Lisete Arelaro
Estamos vivendo situações tão caóticas no Brasil, que se torna difícil analisar com objetividade os fatos e particularmente o processo de destruição dos sistemas públicos de atendimento social à população. No entanto, não restam dúvidas de que o atual governo tem uma particular predileção com o desmonte da Educação, da Ciência, da Tecnologia e das Artes.
Durante a campanha eleitoral, o atual presidente já dava sinais dessa neurose, pois apresentou como prioridades duas ações: a criação de 200 escolas cívico-militares e a condenação do professor Paulo Freire ao ostracismo, por vincular a falta de qualidade do ensino público brasileiro ao uso das ideias de nosso patrono da Educação. Naquela época, ameaçava substituí-lo por outra figura, sob o argumento de que seria um “comunista”. Logo, a acusação se generalizou por todas e todos que o admiravam. Após a eleição, partidários do presidente apresentaram um Projeto de Lei, propondo que o novo patrono fosse Padre Anchieta.
Por que Paulo Freire é considerado tão demoníaco, apesar de ser o educador mais condecorado do país e o único brasileiro lido entre os cem maiores pensadores em língua inglesa?
Porque Freire sempre defendeu que todo ato pedagógico é político. Isso implica opções sobre o que nós, professoras e professores, militantes e educadores populares acreditamos ser o futuro da nossa sociedade. Duas outras ideias decorrem desse pensamento.
Primeira, Paulo Freire destaca que a educação e a ciência são atos coletivos, que envolvem grupos que acreditam nas mesmas ideias e trabalham na construção de perspectivas comuns.
Segunda, que não há pensamento político que não gere um processo de conscientização, e esse é o pensamento que permite o conhecimento da realidade. Por isso, esse pensamento é crítico e, como tal, implica diálogo permanente com os diferentes grupos sociais que viabilizem um projeto de transformação social.
Equívocos em série
A escolha do Ministro da Educação já indicava que alguma coisa estava muito equivocada para o grupo que assumia o governo. O primeiro foi Ricardo Vélez. Trata-se de um colombiano que, além de ser amigo de Olavo Carvalho, extravagante guru do presidente, só tinha dado aulas num colégio militar. Não conhecia nada da realidade acadêmica universitária. Sua atuação foi desastrosa, o que levou a substituição em menos de três meses.
Dentre tantos absurdos, três das suas declarações merecem destaque, pois elas nos ajudam a entender o projeto que estavam tentando implantar no país.
Primeira: mudar os livros didáticos para revisar a maneira como se tratava a ditadura militar e o golpe de 1964. Vélez considerava que tais processos eram minimizados e perdiam a importância histórica de movimento cívico militar que haviam mudado no Brasil. Além disso, o presidente afirmava não ter existido tortura no período da ditadura. Como protestamos, mostrando que se tratava de fatos incontestáveis, documentados e que parte das pessoas torturadas estavam vivas para testemunhar, passamos a ser chamados de “marxistas culturais”. O governo entendia ser essa uma acusação pejorativa para nos desqualificar. Na verdade, essas atitudes já indicavam que haveria um controle das informações e que as consideradas verdadeiras por eles deveriam estar presentes nos livros didáticos. O debate público sobre a obrigatoriedade do estudo do criacionismo como uma teoria científica foi um bom exemplo disso.
A segunda: manifestação do ministro foi uma proposta que explicitava haver sido estabelecida uma nova ditadura no Brasil. Vélez sugeriu que a direção das escolas filmasse os alunos cantando o Hino Nacional e enviasse o vídeo ao MEC. Depois, repensou por descobrir que as imagens dos alunos eram privativas e, portanto, a divulgação seria ilegal sem autorização dos responsáveis.
E a terceira: inconveniência ministerial foi, numa crise de sinceridade, ter afirma do que a Universidade não é para todos. É verdade que, apesar dos protestos, o MEC começou a rever o sistema de bolsas do Fies e do Prouni e a incentivar o ensino a distância (EAD). Além disso, aventou a possibilidade de se estabelecer a cobrança de mensalidades nas Universidades federais, já que os estudantes nelas matricula dos seriam necessariamente ricos.
