A vitória que a proposta de saída da União Europeia obteve em 2016 acarreta dois problemas. O primeiro é a possibilidade de um forte retrocesso econômico num continente cuja economia se desacelera. O segundo é fortalecer preconceitos racistas e xenófobos contra imigrantes. Se o Brexit prejudica os trabalhadores, tampouco a manutenção de uma União pautada pelo neoliberalismo se mostra uma alternativa positiva
Robério Paulino
O impasse que o Reino Unido vive há anos sobre o Brexit, como é conhecida a decisão de sair da União Europeia (UE), se acirrou em 2019, à medida que se aproximava o prazo limite de sua efetivação. O plebiscito que decidiu pela saída do bloco econômico europeu ocorreu em 23 de junho de 2016. Londres e algumas cidades maiores votaram por permanecer (remain) na UE, enquanto a maior parte das cidades menores optou por sair (leave). Depois de três anos e meio daquela decisão, no entanto, o rompimento ainda não ocorreu. Diversos entraves levaram a sucessivos adiamentos de sua aplicação. O impasse interno levou o governo britânico a solicitar novo adiamento ao bloco europeu, com a saída agora agendada para 31 de janeiro de 2020. O prazo anterior expirava em 31 de outubro. Uma das razões que levaram aos diversos adiamentos foi que a vitória do Brexit em 2016 ocorreu por uma margem bastante apertada, de 52% para sair, contra 48% para permanecer. Outra razão é que o Partido Conservador e seus aliados, que impulsionaram a saída, não têm uma maioria suficiente de 2/3 no Parlamento, necessária para fazer as coisas andarem do seu próprio jeito. Os conservadores radicais do Partido do Brexit, de posição claramente anti-UE por sua vez, cresceram desgastando os dois últimos primeiros ministros conservadores, Theresa May e Boris Johnson, acusando-os de não cumprirem o que foi definido no referendo de junho de 2016
Apreensão e expectativa
O país vive um clima de apreensão e expectativa. A população e os políticos estão bastante divididos: alguns querem que o Reino Unido saia o quanto antes. Outros, como o Partido Liberal Democrata e o ex-primeiro ministro Tony Blair, defendem mesmo um novo referendo e alguns propõem até cancelar completamente o Brexit. Empresas e famílias não conseguem fazer planos e o clima de incerteza corrói a confiança na economia e na capacidade de liderança dos governantes. A libra, considerada um melhor indicador da saúde econômica do Reino Unido do que o próprio índice da Bolsa de Londres, continua volátil como decorrência da instabilidade política causada pela incerteza em relação ao Brexit. Boris Johnson, no papel de primeiroministro, chegou a tentar suspender temporariamente a Câmara dos Comuns, com apoio da rainha, fato sem muitos precedentes na história do país desde a Revolução Gloriosa no final do século XVII. Esta colocou o parlamento como centro do poder na Grã-Bretanha e a nobreza numa situação quase decorativa.
Possíveis consequências do Brexit
Britânicos e imigrantes acompanham com grande expectativa e apreensão o desenrolar do conflito. Como, além de livre comércio, a UE permite também um trânsito relativamente liberado de cidadãos entre seus países, os estrangeiros, muitos brasileiros inclusive, sabem que uma decisão por sair do bloco europeu complica a situação dentro do Reino Unido. Além disso, pode tornar mais rígidos os controles nas fronteiras e as exigências para a permanência. Em Londres, uma cidade muito globalizada, a preocupação é grande, já que tem uma proporção muito elevada de imigrantes recentes e seus descendentes. Até 2006, ou seja, antes da crise econômica de 2008-09, que atingiu em cheio a economia europeia, o Brexit não estava entre as maiores preocupações da população britânica. Hoje, a continuidade ou não na UE é o assunto mais importante para os britânicos, como pode ser visto no gráfico 1. O temor dos que se opõem ao Brexit, no entanto, são também as possíveis consequências na economia. Especialistas. preveem uma forte desaceleração caso a Grã-Bretanha saia da União Europeia sem um acordo equilibrado. Com um Brexit unilateral, o Banco da Inglaterra previu recentemente uma queda em torno de 5,5% no PIB, a elevação do desemprego para 7% e inflação acima de 5%, frente aos 2,1% atual. A incerteza toma conta do país. A economia britânica já é dominada por empresas transnacionais e um isolamento, mesmo que parcial, teria um impacto negativo inicial inevitável no comércio exterior, com reflexo imediato na economia interna.
