Estado e empoderamento
‘’O processo que levou à eleição de Jair Bolsonaro merece toda a atenção de nossas lutas, por muitas razões, que vão muito além da perda de direitos e caminham no sentido de constituir um ativismo capaz de responder criativamente a isso’’.
Helena Vieira
Temos encampado muitas lutas há muito tempo. Os últimos anos, ao menos simbolicamente para LGBTQIA+, pareciam repletos de avanços. Reconhecimento institucional das demandas, editais, presença no aparelho do Estado, lugares no governo federal e nos governos subnacionais. Conferências, decretos, espaço para diálogo, tudo isso esteve lá, ainda que apenas os ingleses vissem e que as mortes de LGBTQIA+ continuassem acontecendo, sem registros, sem reconhecimento, sem rosto, sem advocacy. Desfrutamos uma arrasadora paixão pelo poder judiciário e com isso provocamos o Supremo Tribunal Federal: união estável, casamento, mudança no registro civil de pessoas trans direto no cartório. São avanços fundamentais, defendidos por muitos e muitas de nós. Eu mesma, em 2010, participei em Brasília de um grande abraço coletivo à sede do STF. Estávamos mesmo apaixonadas por essa lufada de cidadania. Na cultura também avançamos: beijo gay, família homoparental, novelas com personagens e atrizes trans, cantoras e cantores transgêneros, transexuais, travestis e drag queens. Nos elevamos como um tsunami nas redes sociais. Páginas de ativismo e grupos. Conexões múltiplas. Nos dividimos entre as muitas estratégias, entre os muitos conflitos. Problematizamos as nossas relações ao extremo. Nada poderia passar, absolutamente nada. O tempo era de pedir tudo e de colocar tudo abaixo. Estávamos finalmente, empoderados, ainda que continuássemos morrendo. Ebriamente empoderados, seria possível dizer
Não mais armoriados
Das margens do desejo e de alvos da violência, negociando muito bem a nossa perversidade, acessamos, ainda que marginalmente, os centros de poder. Não mais armoriados, mas muito bem vestidos, certamente. Às vezes muito coloridos, às vezes engravatados, às vezes falando patuá, às vezes usando charmosos termos em inglês, tão na moda no mundo dos empreendedores. Fizemos nossas pautas e vozes visíveis. Não apenas na Parada LGBTQ, na Avon ou com os Doritos, Sky e Uber, mas nas redes sociais, no nosso diário e incansável web-ativismo, nos tornamos centenas de milhares de híbridos: celebridade-ativista, celebridade ativistamodelo, celebridade-ativista-formadora de opinião, celebridade-ativista-acadêmica. Milhares de seguidores. Compartilhamentos likes, dispensamos coletivos, partidos, ONGs e todas essas organizações e instituições que nos pareciam tão fora de moda. Livres. Individuais. Liberais. Empoderadas e cheias de opinião.
Lutar em tempos de Bolsonaro
Lutar em tempos de Bolsonaro O processo que levou à eleição de Jair Bolsonaro merece toda a atenção de nossas lutas, por muitas razões, que vão muito além da perda de direitos e caminham no sentido de constituir um ativismo capaz de responder criativamente a isso. É preciso que nos dediquemos política e intelectualmente a compreender o encadeamento caótico dos acontecimentos, estando abertas, inclusive, a abrir mão do apego a esta ou aquela forma de constituir nossa luta feminista.
O Abismo, paralaxe.
Parece haver um imenso abismo entre nós e os eleitores de Bolsonaro, os milhões que eles são. E é um abismo insustentável. Ainda que insistamos no rompimento de amizades, “eles” estarão na padaria, no mercado, no trabalho, na escola, no banco, na universidade. São milhões e, frequentemente, dividem o mesmo espaço conosco. Habitamos o mesmo mundo. “Eles” não podem ser identificados por este ou aquele signo. Há mulheres, gays, negros e toda uma constelação das “minorias” simbólicas que nossas lutas acreditam e tentam “representar”. Aumentar a distância entre um suposto “nós” e “eles” é o caminho mais rápido para um desastre ainda mais radical, que é nosso isolamento. O desafio neste momento, penso, consiste em encontrar maneiras de constituir uma relação com essas tantas pessoas que identificaram em Bolsonaro uma resposta para suas mazelas. Reduzir o abismo. Movimentar-se até o outro extremo, ou, ainda mais radical e geologicamente, colocar fim ao abismo unindo os territórios opositivos.
A desmoralização necessária
A defesa da vida. A defesa dos oprimidos. A defesa da democracia. O fim da desigualdade. As políticas sociais. Essas defesas não podem ser simplesmente morais, deixemos a moralidade impositiva para as religiões. A moralidade dessas defesas pode transformá-las em significantes vazios e propostas radicalmente antagônicas entre si ser significadas como ajustadas a isso. Noutro sentido, é importante termos em mente: não há mérito universal ou elemento de distinção nenhum em ser militante ou ativista do que quer que seja. Não podemos continuar esperando que as pessoas defendam isso ou aquilo por razões morais. É preciso abandonar essa superioridade moral, distanciada e boba, para relembrarmos que nossas ideias, para que ganhem as pessoas, precisem ser expostas. As pessoas precisam entender os caminhos que nos levam a crer que sejam as melhores ideias. Frequentemente, a nossa “superioridade moral” beira o elitismo. E, por vezes, pensamos que, se alguém discorda disso ou daquilo é porque ou não sabe o suficiente ou não entendeu. Essa é uma postura dogmática. Se temos sido até aqui dogmáticos e nos lascamos, é bom começarmos a constituir outras formas de ser.
A briga pelo sentido
Teremos o árduo trabalho de responder e traduzir o sentido de feminismo e esquerda para os que chamamos “eles”. Não será uma tarefa simples. Cabe tudo e cabe nada. Quiçá tenhamos que inventar novos sentidos, deformando os conhecidos, ou, melhor ainda, permitindo que a escuta das vozes que ecoam por e do abismo nos deformem.
O punitivismo do quanto pior melhor
É hora de parar de dizer “Eu avisei” ou “Quando o Bolsonaro ferrar todo mundo e acabar com os direitos das pessoas, então elas verão que estamos certos”. Gente, percebem a lógica punitivista implícita nesse discurso? Será pelo sofrimento advindo do erro que o sujeito aprenderá. Além disso, é pura inação, né? Se quisermos que algo aconteça é preciso organizarmos as lutas, uai, e pra isso talvez seja preciso olharmos para as práticas que construímos ao longo do tempo e percebermos se respondem as formas de dominação do nosso tempo.
“Eu prefiro não fazer”
A famosa frase de Bartleby do conto de Herman Melville talvez nos dê uma pista sobre como reagir às estratégias de fake News e polemização incessante. Recusemos. Temos sido até aqui reativos. Maus reativos. Anunciamos um mundo que se assemelha a um paciente terminal e então vivemos reagindo as crises que aparecem. Temos sido feministas e militantes de esquerda absolutamente promotores de afetações negativas, que, se por um lado geram comoção, conjunturalmente produzem desesperança, medo e dor. Recusemos debater nos termos que nos ofertam. Recusemos responder as provocações que nos fazem. Inventemos.