualmente oferecidos pelo modelo democrático/eleitoral brasileiro. E com o crescimento e amadurecimento do modelo na última década, já é possível realizar alguns apontamentos e observações no sentido de destacar o que tem funcionado e quais têm sido os principais desafios para sua consolidação no Brasil.
Ricardo Alves Cavalheiro, Willian Quadros da Silva, Saulo Francisco Paganela e Leticia Elena Ito apontaram no livro ‘Mandatos coletivos e compartilhados: desafios e possibilidades para a representação legislativa no século XXI’, editado pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS), que “no atual cenário de crise de representatividade, consideramos os mandatos coletivos e compartilhados uma inovação no processo de formulação de alternativas e de tomada de decisão legislativa e, também, por serem um modo de exercício de cargo eletivo em que o representante legislativo se compromete a dividir o poder com um grupo de cidadãos”. No texto, eles analisam que “o compromisso básico do representante, nesse modelo, é o compartilhamento do poder decisório com um grupo de representados”. E seguem: “Ao invés de mera consulta, debate ou enquete com os cidadãos, o mandato vincula-se à vontade do grupo, seja ela medida via agregação de preferências (votação) ou construção de consenso (deliberação). Sendo assim, enquanto em um mandato tradicional o legislador tem a liberdade de votar de acordo com sua consciência e seus interesses, no mandato coletivo ou compartilhado, o legislador consulta algumas pessoas para então definir seu posicionamento frente a matérias que estão tramitando nos parlamentos.”
É válido mencionar que o presente artigo, para além da análise, leitura e diálogo com a literatura da área, parte da observação e participação empírica no Mandato Popular Coletivo, eleito para vereança na cidade de São Carlos (SP) em 2020, encabeçado e coordenado pelo ativista ambientalista Djalma Nery, co-autor do presente texto, escrito em parceria com Monica Stival, professora de filosofia política na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Boa parte das reflexões aqui presentes foram extraídas do acúmulo e prática deste mandato, que tem conseguido avançar com relevante êxito no sentido de desenvolver esse novo modelo de representação e, ao mesmo tempo, contornar determinadas dificuldades encontradas em experiências anteriores. O Mandato Popular Coletivo tem garantido um funcionamento prático e produtivo acima da média dos mandatos parlamentares convencionais, obtendo grande aceitação popular.
Mandatos coletivos e representação política
O significativo aumento nas propostas de mandatos coletivos de 2016 para cá pode ser compreendido como resultado de um movimento amplo por maior horizontalidade nos coletivos e movimentos, na intenção de dissolver os entraves da democracia representativa. Porém, a ideia de que a representação é contrária a uma democracia efetiva deve ser discutida com cuidado e responsabilidade.
Não é difícil notar que há um limite na organização guiada por uma horizontalidade absoluta, que exige a busca de consensos contrapostos à deliberação por maioria. O democratismo desse modelo idealista esbarra na necessidade de decisões práticas e, principalmente, na atribuição de responsabilidades que a representação traz consigo. A representação política é a concentração da vontade geral em uma ou um representante, justamente porque há uma diversidade na vontade geral que raramente se resolve em uma unidade prática.
São muitos os exemplos de experiências importantes que tiveram o mérito de levantar a necessidade de solucionarmos a crise de representação de nossos tempos da forma mais solidária possível. Elas mostram a importância de repensar a representação individual do modelo liberal que organiza nossa “democracia restrita” e a necessidade de garantir a efetividade da participação da população, sem deixar de cumprir os requisitos do modelo político e legal vigente. Diversas candidaturas coletivas ‘não-eleitas’ dispersaram-se após os processos eleitorais; diversos mandatos coletivos eleitos também acabaram por se dissolver em face de divergências, desacordos, quebras de expectativa, entre outros motivos. O que existe de comum entre as experiências mais exitosas? E o que existe de comum entre as experiências menos exitosas?
Como se trata de algo relativamente recente, experiências distintas têm colaborado com diversos aprendizados em face de desafios encontrados, apontando algumas pistas para sua superação. Algumas das grandes questões são:
1) como equalizar perspectivas antagônicas ou mesmo divergentes no interior de um mandato em que o poder de decisão é partilhado?
