Artigo de Ilan Pappé*, originalmente publicado em Sidecar da New Left Review | Traduzido por Antonio Martins e publicado em português no site Outras Palavras
O ataque do Hamas em 7 de outubro pode ser comparado a um terremoto que atinge um prédio antigo. As rachaduras já estavam começando a aparecer, mas agora são visíveis em suas fundações. Mais de 120 anos desde sua criação, será que o projeto sionista na Palestina – a ideia de impor um Estado judeu em um país árabe, muçulmano e do Oriente Médio – está enfrentando a perspectiva de colapso? Historicamente, uma infinidade de fatores pode fazer um Estado capotar. Pode resultar de ataques constantes por países vizinhos ou de uma guerra civil crônica. Pode seguir-se ao colapso das instituições públicas, que se tornam incapazes de oferecer serviços aos cidadãos. Muitas vezes, começa como um processo lento de desintegração que ganha impulso e então, em um curto período de tempo, derruba estruturas que antes pareciam sólidas e firmes.
A dificuldade está em identificar os primeiros indicadores. Aqui, argumentarei que estes são mais claros do que nunca no caso de Israel. Estamos testemunhando um processo histórico – ou, mais precisamente, os seus inícios – que provavelmente culminará na queda do sionismo. E, se meu diagnóstico estiver correto, estamos entrando em uma conjuntura particularmente perigosa. Pois, uma vez que Israel perceba a magnitude da crise, desencadeará uma força feroz e irrestrita para tentar contê-la, como fez o regime de apartheid da África do Sul em seus últimos dias.
1.
O primeiro indicador é a fragmentação da sociedade judaica israelense. Atualmente, ela é composta por dois campos rivais que não conseguem encontrar um terreno comum. A divisão decorre das anomalias de definir o judaísmo como nacionalismo. A identidade judaica em Israel, que parecia pouco mais do que um assunto de debate teórico entre facções religiosas e seculares, agora se tornou centro uma luta pelo caráter da esfera pública e do próprio Estado. Esta luta está sendo travada não apenas na mídia, mas também nas ruas.
Um campo pode ser denominado “Estado de Israel”. Ele é composto por judeus europeus mais seculares, liberais e em sua maioria mas não exclusivamente, de classe média e seus descendentes, que foram fundamentais na criação do Estado em 1948 e mantiveram-se hegemônicos dentro dele até o final do século passado. Não se engane: a defesa dos “valores democráticos liberais” não afeta seu compromisso com o sistema de apartheid que é imposto, de várias maneiras, a todos os palestinos que vivem entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. Seu anseio essencial é que os cidadãos judeus vivam em uma sociedade democrática e pluralista, da qual os árabes estão excluídos.
O outro campo é o “Estado da Judeia”, que se desenvolveu entre os colonos da Cisjordânia ocupada. Ele desfruta de níveis crescentes de apoio dentro do país e constitui a base eleitoral que garantiu a vitória de Netanyahu nas eleições de novembro de 2022. Sua influência nas camadas superiores do exército e dos serviços de segurança israelenses está crescendo exponencialmente. O Estado da Judeia quer que Israel se torne uma teocracia que se estenda por toda a Palestina histórica. Para conseguir isso, está determinado a reduzir o número de palestinos ao mínimo, e está contemplando a construção de um Terceiro Templo no lugar da Mesquita Al-Aqsa. Seus membros acreditam que isso lhes permitirá renovar a era de ouro dos Reinos Bíblicos. Para eles, os judeus seculares são tão heréticos quanto os palestinos, se recusarem se juntar a este empreendimento.
Os dois campos começaram a se chocar violentamente antes de 7 de outubro. Nas primeiras semanas após o ataque, eles pareciam colocar suas diferenças de lado diante de um inimigo comum. Mas foi uma ilusão. A luta nas ruas reacendeu-se, e é difícil ver o que poderia possibilitar a reconciliação. O resultado mais provável já está se desenrolando diante de nossos olhos. Mais de meio milhão de israelenses, integrantes do Estado de Israel, deixaram o país desde outubro, uma indicação de que o país está sendo engolido pelo Estado da Judeia. Este é um projeto político que o mundo árabe, e talvez até o mundo em geral, não tolerará a longo prazo.