Razões imediatas do Brexit
Várias são as razões apontadas por distintos analistas que levaram a maioria da população a votar pela saída da UE. A primeira é que o casamento entre o Reino Unido e o restante da Europa Ocidental nunca foi fácil. Demorou muitos anos para os britânicos entrarem na Comunidade Econômica Europeia, há quatro décadas. É como se o país tivesse aderido com má vontade por pressão ou por razões de interesse apenas de empresas transnacionais. Sempre houve certo ceticismo da população em relação aos benefícios dessa participação. Uma segunda razão, que de certa forma se entrelaça com a primeira, é exatamente que grande parte da população não sentiu qualquer benefício de mais de quatro décadas de permanência na UE, ao mesmo tempo em que vê aumentar o desemprego, a queda da renda média, a violência, a corrupção, o declínio de empresas britânicas frente à invasão de transnacionais. Isso reforçou um terceiro fator, o sentimento defensivo de afirmação nacional da população branca menos escolarizada, inclusive de grande parcela dos trabalhadores que historicamente votam nos Trabalhistas, contra os efeitos da mundialização da economia. Pesquisas apontam que 30% deles é a favor do Brexit.
Certa identidade Nacional
A ilha manteve historicamente certo distanciamento da Europa continental, sempre se orgulhou da economia e do pioneirismo na Revolução Industrial, apesar da decadência econômica. Assim, pode-se dizer que o Brexit é também uma manifestação de identidade nacional e cultural britânica, que se sente ameaçada com a mundialização da economia e a maior imigração, ainda que tal atitude possa ser entendida como retrógrada e polêmica. Esse sentimento defensivo de identidade nacional se liga a um quinto fator negativa a incerteza toma conta do país. A economia britânica já é dominada por empresas transnacionais e um isolamento, mesmo que parcial, teria um impacto negativo inicial inevitável no comércio exterior, com reflexo imediato na economia interna vo. Trata-se do medo ou aversão aos novos imigrantes, com o temor que estes venham a ser maioria no país em duas ou três décadas. Isso já acontece em muitos bairros ou regiões de Londres, pelo que constatei em minhas incursões pela periferia da cidade. Em várias escolas públicas que visitei, percebi que a maioria das crianças já é filha de imigrantes não brancos. Outro argumento central dos defensores do Brexit foi que dentro da UE, a Grã-Bretanha não pode controlar o número de ingressantes no país e que só com a saída, aí sim, isso seria possível. As faixas de idade mais elevadas, especialmente mais ao norte, se identificaram com o bordão “lets take back control” (vamos retomar o controle) e deram a vitória aos que pro – punham o “leave”. A aprovação do Brexit indica que o medo do afluxo de imigrantes no país era bem maior do que se supunha, especialmente entre os britânicos de baixa renda e menos escolarizados. O senti mento muito foi bem explorado pelos defensores do “sair”. Outro argumento demagógico muito usado pelos marqueteiros conservadores durante a campanha do plebiscito de 2016 foi que a saída da UE iria liberar 350 milhões de libras (em torno de R$ 1,7 bilhão) por semana, a serem aplicados no sistema de saúde pública, uma das maiores preocupações da população por aqui, como se pôde ver no gráfico 1 já mostrado, principalmente das faixas de idade mais alta.
Desindustrialização, decadência econômica e desemprego
Para entender as razões mais imediatas e aparentes que levam ao Brexit, como o medo e mesmo a aversão aos imigrantes, é preciso investigar, no entanto, os fatores mais profundos e estruturais que explicam as atitudes de parte da população britânica que o apoia. O fenômeno também encontra correspondência em países da Europa continental e dá base ao crescimento de partidos nacionalistas e fascistas por toda a região. Mesmo na classe operária organizada esse sentimento se pode ser encontrado. Enquanto as economias europeia e mundial iam bem, durante a Era de Ouro, período de crescimento elevado e ininterrupto por quase 30 anos depois do fim da II Guerra Mundial, com baixíssimo desemprego, a Europa incentivou e permitiu a entrada de imigrantes para exercer as funções que já não interessava tanto aos trabalhadores nativos. Eram funções como lixeiros, trabalhadores de limpeza, motoristas, taxistas, bilheteiros, agentes de estações, seguranças, vendedores etc. Os trabalhadores nacionais conviviam bem e não se sentiam ameaçados pelos que vinham de fora. Com a crise e a elevação dos preços do petróleo na década de 1970 a festa acaba, o quadro muda e o mundo ocidental e a Europa entram em recessão. Essa era a chance que os liberais radicais esperavam. As vitórias de Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher na Grã-Bretanha foram expressões da nova era aberta.