O flagelo Weintraub
A demissão foi fruto da repercussão negativa das propostas, mais do que uma eventual contradição dos objetivos do governo. Em Educação, aprendemos que tudo pode piorar. Assim, foi nomeado Abraham Weintraub, um professor que sequer domina a língua portuguesa e que todos os dias consegue falar/propor uma bobagem ou disparate diferente. A partir do novo titular do MEC, o projeto para destruição das Ciências e da Tecnologia nas Universidades públicas, Institutos Federais e Instituições de Pesquisa vai ficando nítido.
Logo surgem os terraplanistas. Pensamos ser brincadeira. Não, de fato dirigentes do MEC afirmaram acreditar que a Terra é plana. E que tinham provas científicas para tal. Hoje, até o Presidente da CAPES, ex-professor e ex-reitor da UFPB e da Universidade Mackenzie, assumiu que acredita nisso.
As primeiras providências foram a redução de investimentos básicos para sobrevivência das instituições. Os cortes, já o final do mês de maio de 2019, apontavam falta de recursos para o pagamento de água, luz, gás, telefone e material de higiene na maioria das Universidades e institutos federais. Os funcionários terceirizados foram o segundo grupo a ser atingido pelas medidas. A alegação recorrente era a obediência estrita à Emenda Constitucional nº 95 conhecida como emenda do “fim do mundo”, uma vez que suspende por 20 anos os investimentos nas áreas sociais obrigando que gestores públicos cortassem em praticamente 50% o número de funcionários de limpeza, segurança e apoio nos diferentes campi universitários.
Para o governo, ambiente limpo e saudável para estimular o estudo é dispensável e até desnecessário. A crise é real até hoje e vem se agravando, pois os servi – dores que permanecem nas unidades de ensino são submetidos a trabalhos exaustivos, com dupla jornada de trabalho.
Viva a ignorância
Como se não bastassem essas duras e falsas medidas de economia, a segunda decisão atingiu o coração das Ciências, das Artes e das Tecnologias, por meio do corte de cerca de 8 mil bolsas de estudo de alunos de pós-graduação, tanto de mestrado quanto de doutorado. O subsídio é condição fundamental para qualquer estudante poder se dedicar integralmente aos estudos, à pesquisa e às atividades acadêmicas. Some-se a isso o fato de não ter havido reajuste nos valores há sete anos. O corte atingiu, inclusive, quem estava com a bolsa em vigência e alguns, em estágio fora do país.
O ministro nunca se doutorou apesar de ser sua obrigação, foi aluno relapso na graduação e não apresentou algum projeto de pesquisa às agências financiadoras Capes, CNPQ ou Fapesp, evidentemente não sabe a importância das bolsas para a formação acadêmica da juventude.
Como se não bastasse isso, no dia 19 de março de 2020, o presidente do CNPQ o astrônomo baixou uma Portaria (nº1122/2020) definindo como prioritárias as áreas de Tecnologias para a concessão de bolsas de estudos para os projetos de pesquisa, de desenvolvimento e inovações, no período de 2020/2022 e surpreendentemente toda a área de humanidades e artes foi excluída.
Na verdade, nenhuma fonte de recurso foi poupada. No Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a mesma lógica para sufocar a pesquisa foi adotada, com cortes de mais de 40% nos recursos. Paulo Guedes, titular da Economia, quer extinguir tal fundo, via Projeto de Lei encaminhado ao Congresso.
Por inveja ou maldade, membros do governo percebem que o conhecimento científico pode desmascará-los. O rol de disparates emanados dos ministros é grande. Há coisas como peixes serem inteligentes para se desviarem do óleo derramado no litoral, a exploração sexual das meninas no Norte ser causada pelo não uso de calcinhas, as ONGs serem responsáveis pelos incêndios na floresta amazônica, os índios não terem direito às terras ancestrais para justificar a exploração de minérios de seu subsolo ou as extensas plantações de maconhas nos campi universitários, entre outras.
