Berna Menezes
Que Brasil sai das eleições de 2020? Estamos vivendo uma verdadeira guerra aos pobres. Mais de 200 mil mortes por Covid-19. Mais da metade da população economicamente ativa está desempregada (14%), precarizada (41,1%, segundo o IBGE), desalentada ou vive de bicos. A violência exibe números maiores que países em guerra, aumentaram os assassinatos por balas perdidas, o presidente da República libera e estimula o armamento daqueles que podem comprar seu dispositivo letal. Uma verdadeira guerra aos pobres, aos negros periféricos, às mulheres, aos LGBTQI+ e aos indígenas. Exibimos o título de terceira maior população carcerária do planeta, que vive em condições sub-humanas, da qual mais de um terço sequer foi julgada. A desindustrialização segue, a quebradeira de pequenas fábricas e das multinacionais que, depois de embolsarem milhões em subsídios, estão fugindo do Brasil, como o caso escandaloso da Ford. Com o desemprego, as restrições impostas pela Covid-19 e o fim do auxílio emergencial, a situação de miséria estourou. Para piorar, o modelo de exportação de commodities fez com que os preços dos alimentos fossem para as alturas: a cesta básica em São Paulo está custando R$ 563,00. Com todo esse “esforço” do governo Bolsonaro/Guedes, conseguimos voltar ao Mapa Mundial da Fome, mesmo sendo o terceiro maior produtor de alimentos do mundo. Isso só se explica porque a direita, quer seja o setor raiz de Bolsonaro/Guedes/Mourão, quer seja o setor Nutella de Dória/Maia/Baleia, defendem a mesma pauta econômica. Ou seja, o Estado brasileiro e o conjunto da direita desempregam, joga na miséria e mata, seja por fome, ausência de políticas públicas, à bala por violência policial nas periferias ou por falta de recursos nos hospitais. Usando a linguagem pandêmica, o Brasil está com boa parte dos pulmões comprometidos, respirando por aparelhos. Conseguiu vaga na UTI, mas acabou o oxigênio. Apresenta algumas comorbidades, como a de ser o último país a acabar com a escravidão, o último no continente a ter uma universidade, faz menos de cem anos que garantiu o voto feminino e nunca conquistou uma verdadeira independência com luta. Por outro lado, o paciente possui território continental, biodiversidade fantástica, água e minérios, com povo, cultura, história e juventude fantásticos, uma forte tradição de esquerda, pesquisadores e universidades qualificadas. Temos reservas internacionais de US$ 342 bilhões. É possível termos outro futuro!
Bacurau: o começo do fim. A imagem de um povo num futuro diatópico que se faz presente! As cenas de um Brasil possível, dentre os caminhos do fluxo aberto da história… Bacurau trata da necessidade de sobrevivência que constrói outros laços sociais, outras formas de relação além e à margem do capitalismo, em contraste aos seus algozes racistas que os tornam seus alvos. E se nos matam haverá uma resposta; porque nada segura a revolta de um povo, muito menos de um povo organizado. Esse povo que foi isolado geograficamente e socialmente, um povo abandonado pelo Estado e vendido por ele, um povo na miséria…, mas, é justamente nisso que consiste sua força e, não por acaso, vemos essa força inserida no contexto do sertão. É assim que Bacurau expõe e recoloca em circulação – no nosso imaginário – a experiência da luta de classes. (Introdução da tese do Fortalecer o PSOL para o Congresso do partido).
Mobilizações e golpe
Este é o país que sai das eleições de 2020. Se parece fácil descrever a foto do país, difícil será analisar o filme. Mas a tarefa pode ser facilitada se iniciarmos pela etapa em que estamos metidos desde a ausência de resposta pela esquerda no poder, às gigantescas mobilizações de 2013 e o consequente golpe articulado pelas elites brasileiras e seus aliados. Não saímos dessa etapa. Portanto, o que se esperava, em geral, dessas eleições? O avanço institucional do bolsonarismo, já que ele partia de, praticamente, zero prefeituras e vinha de um fortalecimento conjuntural devido ao auxílio emergencial. Só que isso não se confirmou.
