Victor Farinelli
O modelo que inspira a equipe de Paulo Guedes, ministro da Economia, em sua fúria por reformar o regime de aposentadorias no Brasil está do outro lado do continente. As disputas foram semelhantes há quase quarenta anos, no Chile.
Em 1980, em plena ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) profundas mudanças foram feitas para privatizar e liberalizar uma série de atividades econômicas. Em setembro daquele ano, houve o referendo para validar a Constituição da ditadura. Denúncias comprovadas de fraude na consulta popular foram feitas por anos a fio. Em novembro foi decretada a reforma do sistema previdenciário.
O autor do projeto foi José Piñera, um dos famosos “Chicago Boys”, economistas graduados na Universidade de Chicago e apadrinhados por Milton Friedman, um dos gurus do neoliberalismo econômico. José é também irmão de Sebastian Piñera, atual presidente da República.
Para abandonar o antigo sistema de repartição, Piñera desenhou um novo modelo, baseado na capitalização individual, pelo qual cada contribuinte precisa criar uma conta previdenciária. Nela são depositadas as contribuições mensais, imediatamente investidas no mercado de ações, onde supostamente encontrariam a rentabilidade que garantiria as futuras aposentadorias.
Saindo do Estado
Assim, a previdência chilena saía das mãos do Estado e seria distribuída entre várias alternativas privadas, as chamadas empresas Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), parte delas ligadas a grandes grupos bancários.
A semelhança entre esse sistema e alguns pontos do projeto de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro não é um acaso. Em dezembro, o deputado Eduardo Bolsonaro foi ao Chile para se entrevistar pessoalmente com José Piñera. Seguramente o objetivo era saber detalhes de um regime que acabou com um sistema sustentado na solidariedade e na colaboração social em favor de outro baseado no individualismo.
Outra semelhança com o caso brasileiro é que o processo de transição entre as duas modalidades também foi marcado por uma exceção. Militares e policiais foram os únicos a manter os regimes especiais de repartição e consumirão 1,7 trilhão de pesos (cerca de R$ 8,5 bilhões) dos cofres públicos neste 2019, segundo números oficiais da Caixa Previdenciária da Defesa Nacional (Capredena) e da Departamento Previdenciário da Polícia (Dipreca), órgãos que administram os fundos públicos desses dois setores.
As primeiras reações negativas
Mesmo com os vários problemas de rentabilidade das empresas AFP especialmente durante crises econômicas, o primeiro alarme do fracasso do sistema soou somente em 2013, quando um estudo publicado pelo Centro de Estudos Nacionais de Desenvolvimento Alternativo (Cenda): (https://www.cendachile.cl/) mostrou que cerca de 60% dos aposentados recebiam em média 150 mil pesos chilenos (cerca de R$ 633 da época) por mês. Vale notar que o salário mínimo era de 210 mil pesos (R$ 888 da época).
Com o passar dos anos, essa brecha foi aumentando. Segundo o Cenda, enquanto a aposentadoria atual não passa dos 156 mil pesos (R$ 890), o salário mínimo chileno já é de 301 mil pesos (R$ 1750). Novamente, a média das aposentadorias chilenas pode não parecer tão diferente das aposentadorias brasileiras, mas é cada vez mais baixa, se observamos que a diferença com o salário mínimo aumenta todos os anos.
Além disso, eliminando as exceções que puxam a média para cima, podemos encontrar outro número problemático: 90% das aposentadorias por idade são abaixo dos 144 mil pesos (R$ 722), ou seja, menos da metade do atual salário mínimo.
Com o aumento do número de aposentados em situação precária, o movimento No + AFP (Não mais AFP), criado há mais de dez anos, conseguiu fortalecer a causa e desde 2016 vem realizando marchas maciças. Em 2017 chegou a reunir mais de 200 mil pessoas em protestos na capital, Santiago.
Promessa falsa
Uma das líderes do movimento é Silvia Aguilar Torres, trabalhadora do setor da saúde. Ela relata o crescimento do movimento: “À medida que mais pessoas se aposentam, percebem que a promessa de eficiência do sistema privado é falsa. Quase todos os setores políticos e empresariais estão unidos na defesa desse sistema”.
Aguilar Torres se refere às diversas medidas tomadas pelos últimos governos (especialmente o de Michelle Bachelet, entre 2013 e 2017) para tentar melhorar as aposentadorias. “Nem com o fracasso do sistema e as aposentadorias miseráveis que paga, há poucos setores políticos comprometidos com uma ação para questionar o modelo e defender sua extinção, como fez a presidenta argentina em 2008”, recorda a dirigente. Ela sublinha a decisão tomada por Cristina Kirchner que, durante a crise mundial da década passada, nacionalizou os fundos das empresas administradoras.
