Milton Temer
“Para que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar”. Essa expressão-desabafo serve de prólogo provocativo de uma das teses apresentadas ao VII Congresso do PSOL. A frase não é da lavra dos redatores do documento. Trata-se de uma das geniais frases sínteses repetidas por Eduardo Galeano (1940-2015), um uruguaio universal, cuja obra maior chega à meia-idade.
Na verdade, a frase também não é dele, mas de um amigo, o diretor de cinema argentino Fernando Birri. Ela se perderia numa conversa entre os dois, se Galeano não a tivesse espalhado pelo mundo, fazendo com que muitos a considerem sua. Galeano era isso, um contador e processador de histórias meio perdidas, que seu verbo genial tornou quase marca de uma América Latina que busca falar com o mundo e consigo mesma.
Há exatos 50 anos, Galeano abria as veias da América Latina, expondo a história dos esquecidos desde a colonização até os dias em que a obra veio à luz. O livro reconta e junta os cacos de uma história fragmentada de 500 anos em que vergonhas e orgulhos se alternam, num ritmo alucinante. A frase do início deste texto também embute uma pequena história, que aqui vai por inteiro. “A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
Ocupação estrangeira
As veias abertas da América Latina que, para alguns, só encontra paralelo nos Cem Anos de Solidão, de Garcia Márquez, na tradução de tudo o que se viveu nesse continente em séculos de ocupação estrangeira. Documento-ficção ou romance-histórico, é difícil definir, tal a genialidade criativa no estilo de seu autor.
Mas, para quem conviveu com Galeano, sentou com ele em um bar ou em um estúdio de televisão, mergulhou em seus livros posteriores, em seus vídeos com curtas, porém incisivas, observações e formulações, não resta a menor dúvida. Ninguém mais do que ele poderia ter produzido aquela obra, que veio a público, despretensiosamente, quando ele mal passava dos 30 anos de idade.
Há versões distintas sobre as supostamente bizarras relações posteriores de Galeano com sua obra magna. Numa das biografias encontradas no Google, ele renegaria o que chamaria de estilo de uma esquerda árida. Para outros, ele nunca teria relido a obra.
Tudo é atropelado, no entanto, pelo prefácio da edição brasileira que a LPM nos presenteou em 2011, celebrando os 40 anos de vida do livro. Fico com este Galeano perene que mais uma vez expõe a capacidade insuperável de síntese na reafirmação de tudo o que denunciou na edição original:
Seguindo a voz de quem manda, os países do Sul do mundo devem acreditar na liberdade de comércio (embora não exista), em honrar a dívida (embora seja desonrosa), em atrair investimentos (embora sejam indignos), e em entrar no mundo (embora seja pela porta de serviço).
Difícil imaginar que esse trecho seja de alguém que tenha deixado de ter acordo com o que escreveu em 1971, tal a semelhança de intensidade e contundência de acusação em tão poucas linhas.
Fico com o Galeano que escreveu e sempre se manteve no rumo político e intelectual do Las venas abiertas de America Latina.
Amizade marcante
Esse Galeano imprevisível, mas retilíneo nos fundamentos foi aquele que conheci na casa de Arthur José Poerner, amigo comum e um dos citados como pessoa fundamental para que o livro se tornasse realidade. Arthur Poerner, jornalista fecundo, meu colega de Colégio Naval, e um dos responsáveis pelo meu mergulho no jornalismo posterior à cassação como oficial de Marinha legalista, após o golpe de 1964. Em sua vasta produção, consta o primeiro levantamento histórico sobre o movimento estudantil brasileiro, O poder jovem. Iniciei ali uma amizade com Galeano, a quem mais tarde vim a entrevistar em programa político que dirigia e apresentava na TVE, nos anos 1980, e de quem recebi apoio escrito na candidatura de Senador em 2014.
Foi com a parceria, inclusive, que vivi um dos momentos importantes de minha vida jornalística. Vivíamos o ano de 1972, quando um contrato rompido com a Bloch Editores me propiciou uma aventura política continental, a bordo de um Fusca, no ano seguinte. Estabeleci uma rota que se iniciava pelo Uruguai e continuava na Argentina, Chile e Peru. Em Buenos Aires, Pablo Piacentini, jornalista importante do Clarin, colocou-me em contato com os Montoneros, então legais, no governo de Héctor Cámpora. Dali, passei para o Chile a partir de Bariloche, numa viagem que terminou no Peru, dos militares nacionalistas no governo Alvarado, onde entrevistei o chefe das Forças Armadas, General Maldonado.
Pois bem, e voltando ao grão. Em Montevidéu, foi com Galeano que passei os dias de contatos políticos terminados em entrevista com o General Liber Seregni, democrata nacionalista, que seria apresentado como candidato à presidência da República pela Frente Ampla, nascida um ano antes e também celebrando o cinquentenário neste 2021. Seregni seria preso pela ditadura que se instalara em seguida (1973-85). Quando cheguei a Santiago, pude reencontrar Salvador Allende, já presidente, que me fora apresentado anos antes pelo próprio Galeano em Montevidéu, durante uma viagem turística. Por que faço esse relato pessoal?
Cidadão internacional
Porque eles comprovam, para mim, o cidadão internacional injetado em Galeano. Do Brasil ao Chile, passando por outros países do continente; conversando com presidentes, ou se internando entre as nações indígenas da Bolívia, ele sempre está na intimidade do que depois coloca em texto.
Quem quiser qualificar Galeano ideologicamente terá dificuldades em fazê-lo se procurar alguma declaração autodefinidora. Mas poucos revolucionários da esquerda radical continental terão feito tão eficaz denúncia do capitalismo como a origem de todas as sequelas e desigualdades sociais, segundo uma leitura materialista dialética da história, na qual em momento algum se veta a citação de credos e religiosidades. Ou seja, a contestação ao capitalismo vai bem mais longe do que a recuperação do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais delas consequentes. Da imaginação às tradições culturais, nada escapa às percepções irrefreáveis de um desbravador da História.
A história da luta de classes no continente é mostrada em sua origem no Veias abertas, a partir dos colonizadores. Inclusive mostrando como, em condições de inferioridade militar, conseguiram se impor sobre as nações Incas, Aztecas e Maias, dando início a um processo de rapinagem de minerais valiosos que se estendeu por séculos, e desempenhou papel fundamental na acumulação primitiva do regime capitalista na Europa.
A partir desses primeiros passos, passando pelos períodos posteriores, não só no continente espanhol como na realidade da colonização brasileira, Galeano nos abre a estrada que denuncia a esteira nada original repetida na África genocídios e eliminação de patriotas rebeldes contra essa dominação. Relê-lo é para mim como retomar uma longa conversa interrompida em torno de um Tannat.