O PSOL surgiu para acolher as esquerdas socialistas que se rebelavam contra o enquadramento do governo Lula pela ordem neoliberal. Foi um pequeno, mas importante espaço de resistência das ideias e práticas socialistas quando grande parte das esquerdas se deslocavam para um pragmático reformismo social-liberal. Isso não se passou somente com o PT e o campo democrático e popular no Brasil, mas com o progressismo latino-americano, embora a corrente bolivariana desdobrasse mais contradições com a ordem geopolítica vigente.
O PSOL foi, com o bloco de esquerda em Portugal, uma referência de partido socialista amplo e pluralista, capaz de fazer convergir o essencial do que a imprensa costuma chamar de extrema esquerda para processos sinérgicos de construção comum. E foi capaz, como o Bloco e diferente de outras experiências (como o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha), de resistir à tentação de projetos reformistas de governo. Pelo menos até agora.
O lugar do PSOL como o partido das esquerdas nas cenas rebeldes brasileira mais nítido no contexto global de sublevações populares contra as políticas de austeridade depois de 2011 e a expressão aqui nas mobilizações de 2013. O partido ganhou mais sintonia com as manifestações da juventude feminista, antirracista e anti-homofóbica. O PSOL também soube se mover na conjuntura do golpe institucional de 2016, compreendendo a ameaça que se assomava para a democracia no país, por vezes com mais coerência que o próprio PT, defenestrado do governo.
O partido foi, assim, capaz de acolher deslocamentos políticos de outros partidos e, em 2018, sob o impacto do assassinato de Marielle Franco, dar um salto como espaço que acolhia lutadores sociais de várias esferas. Se com Guilherme Boulos dialogava mais fluidamente com bases sociais petistas, com Sonia Guajajara, o PSOL começava a assumir, na prática, uma crítica ecossocialista mais consistente ao desenvolvimentismo e à visão progressista da sociedade. O resultado foi o atual perfil da representação parlamentar do partido, com a eleição de 10 deputados federais e 18 estaduais, além de Edmilson Rodrigues como prefeito de Belém mais da metade mulheres com grande número de negres e LGBTs.
Todavia, essa trajetória se deu empiricamente, sem debater e enfrentar uma série de problemas decisivos para qualquer projeto político de caráter antissísmico.
Enuncio a seguir alguns deles:
A clássica “questão parlamentar”, debatida desde os tempos da operária social-democracia alemã (século XIX), ganhou, por todas as partes, contornos muito mais decisivos nas últimas décadas, com o sequestro da política pelo mercado e a perda de credibilidade da representação partidária nas democracias liberais. Mas, para além disso, em uma estrutura social tão absurdamente desigual, como a brasileira, a intervenção parlamentar é completamente insuficiente como agenda de disputas. Ela precisa se vincular aos setores mais dinâmicos da luta social e política, às contradições candentes e atores decisivos da formação social brasileira, às tarefas históricas não resolvidas e aguçadas pela crise nacional. Nos marcos do sistema político brasileiro, em que o voto é nominal, os mandatos sempre se configuraram em elementos de esgarçamento da dinâmica autônoma dos partidos políticos. No PT, esses centros autônomos de poder já semeavam o terreno, na década de 1990, junto a executivos municipais e estaduais, de cooptação do partido pelo aparato do Estado. Mas, depois de 2013, com o reflexo de autoproteção das oligarquias abrigadas no sistema partidário e a proscrição do financiamento empresarial de campanhas, tivemos uma grande expansão do uso dos fundos públicos pelos partidos. Fundo partidário, fundo eleitoral, verbas para a Fundação partidária, gabinetes de liderança em cada nível, tempo de televisão e verbas, por vezes muito vultosas, de gabinete tornam qualquer partido com uma representação partidária significativa, uma máquina que busca se autorreproduzir de eleição em eleição. Completando a pressão pela institucionalização e estatização da política, acresce-se uma cláusula de barreira que pressiona pelo desempenho eleitoral crescente. Parlamentares, por vezes, projetam-se por cima do partido, particularmente quando fortalecidos em disputas majoritárias, algo em nada estranho às tradições caudilhescas da política latino-americana. Mas não criemos mal entendidos: nenhuma dessas observações deve ser entendida como antiparlamentarismo; parlamentares assumem um papel central na visibilização de agendas, na iniciativa política junto ao estado, no acesso midiático, no diálogo público contemporâneo. Precisamos de um partido forte, democrático e politizado para potencializar a intervenção de nossos melhores parlamentares. Mas cada um dos problemas apontados e ainda mais todos juntos carregam questões para a atual “forma partido” que não podemos naturalizar em um projeto antissísmico. Que isso não seja tematizada no PSOL mostra o quanto estamos navegando em piloto automático.
