O PSOL CONTRA A BOIADA
Balanço da batalha na Câmara dos Deputados
Letícia Camargo: Gestora Ambiental formada pela Universidade Federal do Paraná e Mestre em Políticas Ambientais e Territoriais pela Universidade de Ferrara. Foi assessora técnica de políticas socioambientais da Bancada do PSOL no Congresso Nacional por 5 anos e é responsável pela incidência política do Painel Mar.
Lucas Ycard Marubo: Indígena do Povo Marubo do Vale do Javari, estudante de Direito na Universidade de Brasilia, onde é membro do Observatório de Direitos Indígenas. Foi assessor da Bancada do PSOL e atualmente é secretário executivo da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas.
A política socioambiental brasileira sofreu retrocessos profundos e inéditos durante o governo de Jair Bolsonaro. Relatório da iniciativa Política por Inteiro aponta que o governo anterior publicou, de 1º de janeiro de 2019 a 31 de julho de 2022, mais de 140 mil atos com interface às políticas ambiental e climática. A análise dos 2.189 atos mais relevantes deste período revela que houve uma combinação de reformas institucionais, com redução da participação social e da transparência, vazios normativos e desregulações estratégicas. A “passada da boiada” foi sentida desde a paralisação de mecanismos para o financiamento de uma agenda sustentável (Fundo Clima, Fundo Amazônia), passando pelos retrocessos em nossos compromissos climáticos (Contribuição Nacionalmente Determinada – NDC, na sigla em inglês), e chegando à explosão dos índices de desmatamento, recordes de queimadas e baixas taxas de pagamento de multas ambientais.
No Legislativo, os ataques à pauta foram graves, com a tramitação e aprovação de Projetos de Lei agora conhecidos como “pacote da destruição”. Tratam-se de propostas que facilitam a liberação de novos agrotóxicos, flexibilizam o licenciamento ambiental para obras de diferentes portes, promovem a grilagem de terras, alteram a demarcação de terras indígenas e muitas outras ações contra o meio ambiente e povos indígenas e comunidades tradicionais.
Neste contexto, a atuação do PSOL foi de muita reação e resistência, em diferentes Grupos de Trabalho, Frentes Parlamentares e Comissões do parlamento. O PSOL também participou da COP 26 e da COP 27, fez uma série de denúncias internacionais e apresentou ações em prol da proteção da Amazônia e o enfrentamento das mudanças climáticas no Supremo Tribunal Federal.
De acordo com o “Ruralômetro”, pesquisa que mediu a atuação parlamentar de 2019 a 2022 em temas socioambientais, o PSOL ficou em primeiro lugar dentre os partidos que atuam em defesa dessas causas no Congresso Nacional. Em uma legislatura extremamente atípica, o partido se destacou por ter uma bancada de combate ao anti-governo genocida que matou e estimulou a violência contra indígenas e assolou a biodiversidade dos biomas do Brasil, em especial da Amazônia e do Cerrado. Colaboramos com o Projeto de Lei 1142/2020, que “dispõe sobre medidas urgentíssimas de apoio aos povos indígenas em razão do novo coronavírus”, e participamos ativamente da Comissão Externa que acompanhou, fiscalizou e propôs providências em relação aos assassinatos de Dom e Bruno na região do Vale do Javari.
Dentre muitas Representações no Ministério Público Federal no tema socioambiental, vale destacar a relacionada ao então Presidente da Funai, Sr. Marcelo Xavier, e ao Coordenador Regional da Funai de Barra do Garças, no Mato Grosso, Sr. Álvaro Peres, envolvidos em graves violações para tratar o garimpo ilegal e a extração de madeira com status de “atividade econômica legal”. A 6ª Câmara do Ministério Público Federal acolheu nossas denúncias e conseguimos contribuir com a exoneração do Sr. Marcelo Xavier. Da mesma forma, foi por meio de representações do PSOL que o MPF abriu investigação sobre o genocídio do povo Yanomami, resultante da omissão do governo Bolsonaro e materializado em casos de desnutrição e malária que levaram o Ministério da Saúde do governo Lula a decretar emergência em saúde pública naquele território.
A vitória de Lula sobre Bolsonaro significou, já nos primeiros 100 dias de retomada democrática, que fossem colocadas em marcha medidas vitais para a preservação dos nossos biomas. Entretanto, para cumprir a promessa de campanha do “desmatamento zero” até 2030, devemos ir além de desfazer o desmonte ambiental deixado por Bolsonaro. Com mais rigor na fiscalização e menos concessões ao agronegócio, os resultados devem aparecer nos próximos anos, mas não podemos arrefecer os esforços em defesa do meio ambiente e dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Isso porque ainda existem grandes desafios à frente, marcadamente os manifestos nos grandes entraves no Congresso Nacional: vencemos a eleição presidencial, mas não a disputa na Câmara dos Deputados e no Senado.