Bonsonaro acusou o golpe
“Se nós não tivermos voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problemas pior que os EUA”. Essa declaração de Bolsonaro não é uma atitude de quem está fortalecido e sim de alguém que acusou o golpe, da derrota de Trump, seu aliado do Norte, e do revés nas eleições do ano passado, nas quais sequer pode apoiar publicamente seus candidatos na TV. Não sei de onde partem as análises de setores de esquerda aumentando os resultados eleitorais da direita. A realidade é que a vitória deles foi em 2016, a chegada de Bolsonaro à presidência é que integrava o script do golpe. A direita Nutella foi passada para trás pelo capitão, pois ele representou o setor mais consequente na luta contra o sistema de “entra eleições e sai eleições e nada muda para a maioria da população”. Na realidade, a elite educada estava, a maioria, até o golpe, governando com o PT. Maior exemplo foi Michel Temer, vice-presidente de Dilma e um dos quadros do MDB. O que ocorreu em 2020? Uma tentativa de setores da direita de normalizar o golpe, aproveitando o desgaste de Bolsonaro pelas falcatruas da família, orientação fora da realidade sobre a pandemia e nenhuma mudança real na economia. Bolsonaro não entregou o que prometeu. Houve, portanto, uma redistribuição de votos entre a própria direita que, de quebra, também abocanhou os votos do PSB e PDT. Estes que se autodenominam como centro-esquerda, mas que nos últimos anos tiveram como estratégia dialogar com setores de direita, além de embarcar no antipetismo. O PCdoB também namorou essa tática, aproximando-se de Ciro e do campo com PDT e PSB. Inclusive, no Maranhão, aliando-se a setores conservadores. Todos esses partidos pagaram o preço, pois a realidade está polarizada. Perderam votos para a direita e, mesmo Flávio Dino que começou o mandato de governador muito bem, inclusive sendo cogitado a candidato a Presidente em 2022, termina como candidato a deputado federal. O que salvou o PCdoB foi Manuela D’Ávila que optou por outro rumo, saindo fortalecida do processo eleitoral.
Avaliar o processo
Portanto, temos que ser cuidadosos. Não podemos nem dar um peso superlativo e nem minimizar a direita. O setor que aumentou a força conservadora nesse processo eleitoral, errou novamente. Uma esquerda que passou de alardear um “longo inverno siberiano” a esperar a “tomada do Palácio de Inverno” nas eleições. Caiam na real! Não havia nenhuma perspectiva de vitória da esquerda nessas eleições. Nas lutas de rua que ocorreram em 2020, foi o povo que levou praticamente sozinho. Ou alguém chamou as mobilizações das torcidas organizadas e posteriormente, o levante do movimento negro, que mandaram os bolsonaristas e negacionistas para casa? Alguém, em sã consciência, diria em março de 2020 que Boulos iria para o segundo turno em novembro? Que o Rio de Janeiro, sem nosso camarada Marcelo Freixo, teria o resultado espetacular que teve? Porto Alegre ampliando a bancada? E mesmo Belém, era muito difícil.
PSOL foi a novidade em 2020
O PSOL sai do processo eleitoral com muita autoridade e com o aumento de responsabilidades em relação ao movimento social e a construção de uma estratégia para o país. Dobramos o número de militantes, aumentamos nossas bancadas nas Câmaras em várias partes do país, ganhamos a prefeitura de Belém com o nosso querido Edimilson Rodrigues e fomos para o segundo turno na maior capital do país, São Paulo, com a dupla Boulos/Erundina. Além disso, o PSOL teve um crescimento importante nas Câmaras Municipais das capitais da região Sul e Sudeste, elegendo 23 vereadores. Em todas as capitais, o partido teve um crescimento de 50%. Em São Paulo, a bancada triplicou. É evidente que há uma nova geração de lutadores sociais e juventude cansados da velha política, que vê em nosso partido um enfrentamento consequente ao governo Bolsonaro e um diálogo distinto com novas pautas. Mas falta mais, temos que ir revolucionando nossos métodos de ação e funcionamento, formando novos quadros militantes e aprendendo com nossa classe. Respondendo programaticamente a nova realidade aberta pela etapa de disputa hegemônica entre China e EUA. Enfrentando as crises acumuladas pelo capitalismo decadente e destruidor da natureza, do planeta e na humanidade. O PSOL poderá ser o polo de reorganização da esquerda no Brasil. Pois o PT, que cumpriu esse papel por várias décadas, estancou a sangria nessas eleições, mas ainda não se recuperou da queda de mais de 60% de votos, entre os anos de 2012 e 2016. O PT, mesmo seguindo como maior partido de esquerda do país, vem numa dinâmica de estagnação e retrocesso nos grandes centros. Lula, a figura principal, não participou do processo eleitoral e, onde esteve presente, como no caso de São Paulo, amargou uma grande derrota terminando em 6º lugar. O PT perde o dinamismo para a vanguarda da classe e de nosso povo após muitas décadas, não dialogando com a base de esquerda, de militantes sinceros e que não entendem o apoio ao candidato bolsonarista no senado. Isso abre espaço para novos atores.
