Eduardo Fagnani
Em cinco séculos de história, tivemos meio século de democracia, interrompido. Cem anos atrás, éramos uma sociedade de analfabetos agrários recém-saídos do regime escravocrata. Trinta anos atrás, reconquistamos a democracia e inauguramos a cidadania plena (MARSHALL, 1967), as quais deveriam ser saudadas como cláusulas invioláveis, pré-requisitos para a construção de um futuro suficientemente potente para enfrentar as diversas faces da vergonhosa desigualdade social. Ao contrário, vivemos o final desse ciclo recente, no qual, aos trancos e barrancos, por força da pressão da sociedade civil organizada, abriram-se brechas para que o arcaico processo civilizatório avançasse moderadamente. Como se sabe, após difícil percurso, o projeto reformista e democrático formulado pelas forças políticas que lutavam contra a ditadura desaguou na Constituição de 1988 (FAGNANI, 2005). Na proteção social, os reformistas se inspiraram em alguns valores dos regimes de Estado de Bem-Estar Social. Esse movimento caminhou na contramão do mundo, pois a sociedade queria acertar as contas com a ditadura, e não havia campo fértil para germinar o projeto neoliberal, já hegemônico no plano internacional.
Entretanto, as camadas dirigentes, para preservar o status quo social, não toleram sequer avanços formais muito modestos e, desde 1988, conspiram para sepultar esse legado.
O golpe atual é nova oportunidade. O propósito é radicalizar o projeto ultraliberal e implantar o Estado Mínimo, que é a negação do Estado Social: focalização versus universalização; assistência versus direitos; seguro social versus seguridade social; mercantilização versus serviços públicos; contratos flexíveis versus direitos trabalhistas e sindicais.
O núcleo do Estado Mínimo é ocupado por políticas focadas na “pobreza”. O Estado cuida apenas dos “pobres” (aqueles que recebem até um dólar por dia). Os “não pobres” têm de comprar serviços no mercado. Programas dessa natureza são funcionais para o ajuste macroeconômico, pois são baratos (0,5% do PIB) em relação às políticas universais, especialmente a Previdência Social (8% do PIB).
Com base na experiência do Chile, desenvolvida no início dos anos de 1980 por delegação de Pinochet a Milton Friedman, o Banco Mundial elaborou o conhecido “modelo dos três pilares”. Ao Estado cabe atuar no “pilar inferior”, onde se concentra a “pobreza”. Para os “pilares intermediários e superiores”, a “soluções” são dadas pelo mercado.
Tentativas de destruir o Estado Social
A reação contra o Estado Social foi iniciada antes mesmo que a Constituição de 1988 saísse da gráfica do Congresso. É emblemático que o então presidente José Sarney, antigo prócer da ditadura, tenha convocado cadeia de rádio e televisão para alertar que o país tornar-se-ia “ingovernável”, caso a Assembleia Nacional Constituinte aprovasse o capítulo da Ordem Social.
A reação aprofundou-se nos anos de 1990, quando se formou no Brasil uma opinião favorável às reformas propugnadas pelo Consenso de Washington (FIORI, 1993). O primeiro momento da contrarreforma compreende o curto governo Collor, quando seria desfechado o golpe final na Carta de 1988, pois a própria Constituição previa a revisão em 1993 por maioria simples dos votos. Mas essa revisão acabou não ocorrendo por conta do impeachment, e os planos da elite tiveram de ser postergados.
O segundo momento prosseguiu entre 1993 e 1994. Sem condições de retomar a revisão constitucional, o governo Itamar impôs novas contramarchas na fase preparatória ao Plano Real, com destaque para a implantação da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que captura para o Tesouro Nacional 20% dos recursos constitucionais vinculados às políticas sociais.
O terceiro momento compreende os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). O ajuste macroeconômico e a reforma liberal do Estado exigiam que a “Ordem Social” fosse eliminada da Constituição. As idéias que procuravam impor a focalização como a única política social possível para o Brasil ganham maior vigor a partir do acordo com o FMI (1998).