2) como reunir em um mesmo modelo a abertura à coletividade, acompanhada de um processo democrático e participativo de tomada de decisões, e a capacidade de responder de maneira ágil às muitas demandas populares que chegam a um mandato parlamentar?
3) como lidar de maneira coerente e realista com as limitações impostas pela estrutura do Estado brasileiro, que ainda não reconhece efetivamente a existência dos mandatos coletivos?
Diante dos questionamentos acima, podemos apresentar algumas reflexões que são fruto da observação de experiências concretas e que servem como orientações para a construção de propostas de candidaturas coletivas.
Pluralidade sim, mas com coesão
Não basta reunir pessoas a esmo, sem elementos de conexão ou alinhamento prévio. As chances de que isso leve a problemas futuros é enorme. Ainda que a pluralidade seja um elemento importante e desejável para ampliar o universo de relações de um mandato, é profundamente recomendável que os/as participantes do grupo pertençam ao mesmo partido e, no caso de partidos formados por correntes ou tendências internas, que seja também conformado por pessoas de um mesmo campo ou agrupamento interno. Ainda que divergências sejam naturais em qualquer espaço, um mandato parlamentar não comporta antagonismos que possam levar à paralisia ou dificultar em muito suas ações. Um mandato coletivo não é apenas a ‘soma de suas partes’, que pode ser decomposta pela atuação segmentada de seus integrantes; existe um projeto unitário que baliza e orienta um mandato e o transforma em algo mais forte e coerente do que a simples soma das partes.
Para além da unidade partidária, que mitiga antagonismos e conflitos de interesse mais profundos, é desejável que os membros tenham alguma relação prévia e/ou experiência de militância entre si, de forma que se conheçam minimamente e que, de preferência, tenham desenvolvido algum tipo de relação de confiança. Este é também um fator que colabora muito para a minimização e aceitação de divergências.
Ao coletivo, o que é do coletivo. Equilibrar equivalência e eficiência
A quantidade de demandas e tarefas vinculadas a um mandato parlamentar é imensa e de toda sorte. Saber realizar uma adequada triagem entre essas tarefas, classificando-as conforme prioridade, tipo, prazo, relevância, responsabilidade etc, é um dos procedimentos mais benéficos à gestão de um gabinete. Algumas demandas são de alto impacto ou complexidade, como elaborar e acompanhar a tramitação de um projeto de lei; outras são cotidianas e simples, como requerer determinada informação ou agendar uma reunião. O número de propostas (das mais variadas complexidades) apresentadas por outros mandatos e aprovadas em plenário de casas legislativas maiores é gigantesco. Esse grande afluxo de documentos, propostas e tarefas faz com que seja virtualmente impossível dizer que um coletivo de pessoas (ainda que pequeno) irá analisar e deliberar tudo de forma conjunta e horizontal. Mais ainda quando o coletivo todo não está profissionalmente vinculado ao gabinete, o que traria proximidade e melhores condições para uma análise mais criteriosa das proposições.
Logo, separar e comunicar de forma transparente quais decisões devem de fato passar por toda a coletividade e quais, de ordem mais prática e cotidiana, serão encaminhadas por grupos menores ou até individualmente, é uma boa prática que confere credibilidade, funcionalidade e responsividade aos mandatos coletivos. A partir dessa organização, pode-se atribuir autonomia diferenciada aos diferentes, para que os que trabalham no dia a dia do gabinete (e o/a parlamentar) tenham tranquilidade para encaminhar determinadas questões sem consultar toda a coletividade do mandato a cada passo. Isso faz com que o grupo possa se concentrar nas decisões estratégicas e centrais, tais como: elaboração e apresentação de projetos de lei; definição de posicionamentos em votações importantes para o grupo; ações de maior visibilidade; planejamento de médio e longo prazo. Ao mesmo tempo, o dia a dia do gabinete (onde chegam a maioria das demandas populares) fica mais fluido e apto a responder aos chamados e demandas da população.