Austeridade antissocial
Os programas de austeridade implantados por essa corrente enxugaram o tamanho do Estado, os programas sociais e os direitos dos trabalhadores em todo mundo. Ao mesmo tempo liberaram as empresas das amarras para demitir, reduzir salários e precarizar as relações de trabalho. A esse processo se somaram ainda outros três, pelo menos. PRIMEIRO, a automação, a robotização e as novas técnicas de produção oriundas do Japão, conhecidas como Toyotismo, economizaram mão-de-obra, ceifaram milhões de empregos por aqui também, combinando-se como uma luva com o neoliberalismo. Um segundo fator combinado e decorrente do neoliberalismo é o profundo processo de desindustrialização que vive a Grã-Bretanha. O capital fecha milhares empresas e acaba com milhões de empregos no Ocidente e os envia para a Ásia ou para o Leste Europeu depois da década de 1990 em busca de menores custos de produção e maiores lucros. A China foi um paraíso para o capital nas últimas três décadas. Esse processo arrasou completamente Detroit, por exemplo, centro da produção automotiva dos EUA na primeira metade do século XX, transformando-a num cemitério de fábricas a céu aberto, com antigos bairros operários hoje desertos, com milhares de casas abandonadas. Aqui no Reino Unido, numa visita que fiz a Manchester, o único vestígio de indústria que encontrei foi no Museu da Revolução Industrial. A cidade viu perder toda sua indústria nas últimas décadas. Liverpool, o grande porto da Revolução Industrial, hoje é uma cidade de serviços. O país produz muito pouco dos artigos industriais que consome. Andando pelas ruas de Londres, pode-se perceber que as marcas de automóvel que rodam por aqui são alemãs, coreanas, japonesas e italianas. A cidade vive do turismo, dos serviços e das finanças. EM TERCEIRO LUGAR, para montar o quadro, some-se ao neoliberalismo arrasador, ao Toyotismo e à desindustrialização, a crise econômica aberta em 2008-09, que reduziu ainda mais o ritmo das economias pelo mundo, elevou o desemprego e precarizou ainda mais as condições de trabalho. Esses fatores todos somados afetaram profundamente a situação, a percepção e a atitude dos povos e dos trabalhadores ocidentais e aqui também. Ao não perceber que as razões de fundo do processo são as novas configurações do capital, a população passa a identificar no fator mais visível a imigração como uma causa central de seus problemas, do desemprego, da queda do nível de renda e de vida. Auxiliam nesse impulso os partidos de direita e a grande mídia. O Brexit tem por baixo razões muito similares ao quadro encontrado no restante da Europa, que explica o surgimento de partidos de extrema direita e xenófobos.
Nem Brexit nem UE como ela é
As organizações socialistas e de esquerda não podem ser favoráveis ao Brexit, porque essa separação tem um claro cará ter de retrocesso, de hostilidade para com os imigrantes, de levantar mais barreiras entre os povos. A posição do movimento socialista sempre foi pelo fim dos muros que separam os povos. Os movimentos sociais e a esquerda socialista, apesar de entenderem que a campanha pelo Brexit carrega também uma rejeição à desindustrialização, à perda de milhões de empregos, à queda do nível de renda dos trabalhadores, não pode concordar com a pregação de que o empobrecimento dos trabalhadores seja de responsabilidade dos imigrantes e apoiar essa separação. Essa responsabilidade não é dos imigrantes, mas do grande capital, que fecha empresas, as envia para fora do país, gera desemprego, reduz salários e gera desigualdade e pobreza. Tampouco somos a favor de dificultar o acesso de estrangeiros ao país. O livre trânsito de pessoas dentro da UE é uma conquista civilizatória da qual não se deve recuar, mas também não se pode apoiar a UE como ela é. Esse bloco econômico não foi construído no interesse dos povos de seus países, mas como um mercado comum para fortalecer os capitais dos maiores países europeus, enfraquecidos na Segunda Guerra, frente ao capital norte-americano, predominante após aquele conflito. As empresas dos países maiores do bloco também exploram e impõem condições desfavoráveis aos países mais fracos. O livre trânsito de cidadãos de países periféricos no bloco muitas vezes é usado apenas para rebaixar os salários dos trabalhadores dos países maiores. O movimento socialista propõe outra unidade, de igualdade real nas trocas, de solidariedade e ajuda dos países mais fortes aos países menores, de democracia real nas decisões e antes de tudo de igualdade real e fraternidade entre os povos de todos os países.