O quarto momento, compreende o primeiro mandato de Lula (2003-2006). Com a “Carta aos Brasileiros”, o mercado, que apostava contra o Brasil, impôs a continuidade da ortodoxia liberal. O comando da economia foi entregue a economistas ortodoxos como, por exemplo, Joaquim Levy (Secretário do Tesouro). O Ministério da Fazenda recuperou a chamada “Agenda Perdida” (IETS, 2002), recusada pelo candidato Ciro Gomes (eleições de 2002) por ser “excessivamente neoliberal”.
Em 2005, o governo pretendia implantar o “Programa do déficit nominal zero”, que previa a obtenção do superávit nominal de 7% do PIB por um período de dez anos; redução da meta de inflação; independência formal do Banco Central; e ampliação na DRU, de 20% para 40%. Assim como hoje, o “sucesso” do plano dependia do severo corte do gasto social. Todavia, o programa foi trucidado pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que o considerou “rudimentar”, pois não atacava a questão central dos juros. Sem isso, o governo estaria “enxugando gelo”, afirmou.
Breve trégua
Impulsionado pelo comércio internacional favorável e pela gestão econômica relativamente menos ortodoxa, após 25 anos a economia voltou a crescer. Os desdobramentos da crise financeira internacional e os erros domésticos cometidos no primeiro governo Dilma Rousseff contribuíram para a desaceleração da economia. Mesmo assim, entre 2007 e 2013, houve melhora nos indicadores macroeconômicos e sociais, fruto do crescimento e de seus impactos na geração de emprego, na elevação renda do trabalho, no crescimento do gasto social e na ampliação da renda das famílias. Esses fatos obrigaram a uma curta trégua, na ofensiva liberal.
Golpe derradeiro
A vitória eleitoral do PT em 2014 poderia alijar a oposição do poder por mais 12 anos. Diante do fato, foi desenvolvida ampla campanha difamatória, protagonizada pela grande imprensa. Tiveram êxito em canalizar para o âmbito federal a insatisfação popular de junho de 2013, inicialmente, contra o aumento das tarifas de ônibus. Em 2014 foi a vez do “terrorismo” econômico que denunciava a “quebra” do país em função do déficit primário (0,6% do PIB) de fato, uma piada macabra, em relação ao cenário internacional.
Com a derrota eleitoral, repetindo 1950 a senha passou a ser “se tomar posse, não governa” (replicado no twitter de um prócer da oposição). Nesse cenário, a presidente reeleita cometeu haraquiri político, ao ceder às pressões do mercado, adotar o projeto derrotado nas urnas e colocar na Fazenda um dos porta-vozes do “terrorismo”. O atual funcionário do FMI fez seu serviço, colocando o país, que não estava em crise severa, numa grave recessão.
A recessão teve serventia para realimentar a crise política, insuflar as ações antidemocráticas, rebaixar os custos trabalhistas, liquidar o legado social petista, criminalizar quaisquer políticas distributivas (declaradas “populistas” e, portanto, “irresponsáveis”) e, por consequência, todos os partidos políticos e movimentos de esquerda. Ela também foi útil para o segundo resgate da “Agenda Perdida”, agora denominada “Ponte para o Futuro”, e para a implantação do Estado Mínimo liberal, pois “não há alternativa” a não ser o severo corte de gastos sociais “obrigatórios”, pela revisão do “contrato social da redemocratização”.
O Estado Social de 1988 será finalmente sepultado pela ampliação da DRU, de 20% para 30% (já aprovada pelo Congresso), com o fim da vinculação de recursos para educação e saúde e, sobretudo, com a PEC 241/16, que congela gastos públicos por 20 anos. A pauta também impõe graves retrocessos na Previdência Social e, no caso dos direitos trabalhistas, um retorno para o início do século XX.
Nota final
A ruptura democrática é nova oportunidade para radicalizar a agenda ultraliberal. Esse propósito, derrotado nas últimas quatro eleições, vem sendo tentado há mais de quatro décadas. As reformas na área social têm por objetivo implantar o Estado Mínimo liberal. Entre 2016 e 2018, todas as pontes para o desenvolvimento poderão ser destruídas. Estamos assistindo ao impeachment do processo civilizatório. Mais uma vez, fica cristalinamente claro que a democracia e a cidadania social são corpos estranhos ao capitalismo brasileiro.