Por Everton Vieira*
Para pensarmos em um movimento de sexualidade e gêneros dissidentes para o socialismo e a liberdade, precisamos voltar no mínimo 50 anos antes da Revolta de Stonewall. Ela é considerada por muitos, não por acaso, o marco zero da luta organizada das dissidências de sexualidade e de gênero. Em 28 de junho de 1969, as bichas, sapatões e travestis de Nova York resolveram enfrentar a violência policial. Mas a história da luta organizada por direitos para as dissidências de sexualidade e gênero começou no mínimo 51 anos antes dos acontecimentos do bar Stonewall Inn. Nós não reconhecemos esses acontecimentos como marco zero de nossas lutas. Em 1918, segundo ano da Revolução de Outubro, houve pela primeira vez na história um Estado industrializado que descriminalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, aprovava a socialização dos trabalhos domésticos e o direito ao divórcio. Os primeiros anos após a tomada de poder pelos comunistas deixavam um recado claro de combate duro às estruturas do patriarcado.
Vida curta
Infelizmente, esse período em que a Revolução socialista dava as mãos a um novo momento histórico para as dissidências de sexualidade e gênero não teve vida longa. No final da década de 1920, havia muitas coisas em disputa na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Uma delas foi a promoção incansável do nacionalismo russo, a consolidação da orientação do regime de socialismo em um só país, acabando com a perspectiva de revolução internacional, e também com os avanços no combate ao patriarcado. De um lado tínhamos fortes defensores da lei soviética declarando que o Estado e a sociedade não deveriam interferir em questões sexuais, exceto em casos de envolvimento com menores de idade, uso de violência ou coerção. Importantes nomes da vanguarda bolchevique e referências para os estudos feministas marxistas, como as revolucionárias Clara Zetkin e Alexsandra Kollontai, eram defensoras ferrenhas dessa tendência.
Do outro lado, lutando contra a manutenção da descriminalização do que eles chamam de sodomia, tinham as forças políticas ligadas a Josef Stalin, que falavam abertamente contra as políticas dos primeiros anos da Revolução de Outubro. Foi na URSS, sob o stalinismo, que, por meio do Artigo 175, essas forças restabeleceram a perseguição sistemática a população LGBT+ como política de Estado e criminalizaram novamente a “sodomia”, ou seja, todas as identidades e sexualidades marginalizadas. As justificativas eram um punhado de teorias reacionárias e patriarcais e a covardia de associar as sexualidades e identidades dissidentes ao fascismo. Dessa forma, bissexuais, gays, lésbicas e transgêneros passaram a ser para o stalinismo tão repugnantes quanto os fascistas. Máximo Gorki, um aliado declarado de Stalin, em seu artigo “Humanismo proletário” argumentou: “Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade tem sido declarada delito social e é severamente castigada. Na Alemanha já existe um lema que diz: ‘Erradicando os homossexuais, desaparece o fascismo’.”
Tabus e ataques
No chamado mundo liberal as coisas iam de mal a pior. Perseguições violentas, prisões, torturas com choques autorizadas como a “cura gay” daquele tempo e até castrações como no caso mundialmente conhecido de Alan Turing, na Inglaterra. Tantos anos de tabus e ataques sistemáticos às formas de sexualidade não reprodutoras e todas as normatizações que se estabeleceram por meio disso tornam o mundo um lugar extremamente violento para todas as sexualidades e gênero dissidentes. Esse resgaste histórico serve para fazermos um balanço real, sem paixões ou distorções: a disputa sobre a liberdade das relações de sexualidade e gênero era polêmica não só no mundo liberal capitalista, mas também entre os comunistas. Foram os comunistas os primeiros a produzirem políticas em um Estado moderno que protegessem essas populações do reacionarismo patriarcal preservado e cultivado nas sociedades capitalistas. Apesar dos avanços e recuos, o movimento socialista tornou-se novamente, com o enfraquecimento da influência stalinista e de tudo que ela representa, fundamental na luta antipatriacal e, por consequência, na defesa dos direitos e da vida da população LGBT+.