O PSOL pactuou, em sua trajetória, sucessivas variações de um projeto antineoliberal. Das candidaturas presidenciais de Heloísa Helena, Plínio Sampaio e Luciana Genro, seguimos uma trajetória que, com idas e vindas, foi cumulativa. Posteriormente, adentramos às sucessivas conjunturas de aguçamento da crise nacional e aceleração brutal da história e não só no Brasil: as corporações de plataforma ocuparam o lugar das grandes empresas fordistas; a financeirização escala; a China se candidata a hegemon do capitalismo global; a emergência climática e a perda de biodiversidade vão para o centro da agenda progressista, desigualdades de toda ordem também se aprofundam e um projeto neofascista disputa o descontentamento com o globalismo cosmopolitismo. Analiticamente, isso significa alteração na morfologia das classes, identidades sociais, relação da sociedade com o estado, relação do nacional e do global, na própria ideia de uma sociedade que “domina” a natureza. Por todas as partes o socialismo vem se metamorfoseando em ecossocialismo, mas o que seria uma transição ecossocial no Brasil? Como requalificar o sentido do progresso, nesta fase crítica da nossa história? No mundo em que as corporações de plataformas desqualificam o trabalho e promovem o colonialismo global de dados, como garantir renda e emprego, cooperativas e redução da jornada? Como limitar o impacto do comércio internacional sem recair nos velhos autarquismos? Como retomar o projeto do altermundialismo e estruturar hoje uma prática de solidariedade internacionalista cada vez mais decisiva a partir do Brasil, em uma América Latina em chamas? Já que a conflitividade social escala por todas as partes, com a luta das mulheres e das populações racializadas ocupando um lugar estratégico e galvanizado o movimento de conjunto, como impulsionar o sujeito popular interseccional? Como promover a mudança social a partir da auto-organização popular? Essas e outras questões análogas não serão respondidas nas disputas de encontros dominados pela “contagem de garrafas”. Exigem articulação entre teoria e prática por um partido que tenha abertura política, vida pluralista e autoridade moral junto a largos segmentos sociais. Aqui, como no ponto anterior, seguimos, por enquanto, navegando no rumo previamente estabelecido pelo piloto automático.
O PSOL se formou, corretamente, como uma federação de tendências, organizações e correntes um barco capaz de dar guarida a todos os socialistas, ao mesmo tempo que buscava oferecer espaços de militância para filiados não alinhados a nenhuma delas. As correntes se alinhavam e realinhavam ao sabor das disputas das conjunturas. Frente a polarizações sempre existiam posições capazes de estabelecer as mediações entre os polos e oferecer sínteses parciais. Mas, em 2016/18, com as posições táticas distintas frente ao golpe institucional e, posteriormente, com o PSOL integrando uma aliança eleitoral com outros componentes, essa dinâmica se alterou. Novos setores se integraram ao partido e crispações internas se aprofundaram, pretendendo ganhar ares estratégicos. Todavia, não fomos capazes de avançar em nada na democratização da vida partidária; o PSOL não é, enquanto tal, um espaço de organização para ativistas sociais. que querem um espaço acolhedor de debate e organização fraternos, de alcance estratégico. O mundo digital também está transformando a maneira como se informarem e organizam o ativismo socialista contemporâneo, porém o partido até agora não conseguiu nem dinamizar o acesso horizontal à informação e ao debate entre os militantes nem montar uma intervenção nas redes sociais para além daquela dos mandatos e das candidaturas. O PSOL é, agora mais do que antes, um partido de correntes internas de muito peso que precisam conviver nesta difícil conjuntura crítica no Brasil. Mas uma estrutura de partido centrada na dinâmica das correntes e da disputa entre elas limita a capacidade de fazermos grandes debates estratégicos e construirmos coletivamente visão de médio e longo prazo. Precisamos potencializar estruturas partidárias voltadas às lutas concretas, como núcleos territoriais e ferramentas setoriais, que têm demonstrado muito mais capacidade de articulação das lutas sociais e permeabilidade a construções outras que não as de disputa de correlação de forças. Precisamos democratizar uma estrutura engessada que não pode ser naturalizada.
