Belém 2020. Depois de uma disputa acirrada contra um delegado bolsonarista, uma frente de esquerda, liderada por Edmilson Rodrigues, do PSOL e ex-prefeito por duas vezes, vence as eleições por apenas 26.628 votos.
Belém 2022. Depois de uma disputa acirrada contra a máquina do estado e o fundamentalismo, Lula vence Bolsonaro. Foi por um pouco mais de 2 milhões de votos e, em Belém, por apenas 4.807 votos.
Belém possui cerca de um milhão e meio de habitantes, guarda belezas inigualáveis e uma população hospitaleira. Mas é uma cidade da periferia do Brasil. Para ilustrar apenas dois indicadores sociais, enquanto em Porto Alegre toda a população tem acesso a água potável, ainda temos 26,6% sem este direito. E o mais grave, na capital gaúcha apenas 8,5% não têm coleta de esgoto em suas casas, aqui temos 82,9% sem esse direito básico de saneamento e saúde.
Ser socialista e governar dentro do capitalismo é desafiador, porque, na estrutura de poder estatal, a menor fatia de poder está no município e, principalmente, porque os mecanismos de reprodução social, essencialmente excludentes, não têm no município instrumental para coibir de forma significativa sua dinâmica.
Governar uma cidade da periferia do capitalismo brasileiro é ainda mais desafiador. E governar uma cidade do Norte, região quase invisível para a maioria do país, inclusive para a esquerda, coloca um ingrediente de não só mudar a vida das pessoas, mas fazer o país (e a esquerda desse país) enxergar o que se faz na cidade.
Se não vamos mudar o capitalismo pela via institucional, por que então ocupar tais espaços de poder? É uma pergunta que já ocupou muitas linhas e livros no seio da esquerda revolucionária, mas enumero duas respostas parciais: a) para, dentro dos limites municipais, mudar a vida das pessoas, especialmente os mais pobres e b) para, por meio do exercício democrático das estruturas, ser um agente de educação dos limites dessa experiência, ensejando a percepção de que mudanças profundas somente virão com alteração radical da estrutura social vivenciada.
Dessas duas respostas se organiza o ‘governar’ de esquerda. Apesar do PSOL ter governado algumas cidades na sua curta existência, pouco conseguimos formular sobre essas experiências, para poder sistematizar um “modo psolista de governar”. Assim, busco neste artigo apontar algumas características da experiência de Belém, parte sendo vivenciada no momento, outra parte fruto do acúmulo da experiência de governo, ainda no PT, de 1997 a 2004. Não vemos descontinuidade nas duas experiências, seja pelos atores e atrizes à frente do projeto, seja pela composição de forças políticas que compõem a gestão municipal. E, além das características, arrolo também limites antigos e novos.
A primeira característica é a inversão de prioridades. A lógica de apropriação do fundo público está, no capitalismo e nas gestões afinadas com sua dinâmica, direcionada a fortalecer as condições de reprodução do capital e facilitar a sua atração vantajosa para o espaço urbano, mesmo que isso signifique a retirada dos pobres de áreas nobres ou de interesse imediato para a especulação imobiliária. Nas políticas públicas, mesmo que o alvo seja os mais pobres, há uma dinâmica de apropriação privada da prestação dos serviços.
Inverter prioridades é, em cada área sob gestão da prefeitura, trabalhar para incluir nos serviços públicos os mais pobres, criando espaços de lazer, de cultura e educacionais para as camadas excluídas. É levar a saúde para onde ela nunca chegou, no caso de Belém, para a população periférica e ribeirinha nas 39 ilhas que formam nossa cidade. É investir na drenagem dos canais sob os quais ainda vive parte da população da cidade, de forma que ela permaneça após as melhorias. É regularizar a propriedade da terra, permitindo que parte significativa da população tenha meios de obter crédito e progredir nos mecanismos de sua sobrevivência. Lançar o edital de licitação da frota de ônibus, extremamente sucateada, enfrentando o poderio dos empresários do setor também é escolher o lado do usuário, no caso os mais pobres.
A segunda caraterística é a participação popular. Não basta para um governo de esquerda cumprir o que nossa limitada legislação estabelece, seja no que diz respeito à transparência das contas governamentais ou ao funcionamento de conselhos de direitos. Todo o fundo público precisa ser debatido com toda a população, mesmo que ao fazê-lo fique escancarada a falta de recursos para reverter os indicadores sociais existentes, mesmo com a inversão de prioridades. Em Belém, instituímos um programa de participação cidadã chamado “Tá Selado”. São reuniões por local de moradia (nos 72 bairros da cidade e suas ilhas), por temática de interesse (mobilidade, cultura, educação, por exemplo), da juventude e, inclusive, este ano realizamos o 5º Congresso das Crianças, o Tá Seladinho, envolvendo nossas escolas municipais, ensejando reflexões sobre problemas sentidos pelas crianças, desejos de mundo melhor.