Quem são nossos inimigos
Quando vivências subjetivas se tornam inquestionáveis, temos um problema. A questão não é e nunca foi levar em conta as “vivências”, mas usar essa subjetividade como uma verdade sacrossanta que precisa ser religiosamente acatada. Deixamos a reflexão: se um senhor reacionário que vivenciou a ditadura militar me falar que esta foi ótima, preciso então “respeitar sua vivência”? É certo que as vivências são fatores a serem considerados em qualquer análise, mas considerá-las como verdades puras e inquestionáveis é um erro. Falar disso é mexer em vespeiro na militância. Há um grupo que decretou: “Não fale da opressão que você não sofre!”. Essa é uma “lógica” perversa para a construção de um projeto popular, pois é individualista e nada tem a ver com a esquerda socialista. Nosso “local de fala” não é o nosso lugar para falar, tampouco privatização de temas, mas a partir de onde a gente fala e o local de onde falamos está contaminado para o bem e o mal por nossas subjetividades. Para rebater, por exemplo, o discurso homofóbico, alguns militantes acabam escolhendo o caminho mais fácil e igualmente despolitizado de atacar o falante no lugar da fala. Depois que nos acostumamos a usar características físicas, comportamentais ou culturais para dizer quem pode falar do que, essa prática foi se generalizando e se propagando, sendo invocada até contra as falas sinceras e empáticas. Isso gerou rachas e até “privatizou” certos assuntos para determinadas pessoas, uma evidente influência de ideias liberais dentro de espaços que reivindicam o socialismo. Há uma confusão entre visibilidade e protagonismo com autopromoção, nesse ponto parece que o individualismo liberal já tomou conta. É preciso aprofundar a discussão sobre os limites da política de representatividade e o equívoco em criar ou reforçar categorias estáveis de opressão e identidade, ou então deixaremos a guarda baixa perante acusações de deturpação cabal da representação. Se nós assumimos posições casuísticas, abrimos espaço para contradições concretas, como são os casos nos quais a direita usa pessoas negras, de periferia, mulheres e dissidentes de sexualidade e gênero e as manipulam contra as lutas de combate as opressões. Criar categorias estáveis de opressão que detém a “verdade”, apresentando vivências “inquestionáveis” e “capazes” de produzir as mesmas sínteses, deturpando o conceito de “local de fala” para privatizar a fala e decidir quem pode falar sobre o quê, é a inadmissível interdição pura e simples do debate. É um atraso que precisa ser combatido de forma organizada e contundente
Articular a nossa classe como principal aliada
É preciso entender o processo de consciência e a tarefa na construção do poder popular e as limitações da classe, ajudando a superá-las. Não precisamos de falas destrutivas, que surgem a partir de um discurso autoritário, banhado em uma interpretação equivocada, tentando substituir o argumento lógico por um ataque puro ao falante. O conceito de desconstrução do argelino Jacques Derrida fala exatamente sobre como produzir deslocamentos sem partir de uma fixidez de mim e do outro. Se não há uma preocupação em entender e ajudar a superar as limitações e preconceitos impostos estruturalmente à classe trabalhadora, então não há compromisso com a luta de classes, tampouco com a construção de um partido de massas. Tal melindre pequeno-burguês é contraproducente e acaba engessando a possibilidade de avançarmos enquanto classe e não enquanto indivíduos. Portanto, precisamos construir uma militância de dissidentes de sexualidade e gênero que seja também anticapitalista e com uma tática clara para tornar a classe trabalhadora a nossa principal aliada na luta contra a opressão, que não se curve às ideias liberais e entenda a diferença entre instituições que elaboram o discurso contra dissidentes de sexualidade/gênero e trabalhadoras e trabalhadores que são meros reprodutores desse discurso. Não podemos cair no erro de fortalecer uma militância liberal, incapaz, por exemplo, de se posicionar contra o genocídio de Israel ao povo palestino. A luta pelos direitos das dissidências de sexualidade e gênero só será plenamente vitoriosa quando se tornar uma luta de todos e todas as oprimidas contra a opressão capitalista. Por isso é preciso que a militância socialista esteja disposta a disputar o vivo e enérgico movimento conhecido como LGBT+ para uma estratégia revolucionária e socialista. Portanto, devemos ser radicais nos propósitos e amplos no método.
*Everton Vieira é pedagogo e membro da Executiva Nacional do PSOL.