Não é demais mencionar, também, que o fato de não existir regulamentação dos mandatos coletivos faz com que seu representante legal continue respondendo jurídica e administrativamente por tudo que acontece, fazendo com que algumas responsabilidades e prerrogativas simplesmente não possam ser compartilhadas. Isso traz, consequentemente, a necessidade da compreensão de uma autonomia ampliada em alguns aspectos em face destas responsabilidades, que recaem exclusivamente sobre um indivíduo, o qual deve ter primazia para definir ações que possam ter impacto direto e irreversível sobre sua própria vida. A existência de hierarquia ou de lideranças não é um problema em si. Os problemas são consequências da concentração excessiva de poderes ou dominação. Tratar com naturalidade que determinados processos e assuntos precisam ser encaminhados por indivíduos que os acompanham mais de perto (ou que possuem mais acúmulo e/ou condições para decidir sobre eles) pode ser muito saudável para o dia a dia de qualquer coletivo.
Ser realista, franco e verdadeiro com o público e com o mandato
É normal que o entusiasmo, aliado à falta de conhecimento sobre as limitações concretas impostas pela legislação e pelo arranjo jurídico brasileiro, possa nos induzir a apresentar hipóteses ou situações inexequíveis e, até mesmo, nos enredar em circunstâncias desagradáveis, ao perceber que aquilo que foi proposto ou apresentado não poderá ser realizado na prática. Quem se propõe a de fato ocupar um espaço legislativo e cumprir esta importante tarefa tem o dever de informar-se e, mesmo sem experiência prévia, apresentar algo factível e praticável de fato.
Paralelamente à luta pela regulamentação dos mandatos coletivos (não uma regulamentação qualquer, mas uma que avance para além das conquistas simbólicas, como a possibilidade de inserção de nome em urna), é muito importante que o diálogo com a população, antes e após as campanhas, seja franco e verdadeiro em apontar as possibilidades e limites de atuação dos mandatos coletivos. É preciso frisar que a única pessoa que responde legalmente pelo mandato é seu titular, que será o único autorizado a fruir das prerrogativas parlamentares como discursar em plenário, assinar documentos, votar, participar de comissões, entre outras ações. Qualquer coisa que leve as pessoas a pensarem que estão elegendo ‘diversos parlamentares’ (ou ‘coparlamentares’) com um único voto é contraproducente e pode induzir ao erro, o que irá gerar expectativas irrealizáveis em face das limitações do Estado.
Isso não significa abrir mão da transformação estrutural dos arranjos políticos e formatos de representação, mas lidar com as limitações atuais e tensionar para que avanços verdadeiros aconteçam sem correr o risco de aplicar, mesmo não intencionalmente, qualquer forma de estelionato eleitoral junto à população. É importante destacar que os mandatos coletivos são acordos políticos e, mesmo com existência de estatutos, reconhecidos ou não em cartório, seguem a legislação eleitoral brasileira vigente. Para aumentar a chance de que este acordo político seja cumprido, é desejável que se apresente um funcionamento sólido, coeso e transparente para o mandato, garantindo, assim, as indiscutíveis vantagens políticas de uma valorização da coletividade.
Portanto, aliar representação, coletivo deliberativo e coesão política é um desafio urgente na conjuntura atual das crises mencionadas no início deste artigo. Entendemos que os mandatos coletivos e compartilhados, em especial a partir dos apontamentos aqui apresentados, podem apontar caminhos práticos para o combate à elitização da política e para superação de diversos desafios e entraves da institucionalidade brasileira.
Em um próximo artigo, poderemos apresentar detalhes sobre a experiência de coletividade e representação (e alguns acúmulos) do Mandato Popular Coletivo de São Carlos, eleito em 2020 com a maior votação do pleito, e que funciona com base em um conselho deliberativo coordenado pelo vereador Djalma Nery (PSOL) – e no qual cada um de seus membros tem direito a voz e voto. O mandato organiza a ampliação do modelo, agora em âmbito estadual, para as eleições de 2022.