Bolsonaro, bolsonarismos e o futuro da ultradireita
Como já afirmamos em artigo ao Boletim da Crise nº. 52, da Fundação Lauro Campos/Marielle Franco, Bolsonaro foi rejeitado pelas urnas. O resultado eleitoral de 2020 mostrou que Bolsonaro não pode tudo, mas não está morto. A etapa internacional aberta pela crise econômica de 2008, abriu as portas do inferno. Surgiram em diversas partes do mundo partidos, movimentos e governantes de ultradireita, negacionistas sobre a ciência, ao combate a pandemia e a gravíssima crise ambiental e ataques aos direitos da nossa classe e nosso povo que no Brasil foi sintetizada pela máxima de Bolsonaro: emprego ou direitos. Além do retrocesso brutal na pauta de costumes, estimulando a violência, enfrentamos o machismo, a homofobia e preconceitos de toda espécie. Mas há uma face desse setor de direita que é o combate as instituições do regime. Fazem a disputa direta de massas, tensionando o tempo todo a sociedade. Criticam o Parlamento, a Justiça, a imprensa, os partidos, os políticos e a política. Tem como centro a crítica a corrupção. No entanto, estão envolvidos até a medula em corrupção, são as velhas raposas da política, que usam parte da imprensa e redes sociais. Esse setor corresponde a uma base real, inclusive, e quiçá principalmente e infelizmente, da classe trabalhadora, que se encontra perdida com as profundas transformações no mundo do trabalho.
Os trabalhadores estão nas ruas, têm que sobreviver. Mais da metade da população economicamente ativa está desempregada, precarizada ou desalentada. Tem que trabalhar para comer. Por outro lado, o povo chileno não é negacionista, tampouco o boliviano, o peruano ou o norte-americano, mas viram a necessidade de sair às ruas para mudar a correlação de forças nessa guerra contra o povo em seus países.
País dependente
No caso do Brasil, a expressão da ultradireita toma contornos mais graves devido à condição de um país dependente. Se no núcleo do capitalismo, os EUA, se expressa em protecionismo de suas indústrias, empregos e dos nascidos em território americano, gerando políticas xenofóbicas, construção de muros; em nosso país, prima a entrega violenta de nossas riquezas e patrimônios, assim como as condições de vida de nossa classe. Ao analisar a classe dominante na América Latina, que ele denominou de lumpenburguesia, André Gunder Frank dizia: “…esta estrutura colonial e de classe determina os interesses de classe dirigidos pelo setor dominante da burguesia, que se valendo frequentemente dos governos e dos demais instrumentos do Estado, gera políticas de subdesenvolvimento no plano econômico, social, cultural e político para a ‘nação’ e para o povo latino-americano, fazendo com que uma mudança no modo de dependência modifique a estrutura econômica e de classes, se determinem contemporaneamente algumas mudanças na política da burguesia dominante, os quais, salvo determinadas exceções parciais que se indicaram, acabam reforçando as próprias relações de dependência econômicas que favorecem essas escolhas políticas e, por conseguinte, contribuem a agravar ainda mais o desenvolvimento do subdesenvolvimento na América Latina”.
Que comecem os jogos
Se não tivermos política, debate de estratégia e construção de um debate democrático sobre programa, vamos ficar assistindo a disputa entre Dória e Bolsonaro pela vacina e o resultado das eleições de 2022 pela Globonews. Para a esquerda, entrar na disputa significa política de mobilização de massas, para alterar a atual correlação de forças. É verdade que as eleições ainda mais em uma etapa pós-golpe, são muito importantes. Portanto, o debate sobre os espaços democráticos, são muito úteis na organização e atuação dos revolucionários, mas a serviço de quê? De estimular e organizar a mobilização. Não apenas votar de dois em dois anos. Parece que esquecemos o ABC. Muitos vão dizer, mas não somos negacionistas, estamos no isolamento. É meia verdade! Os trabalhadores estão nas ruas, têm que sobreviver. Mais da metade da população economicamente ativa está desempregada, precarizada ou desalentada (nome bonito para quem cansou de buscar emprego). Tem que trabalhar para comer. Por outro lado, o povo chileno não é negacionista, tampouco o boliviano, o peruano ou o norte-americano, mas viram a necessidade de sair às ruas para mudar a correlação de forças nessa guerra contra o povo em seus países. As torcidas organizadas ou as mobilizações negras não foram chamadas por nenhum partido de esquerda. E, foram eles que botaram a correr a direita bolsonarista das ruas. Naquele momento, as mesmas pessoas que diziam que não podíamos dar o mau exemplo e sair do isolamento, foram os que percorreram às ruas das cidades atrás de voto em setembro e outubro, mas não podiam ir a uma mobilização. Estamos formados pela agenda eleitoral, queremos superar o eleitoralismo, a conciliação de classes, os acordos por cima, mas temos que construir a aliança com os de baixo para conquistar mudanças reais, que estimulem a juventude a fazer política e o povo a ver possibilidade de futuro. Um programa antissistema que faça um combate radical ao sistema financeiro e aos representantes, a elite brasileira. Esse é o desafio do PSOL!
Estamos formados pela agenda eleitoral, queremos superar o eleitoralismo, a conciliação de classes, os acordos por cima, mas temos que construir a aliança com os de baixo para conquistar mudanças reais, que estimulem a juventude a fazer política e o povo a ver possibilidade de futuro