Privatização da pesquisa
Não nos iludamos: a aparente crise criada tem um objetivo bem definido: acelerar o processo de privatização da pesquisa científica e das Universidades. Depois de ofender diariamente professores e alunos os primeiros porque ganham muito e trabalham pouco e os segundos, por serem vagabundos o ministro apresentou o projeto Future-se, que nada mais era do que a subordinação das linhas de pesquisa aos interesses do mercado. A legislação do governo Dilma Lei nº 13.243, de 11/01/2016, que estabeleceu o novo Marco regulatório da Ciência, da Tecnologia e da Inovação – já permitia entrada das em – presas nos nossos laboratórios e oficinas, sem “pedir licença”.
A situação se agrava por não haver substituição de professores que se aposentam ou morrem. Já temos departamentos especializados que não terão como continuar trabalhando, caso o pessoal não seja recomposto. Estima-se que só a Universidade de Brasília precise, de imediato, de 247 novos professores para continuar funcionando. Não se trata de criação de novos cursos ou ampliação de matrículas, mas simplesmente sobrevivência dos cursos atuais.
O movimento estudantil, apesar das grandes manifestações de rua que conseguiu realizar em 2019, sabe que os cortes orçamentários devem continuar, pois o objetivo do governo que tem nas Universidades americanas o referencial a curto prazo é o pagamento de mensalidades.
Proibições e limites
Como se não bastassem as tentativas de se inviabilizar o funcionamento e comprometer a qualidade da pesquisa, do ensino e da extensão das Universidades públicas, o ministro resolveu dificultar mais um pouco a situação. “Proibiu” professores e servidores de participarem de eventos científicos ou de formação. Na sua pequenez e desconhecimento do que significa e como se dá a socialização da Ciência em encontros nacionais e internacionais promovidos pelas Associações Nacionais de Pesquisa e Pós-Graduação em todas as áreas o ministro queria estabelecer limites do número de participantes, por curso, por instituto e por Universidade. Esqueceu o principal: a autonomia institucional das universidades, garantida pelo art.207, da Constituição Federal/1988.
Weintraub parece odiar qualquer espaço de autonomia das escolas em qualquer nível ou modalidade de ensino buscando sempre formas de atingir o funcionamento minimamente democrático das instituições universitárias e resolveu que a escolha dos reitores passaria a ser dele. Qualquer observador perspicaz sabe que a democracia na Universidade é essencial para o funcionamento harmônico. Não é o que o ministro pensa. Ele quer que os conflitos internos ocupem o tempo da atividade acadêmica para que seus projetos extravagantes não sejam contestados. Isso pode acontecer, em especial, se as reitorias dependerem de recursos a conta-gotas pelo MEC.
Ataque à educação básica
Com relação à educação básica, é possível que alguns acreditem que por não ser área prioritária do MEC, ela teria sido poupada. Engano! Tivemos na realização dos exames do ENEM uma amostra das trapalhadas e incompetências que estavam por vir. “O melhor exame realizado”, disse o ministro diante do fato de mais de um milhão de alunos terem até hoje dúvidas em relação às notas.
Quanto ao ensino fundamental, a situação se repete. Temos hoje um decreto que define o que é e como deve ser a alfabetização das crianças. O método sugerido é um dos mais antigos, o fônico, que favorece alguns vendedores de material didático. Claro que o responsável pelo feito não é um especialista e nunca alfabetizou ninguém. Além de ferir a autonomia docente, as inúmeras pesquisas na área já demonstraram que a professora alfabetizará conforme suas convicções pedagógicas.
Não bastasse isso, agora o MEC quer aplicar testes no 1º ano do ensino fundamental, para saber o quanto as crianças leem. Trata-se de proposta de alto custo e absolutamente desnecessária do ponto de vista pedagógico.