2.
O segundo indicador é a crise econômica de Israel. A classe política não parece ter nenhum plano para equilibrar as finanças públicas em meio a conflitos armados perpétuos, exceto tornar-se cada vez mais dependente da ajuda financeira americana. No último trimestre do ano passado, a economia caiu quase 20%; desde então, a recuperação tem sido frágil. A promessa de Washington de 14 bilhões de dólares provavelmente não reverterá isso. Pelo contrário: o fardo econômico só piorará se Israel seguir adiante com sua intenção de ir à guerra com o Hezbollah, aumentando a atividade militar na Cisjordânia, em um momento em que alguns países – incluindo a Turquia e a Colômbia – começaram a aplicar sanções econômicas.
A crise é ainda mais agravada pela incompetência do ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, que constantemente canaliza dinheiro para assentamentos judeus na Cisjordânia, mas parece incapaz de executar suas funções de outra forma. O conflito entre o Estado de Israel e o Estado da Judeia, junto com os eventos de 7 de outubro, está fazendo com que parte da elite econômica e financeira mova seu capital para fora do Estado. Aqueles que estão considerando realocar seus investimentos compõem uma parte significativa dos 20% de israelenses que pagam 80% dos impostos.
3.
O terceiro indicador é o crescente isolamento internacional de Israel, que gradualmente torna-se um Estado pária. Esse processo começou antes de 7 de outubro, mas se intensificou desde o início do genocídio. Isso se reflete nas posições sem precedentes adotadas pelo Tribunal Internacional de Justiça e pelo Tribunal Penal Internacional. Antes, o movimento global de solidariedade com a Palestina conseguia mobilizar pessoas para participar de iniciativas de boicote, mas não conseguia avançar na perspectiva de sanções internacionais. Na maioria dos países, o apoio a Israel permanecia inabalável entre a elite política e econômica.
Nesse contexto, as recentes decisões do TIJ e do TPI – de que Israel pode estar cometendo genocídio, de que deve parar sua ofensiva em Rafah, de que seus líderes devem ser presos por crimes de guerra – devem ser vistas como uma tentativa de atender às opiniões da sociedade civil global, ao invés de refletir a opinião das elites. As decisões dos tribunais não aliviaram os ataques brutais ao povo de Gaza e da Cisjordânia. Mas contribuíram para o crescente coro de críticas dirigidas ao Estado israelense, que vêm cada vez mais de cima para baixo, assim como de baixo para cima.
4.
O quarto indicador, interconectado com os anteriores, é a mudança radical da maré entre os jovens judeus ao redor do mundo. Após os eventos dos últimos nove meses, muitos agora parecem dispostos a abandonar sua conexão com Israel e o sionismo e participar ativamente no movimento de solidariedade com a Palestina. As comunidades judaicas, especialmente nos EUA, outrora asseguravam a Israel uma imunidade eficaz contra críticas. A perda, ou pelo menos a perda parcial, desse apoio tem grandes implicações para a posição global do país. AIPAC [maior lobby pró-Israel em atuação nos EUA] ainda pode contar com os cristãos sionistas para fornecer assistência e fortalecer sua base de membros, mas não será a mesma organização formidável sem uma significativa base judaica. O poder do lobby está se erodindo.
5.
O quinto indicador é a fraqueza do exército israelense. Não há dúvida de que as Forças de Defesa de Israel (IDF) continuam sendo uma tropa poderosa com armamentos de ponta à sua disposição. No entanto, suas limitações foram expostas em 7 de outubro. Muitos israelenses sentem que o exército teve muita sorte, pois a situação poderia ter sido muito pior se o Hezbollah tivesse se promovido um ataque coordenado. Desde então, Israel mostrou que é desesperadamente dependente de uma coalizão regional, liderada pelos EUA, para se defender contra o Irã, cujo ataque de advertência em abril viu o deslocamento de cerca de 170 drones, além de mísseis balísticos e guiados. Mais do que nunca, o projeto sionista depende da entrega rápida de grandes quantidades de suprimentos dos norte-americanos, sem os quais não poderia nem mesmo lutar contra um pequeno exército guerrilheiro no sul.