Além disso, o periódico uso de dinheiro público para reduzir as deficiências do sistema joga por terra um dos argumentos preferidos dos liberais, o de que a entrega da Previdência às AFP permitiria ao Estado reduzir as despesas. Entre os diferentes programas de bolsas criados para garantir um valor mínimo das aposentadorias, o Estado chileno gastou em 2017 mais de 135 bilhões de pesos (R$ 677 milhões), segundo dados do Instituto de Previsão Social do Chile (IPS).
Lacunas do sistema
Durante a implementação do sistema, a promessa de José Piñera e das empresas AFP falava de um rendimento mensal que seria 80% do maior salário recebido durante os anos de contribuição. Entretanto, segundo números do Cenda, esse rendimento é de 18,5% do salário para a maioria dos contribuintes.
A desculpa ensaiada pelos defensores do regime de capitalização para explicar essa defasagem costuma mencionar o que se chama de “lacunas previdenciárias”, períodos sem contribuição, geralmente provocados pelo desemprego ou pela informalidade.
As empresas do setor criaram a Associação das Administradoras de Fundos de Pensão (AAFP) dirigida, entre outros, por ex-ministros de governos anteriores (de direita ou centro-esquerda) ou deputados de partidos de direita.
“Para o trabalhador que lida com a instabilidade ou que convive com a informalidade, é muito difícil contribuir regularmente. No último ano da ditadura, eram pouco mais de 40% os que contribuíam com contas individuais em empresas AFP. Durante a democracia, conseguimos elevar esse índice para acima dos 60%”, contra o professor Ricardo Ffrench-Davis, economista-chefe do Banco Central chileno entre 1990 e 1992, durante o governo de Patricio Aylwin (o primeiro da redemocratização).
Resultado desastroso
As lacunas previdenciárias são um dos problemas do sistema de capitalização, mas só isso não explica os resultados desastrosos nos rendimentos dos contribuintes. Prova disso é o caso de Yasmir del Carmen Fariña, que trabalhou regularmente como secretária administrativa da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Chile por mais de 30 anos, sem lacunas, e solicitou um cálculo de sua aposentadoria em 2014. O salário médio dela era pouco mais de 1 milhão de pesos (R$ 4,3 mil à época). Pelos parâmetros do sistema, o valor mensal deveria ser entre 750 e 800 mil pesos. No entanto, a AFP lhe informou que seria de apenas 336 mil (R$ 1,4 mil), praticamente um terço de seu salário médio.
“Quando reclamei na Superintendência de Pensões, órgão que deveria fiscalizar essa situação, responderam não haver nada de errado com o meu caso”, conta a ex-secretária. Por esse motivo, ela continua trabalhando, apesar de já ter superado a idade mínima há quase cinco anos.
Histórias como a de Fariña são comuns, especialmente entre as mulheres, o que também mostra um recorte de gênero entre os problemas gerados pelo sistema de capitalização. “Esse sistema penaliza todos os trabalhadores, mesmo os que contribuem regularmente, mas muito mais os que estão sujeitos à precarização, seja pela informalidade ou pela instabilidade. As mulheres são as que mais sofrem”, alega a dirigente Silvia Aguilar Torres.
Aumento dos suicídios
Os baixíssimos valores das aposentadorias têm feito aumentar o número de suicídios no país na última década, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas do Chile (INE). Entre 2010 e 2018, a taxa subiu de 8 para 10 casos em cada 100 mil habitantes. Ela é muito maior entre os aposentados, com 15,4 casos entre idosos de 70 a 79 anos, e 17,7 casos em cada 100 mil, a partir dos 80 anos. Essa diferença entre faixas etárias, segundo os especialistas do INE, passou a se acentuar nos últimos sete anos.
Enquanto isso, o lucro das empresas AFP (e dos bancos que as controlam) é um dos maiores do país. Segundo reportagem do portal de jornalismo investigativo Ciper, as administradoras faturaram, no ano de 2017, um total de 347 bilhões de pesos (R$ 1,7 bilhão). Isso significa mais da metade dos 660 bilhões de pesos (R$ 3,3 bilhões) arrecadados pelas contribuições dos clientes no mesmo período.