Ainda no que toca às crianças, a vontade de o ministro anterior mexer nos livros didáticos parece não ter desaparecido. Desde o início do governo, o MEC tenta mudar os editais para a produção de materiais didáticos, cada vez mais com menos exigências e desqualificando a qualidade da produção. É importante lembrar que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é o maior processo de compra e distribuição de obras pedagógicas do Brasil e, evidentemente, é cobiçado pelas grandes editoras. Trata-se de setor altamente oligopolizado.
Materiais didáticos
O PNLD é um dos mais antigos programas educacionais do Brasil. Com diferentes nomes, ele existe desde 1937. A partir de 1985 as escolhas de livros passaram a ser feitas por professores. Atualmente, nota-se forte tendência para adoção de livro único em cada uma das disciplinas, gerada pela aprovação sem discussão e por interesses espúrios da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Temos o quadro ideal para isso acontecer: primeiro, implantou-se um sistema de avaliação nacional (Governo FHC); depois criou-se o Indicador do Desenvolvimento da Educação Básica (Governo Lula), com o estabelecimento pelo MEC de um índice a ser atingido por cada município e estado. Em seguida, vincularam-se recursos financeiros às unidades da Federação que ampliassem ano a ano seus resultados. Qual o parâmetro para se medir a qualidade de ensino de cada escola do Brasil? Os resultados nas provas nacionais que o sistema de avaliação elaborava.
Como ainda assim, as escolas não se enquadravam como desejado, criou-se a BNCC na qual são definidos os conteúdos que todos os alunos e alunas devem estudar em cada um dos anos escolares da creche ao 9º ano do ensino fundamental. O ensino médio nesse momento ficou de fora.
No limite e radicalizando, se o Brasil adotasse um livro único, ficariam mais fáceis dois aspectos:
Primeiro: controlar os conteúdos que cada professor e professora trabalham.
Segundo: obrigá-los a adotar o livro oficial, com os conteúdos que o governo de plantão espera que sejam transmitidos nas escolas. E aí não importa que a maioria das escolas da educação infantil e do ensino fundamental esteja sob a responsabilidade dos municípios, pois estes terão que se submeter aos desígnios superiores.
Era tudo o que o governo Bolsonaro precisava. Não por acaso, o MEC, no final de 2019 autorizou que o próprio ministério produzisse livros e materiais didáticos além das editoras. A tentativa de facilitar para o próprio MEC essa tarefa já aconteceu. Já tentaram propor e foram derrotados que os autores não precisariam citar as fontes de onde haviam tirado as citações e informações, nem precisariam respeitar todas as regras da língua portuguesa. Foram editais que precisaram ser anulados pela pressão, inclusive das próprias editoras que historicamente haviam sido cobradas de aperfeiçoamento e qualificação da produção.
Conteúdos duvidosos
Vai ficando evidente que o objetivo governamental é produzir livros para as quase 185 mil escolas de educação básica do Brasil, com conteúdos duvidosos. Seriam temas como criacionismo, Terra plana, negação do que chamam de “ideologia de gênero”, despolitização e “reinterpretação” dos fatos da história brasileira, em especial sobre o golpe empresarial-militar de 1964.
É importante lembrar que temos no MEC o maior número de militares ocupando cargos de direção, mesmo não sendo especialistas nas áreas. Nem a ditadura ousou tanto.
Com isso, trabalhar a pluralidade nas escolas e conhecer as condições de vida dos alunos para definir um currículo que traduza suas expectativas é algo considerado como “balbúrdia”. Obediência à hierarquia e não fazer perguntas aceitando como verdadeiro tudo que o professor disser é o desejo deste governo. Não são esses os objetivos das escolas cívico-militares, prioridade maior do atual presidente?
Essa é a razão por que a educação e a ciência têm que ser atacadas até à exaustão. Mas, não nos vencerão. À luta, pois!