Há agora uma percepção generalizada, entre a população judaica, do despreparo e incapacidade de Israel para se defender. Isso levou a uma grande pressão para acabar com a isenção de serviço militar para os judeus ultraortodoxos – em vigor desde 1948 – e começar a recrutá-los em milhares. Isso dificilmente fará muita diferença no campo de batalha, mas reflete a escala de pessimismo sobre o exército – que, por sua vez, aprofundou as divisões políticas dentro de Israel.
6.
O sexto e último indicador é a renovação de energia entre a geração mais jovem de palestinos. Ela é muito mais unida, organicamente conectada e clara sobre suas perspectivas do que a elite política do país. Dado que a população de Gaza e da Cisjordânia está entre as mais jovens do mundo, essa nova geração terá uma imensa influência sobre o curso da luta de libertação. As discussões em curso entre os grupos de jovens palestinos mostram que estão preocupados em estabelecer uma organização genuinamente democrática – seja uma OLP renovada ou uma entidade inteiramente nova –, que buscará uma visão de emancipação em antítese à campanha da Autoridade Palestina por reconhecimento como Estado. Estes jovens parecem preferir uma solução de um Estado, em vez de um modelo de dois Estados desacreditado.
Será que eles serão capazes de construir uma resposta eficaz ao declínio do sionismo? Esta é uma pergunta difícil de responder. O colapso de um projeto de Estado nem sempre é seguido por uma alternativa mais brilhante. Em outras partes do Oriente Médio – na Síria, Iêmen e Líbia – vimos como os resultados podem ser sangrentos e prolongados. Neste caso, seria uma questão de descolonização, e o século passado mostrou que as realidades pós-coloniais nem sempre melhoram a condição colonial. Apenas a agência dos palestinos pode nos mover na direção certa. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, uma fusão explosiva desses indicadores resultará na destruição do projeto sionista na Palestina. Quando isso acontecer, devemos esperar que um robusto movimento de libertação seja capaz de preencher o vazio.
Por mais de 56 anos, o que foi denominado de “processo de paz” – um processo que não levou a lugar nenhum – foi, na verdade, uma série de iniciativas americano-israelenses às quais os palestinos foram convidados a reagir. Hoje, a “paz” deve ser substituída pela descolonização, e os palestinos devem ser capazes de articular sua visão para a região, com os israelenses sendo convidados a reagir. Isso marcaria a primeira vez, pelo menos em muitas décadas, em que o movimento palestino tomaria a liderança na apresentação de suas propostas para uma Palestina pós-colonial e não sionista (qualquer que seja o nome da nova entidade). Ao fazê-lo, os palestinos provavelmente olharão para a Europa (talvez para os cantões suíços ou o modelo belga) ou, mais apropriadamente, para as antigas estruturas do Mediterrâneo oriental, onde grupos religiosos secularizados se transformaram gradualmente em grupos etnoculturais que viviam lado a lado no mesmo território.
Quer as pessoas acolham a ideia ou a temam, o colapso de Israel tornou-se previsível. Esta possibilidade deve informar o diálogo de longo prazo sobre o futuro da região. Entrará na agenda quando as pessoas perceberem que a tentativa secular, liderada pela Grã-Bretanha e depois pelos EUA, de impor um Estado judeu em um país árabe está lentamente chegando ao fim. Foi suficientemente bem-sucedida para criar uma sociedade de milhões de colonos, muitos deles agora de segunda e terceira geração. Mas sua presença ainda depende, como dependia quando chegaram, de sua capacidade de impor violentamente sua vontade sobre milhões, dos povos originários, que nunca desistiram de sua luta por autodeterminação e liberdade em sua terra natal. Nas próximas décadas, os colonizadores terão de aceitar esta abordagem e demonstrar sua disposição de viver como cidadãos iguais numa Palestina libertada e descolonizada.
*Ilan Pappé é historiador israelense e professor na Universidade de Exeter, no Reino Unido. Também foi docente de Ciências Políticas em sua cidade natal, na Universidade de Haifa.