Além disso, o sistema também é criticado em outras latitudes, por economistas que estão longe de serem considerados marxistas, como o estadunidense Paul Krugman (Prêmio Nobel de Economia de 2008). Durante a visita ao Chile há dez anos, em entrevista ao diário La Segunda, declarou que “por sorte, os Estados Unidos mantiveram o sistema (estatal), quando estava na moda copiar o modelo chileno. Caso contrário, teríamos produzido mais uma grande crise (em referência à iniciada em 2008)”.
Atualmente, mais de 95% dos países do mundo têm seus sistemas previdenciários baseados no modelo de repartição, como o que ainda vigora no Brasil.
Transição à capitalização
Apesar dos problemas do sistema de capitalização individual ao longo dos anos especialmente a perda de rentabilidade dos fundos a cada grande crise, somente na década atual ele começou a gerar revoltas sociais.
É completamente falso o mito alimentado por Paulo Guedes, Eduardo Bolsonaro e outros neoliberais brasileiros de que o início dos anos 1980 no Chile foi marcado por crescimento e prosperidade exemplares. Além da censura, perseguição, tortura e assassinatos promovidos pela ditadura, em 1982 o país sofreu uma profunda recessão. Para o economista Ricardo Ffrench-Davis, “A recessão começou depois que a ditadura já havia realizado todas as grandes reformas. O PIB caiu 14%, e no ano seguinte cerca de 41% da força de trabalho estava desempregada ou vivia dos programas de subsídio”.
Segundo Ffrench-Davis, é importante lembrar esse contexto dos primeiros anos do sistema para entender os resultados nos dias atuais. “Quando se instala um modelo de capitalização em uma sociedade na qual a desigualdade cresce fortemente, como era o Chile de Pinochet, o resultado só pode ser a capitalização da desigualdade”, explica o economista.
Crescimento dos negócios
Mesmo diante de um cenário econômico adverso, as AFP precisavam fazer o negócio crescer, não só com os poucos que chegavam ao mercado de trabalho, mas sobretudo convencendo os que estavam no sistema de repartição a mudar para uma previdência privada.
Nesse sentido, é importante lembrar que a transição permitiu às pessoas que já estavam trabalhando escolher entre se manter no antigo sistema de repartição ou mudar para a capitalização individual. Somente os que começaram a trabalhar a partir de 1981 foram obrigados a ingressar no novo sistema.
Ou ao menos legalmente foi assim: há muitos relatos de trabalhadores mais antigos que foram obrigados a mudar de sistema. O operário aposentado Francisco Becerra lembra: “Meu patrão na época chantageou todos os funcionários. Chegou para mim e disse você é o único teimoso que eu ainda não convenci a mudar para as AFP, mas se tiver algum problema com isso, as portas da rua sempre estarão abertas. Foi assim em muitas empresas, e até mesmo no setor público”. Atualmente, Becerra é ativista do movimento No + AFP.
O papel da mídia
A mídia controlada pela ditadura também teve um papel fundamental durante o período de transição. Durante anos, o próprio José Piñera aparecia em anúncios de rádio e televisão prometendo maravilhas aos que abrissem uma conta em uma empresa AFP. Dizia que, “com elas, no futuro, todos os chilenos seremos um pouco donos da IBM ou da Coca-Cola”. Isso porque a promessa é que as administradoras investiriam esses recursos no mercado de ações.
Ffrench-Davis critica o uso que as empresas AFP fazem das contribuições dos clientes. “A maior parte dos recursos é destinada a investimentos fora do país e, preferencialmente, no mercado financeiro, que é muito mais volátil e sujeito a maiores perdas. Os criadores do sistema afirmavam que essas contribuições serviriam para potencializar o investimento produtivo no Chile. A verdade é que nada foi investido em produção ou negócios nacionais. Há entre US$ 90 e 100 bilhões de contribuintes chilenos no mercado financeiro dos Estados Unidos”, finaliza.
Ricardo Ffrench-Davis sobre Paulo Guedes
Professor da Universidade do Chile, o economista Ricardo Ffrench-Davis não foi contemporâneo de Paulo Guedes, que também deu aulas na principal casa de estudos do país. Ainda assim, o relato pode desvendar um pouco da passagem do atual ministro brasileiro pelo meio acadêmico chileno: “Guedes foi professor da Faculdade de Economia da Universidade do Chile durante a ditadura, quando a casa de estudos era dominada pelo neoliberalismo extremo. Na época, a perseguição e expulsão dos que pensavam diferente em matérias econômicas foi bastante intensa, em uma política contrária à liberdade de pensamento e de reflexão”.