A terceira característica diz respeito a disputar corações e mentes, ter ações políticas que reforcem o caráter solidário de nossas ações, combatam o preconceito contra mulheres, negros e a população LGBTQIA+. Assim, toda a nossa proposta pedagógica é inspirada nos ensinamentos de Paulo Freire, tão odiado pelas hordas bolsonaristas nos tempos atuais. Instituímos coordenadorias para fazer essa disputa na sociedade. Tem sido necessário fazer formação antirracista com a Guarda Municipal, para ficar num exemplo prático dessa difícil disputa.
Mas a esperança é o sal que ajuda a temperar a comida e o nosso povo tem fome de tudo. Como manter acesa a esperança numa cidade pobre, com poucos recursos e problemas que necessitam de aportes de recursos que a esfera municipal não tem como oferecer? Como manter o apoio popular recebendo a cidade destruída, com quase todas as escolas, unidades de saúde e centros de assistência precisando de reformas ou reconstrução? Como pedir paciência para quem, passadas duas décadas da experiência anterior, continua vivendo literalmente na lama? Esse é o maior desafio.
Premida por este quadro, a atual gestão teve de manter relação cordial com o governo estadual do MDB, única forma de ter recursos para implementar o programa Bora Belém, que consiste numa renda mínima para famílias vulneráveis e que estavam, ao tomar posse em 1º de janeiro de 2021, excluídas dos programas federais. Hoje temos 16.412 famílias recebendo entre R$200 e R$500 mensais. Da mesma forma, foi essa parceria que viabilizou a limpeza dos 70 canais urbanos, evitando alagamentos em dois invernos amazônicos. E foi com essa relação institucional que conseguimos emitir 7400 títulos de propriedade, a maioria concedidos nas regiões periféricas da cidade. Governar é administrar as contradições, escolher inimigos a enfrentar em cada momento e selar acordos com adversários com inimigos comuns.
A vitória de Lula, de maneira mais específica para a cidade de Belém, representa uma janela de oportunidades. Sem capacidade própria significativa de investimentos para fazer frente aos problemas urbanos, a Prefeitura possui três caminhos: convênios com o governo estadual, empréstimos bancários no limite de sua capacidade de endividamento e programas federais.
Nos dois primeiros anos, contamos apenas com a primeira alternativa, mas limitada na sua amplitude pela necessidade de manter nossa autonomia como partido de esquerda (fomos o único partido do campo a lançar candidatura própria para o governo estadual). E tentamos, de maneira persistente, captar recursos via empréstimos da Caixa e do Banco do Brasil, mas sendo a única prefeitura de esquerda numa capital, os canais institucionais foram rigorosos e meticulosos, adiando sempre a liberação a cada pequeno problema burocrático.
A expectativa é de que, em termos de ajuda direta à gestão municipal, o novo governo Lula ajude na implementação de obras urbanas de saneamento básico, macrodrenagem de canais e construção de moradias populares. E repondo os recursos suprimidos nas áreas sociais, nos permita ter melhores condições para prestar um serviço de qualidade e de maior cobertura na cidade.
Poderia citar aqui as 80 escolas e dezenas de unidades reformadas. Quem sabe, contribuir com o esforço para recompor os salários do funcionalismo, cujos salários são para lá de aviltantes. Ou os investimentos na área da cultura, como foi a realização da Bienal das Artes. Nem poderia esquecer do programa Donas de Si, que capacita mulheres beneficiárias da renda mínima e após o treinamento oferece crédito a juros simbólicos para que possam empreender. E seria injusto não citar o aplicativo Guardiões da Escola, desenvolvido para identificar todos os dias casos suspeitos de Covid nas escolas e alertar a secretaria de saúde, e que agora está sendo usado para monitorar casos de maus tratos e abusos. Mas, somado tudo o que já fizemos, nosso povo ainda está muito longe de ter uma vida digna ou alcançar o padrão de serviços urbanos de outras cidades. Tem gente morando na lama, tendo suas casas alagadas, tem gente indo ao trabalho em ônibus sucateados, tem criança fora da escola, tem bairros com coleta de lixo irregular e nosso sistema de saúde não dá conta do básico.
Governar, como falei no início, é cultivar esperança. E, como nos ensinou Saramago, a esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão. Mantém nosso povo em pé, seguindo adiante, sonhando com dias melhores e enfrentando as hordas fascistas que nos cercam.
Luiz Araújo é Secretário Municipal de Controle, Integridade e Transparência de Belém do Pará. Foi presidente nacional do PSOL de 2013 a 2017. É presidente do Conselho Curador da FLCMF.