A estrada adiante é árdua
Temos diante de nós a luta crítica contra Bolsonaro, mas também o enfrentamento da pandemia, o encaminhamento de uma saída para a crise nacional e um PSOL com uma enorme importância estratégica, mas que também acumulou fragilidades críticas. “Qual é o lugar do PSOL na crise nacional?” é uma interrogação que está em aberto.
O caminho até aquilo que muitos veem como o próximo ponto de encontro na luta de classes no Brasil, as eleições de 2022, é árduo. Não negamos a importância, mas tomá-lo como dado é temerário; para que isso acontecesse, Bolsonaro precisaria já ter sido derrotado. Vamos ter, em qualquer cenário, que articular a disputa social, a intervenção institucional e a busca de protagonismo de nossos porta vozes, inclusive candidatos aos postos centrais em jogo, sob risco de desaparecermos da cena política, dominada pela polarização Bolsonaro e Lula. O PT, disputando alianças no centro e na direita, certamente não tem interesse em nos abrir a porta para um debate programático; vamos ter que arrombá-la, no diálogo com amplos setores. Temos a tarefa de conduzir nosso partido e o projeto estratégico para a conjuntura pós-2022, à quente, enfrentando nossas debilidades.
Pode-se argumentar: como enfrentar tais desafios em uma conjuntura tão adversa? Mas é precisamente a conjuntura adversa que nos força a enfrentarmos essas questões, como foi o caso de toda formação partidária que soube cumprir o papel que se propôs na história. A invenção, diz o ditado, surge da necessidade! O que vamos propor para aqueles que nos acompanharam na trajetória de construção do PSOL até agora? Que leiam um caderno de teses para o Congresso do partido? Definiu-se um processo de Congresso que, muito provavelmente, enfrentará muitas dificuldades operacionais por conta da pandemia. Estamos, no final do primeiro semestre, em um platô de dois mil mortos por dia, e em breve entraremos no inverno, desaconselhando qualquer forma de reuniões presenciais (lembremos que os países do hemisfério norte estão agora na primavera rumando para o verão…).
O processo de vacinação no Brasil que não resolve o problema, mas já ajuda somente ganhará escala no final do ano, quando os países centrais terminarem a imunização. Não é o que muitos gostariam, mas é o que a realidade está nos impondo. De qualquer forma, nenhum dos problemas reais com os quais nos defrontamos no PSOL será resolvido pelos jogos de maiorias e minorias fugazes em disputas de Congressos, ainda mais nas condições excepcionais da pandemia.
Em 2022 o Brasil completará 200 anos de existência como Estado formalmente independente, com a construção da nação soberana ainda por ser empreendida. O lugar do PSOL na política brasileira será definido pelo que ele tiver a dizer sobre isso, pela capacidade de intervir no tempo crítico que nos toca viver. Os desafios colocados exigem uma resposta que combine deslocamentos políticos com o debate e a pactuação interna entre correntes, blocos e campos que permitam a construção de um projeto estratégico e uma hegemonia política legítima, que ainda não existem.