Em 2023, os retrocessos socioambientais na Câmara foram muitos, a começar pela aprovação da Medida Provisória 1151/22, que mudou regras da lei de gestão de florestas públicas por concessão, permitindo a concessão florestal e a comercialização de créditos de carbono. Também houve a aprovação da MP 1154/23 que depenou as pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, e da MP 1150/22, com emendas-jabuti que afrouxaram a lei da Mata Atlântica, desvirtuando o objetivo de proteger o meio ambiente. Foi aprovado, ainda, o PL 4994/2023, o qual coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da floresta amazônica ao flexibilizar o licenciamento ambiental do re-asfaltamento da BR-319, que conecta Manaus (AM) a Porto Velho (RO).
No último ano, também tramitou o terrível PL 490/07, que estabelece um conjunto de medidas de destruição de direitos indígenas, versando sobre o marco temporal – tese sobre a ocupação de terras por povos indígenas que restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988. Esse texto também afeta os povos em isolamento voluntário, abrindo caminhos para a exploração de suas terras em caso de “utilidade pública” e para a perda dos direitos territoriais de indígenas que percam “traços culturais”. Transformado em PL 2903/2023, o texto foi aprovado e recebeu vetos presidenciais na intenção de diminuir um pouco o estrago. Entretanto, nem todos os vetos foram mantidos pelo Congresso Nacional, o que fez com que o PSOL, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e outros partidos, apresentassem ao Supremo Tribunal Federal uma ação que pede a derrubada da lei.
Posse da bancada do Cocar, composta por Sônia Guajajara (PSOL-SP) e Célia Xakriabá (PSOL-MG) em fevereiro de 2023 – © Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
Ficou evidente que, a despeito dos avanços no Poder Executivo, para a pauta socioambiental não há correlação de forças para segurar a boiada no Congresso, de modo que o PSOL tem atuado incansavelmente em defesa do ecossocialismo no parlamento. São exemplos disso a presença do deputado Ivan Valente na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), onde aprovou o parecer do Projeto de Lei 2933/2023, que tipifica o crime de ecocídio, de autoria da bancada do PSOL, e realizou audiências públicas sobre a exploração de petróleo e gás na foz do Amazonas, e sobre o crime da Braskem em Maceió – esta última em parceria com a deputada Luciene Cavalcante. Do mesmo modo, ressalta-se a importante atuação da deputada Célia Xakriabá como presidente da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, bem como na COP 28 em Dubai onde lançou a Bancada do Planeta, uma rede internacional de parlamentares em defesa da natureza e dos direitos dos povos indígenas. Ressalta-se também a atuação da deputada Talíria Petrone e do deputado Chico Alencar coordenando, respectivamente, os grupos de trabalho de Clima e Educação Ambiental da Frente Parlamentar Ambientalista.
Diante do crescimento e intensificação dos eventos climáticos extremos e seus impactos nas cidades brasileiras, a aprovação do PL 380/23, que cria diretrizes que fomentem a construção de cidades resilientes às mudanças climáticas, deve ser muito celebrada. De autoria da deputada Erika Hilton, o texto foi aprovado na Câmara com parecer do deputado Guilherme Boulos na Comissão de Desenvolvimento Urbano, e do deputado Tarcísio Motta na Comissão de Constituição e Justiça. Vale destacar, também, que a partir de um ofício assinado pela bancada do PSOL o presidente Lula solicitou o arquivamento no Congresso Nacional do Projeto de Lei 191/2020 que propõe a abertura de Terras Indígenas à mineração e outras atividades econômicas incompatíveis com a proteção dos territórios e modos de vida de seus povos.
Já na reta final de 2023, o presidente da Câmara, Arthur Lira, apresentou uma lista de PLs chamada de “Pacote Verde”, objetivando aprovar pautas “positivas” antes da COP 28. Nesse contexto, o PSOL conseguiu melhorar o PL 2308/2023 que versava sobre hidrogênio verde, em uma proposta até então voltada para exportação apenas. Graças à atuação de nossa bancada, agora será obrigatório aplicações para projetos de desenvolvimento sustentável de transição energética localizados no país, utilizando-se da produção do hidrogênio verde para descarbonização da economia local.
Neste pacote, apesar de uma articulação do PSOL para incluir a obrigação do Planejamento Espacial Marinho (PEM) para instalação das torres eólicas offshore, o PL 11247/2018 foi aprovado com uma série de jabutis que favorecerem o setor do gás e usinas de energia a carvão — emissores intensivos de dióxido de carbono, principal causador do aquecimento global. Desta forma, nossa bancada protocolou um ofício ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pedindo a impugnação do dispositivo que incentiva a geração de energia a carvão, contrariando as regras legais e constitucionais de proteção ao meio ambiente e da transição energética renovável.
Ainda, no fechar das portas da Câmara, na última semana do legislativo de 2023, foi aprovado o PL do Mercado de Carbono (PL 2148/2015) com um texto confuso, que exclui da gestão do sistema a sociedade civil – e, portanto, os povos indígenas e comunidades tradicionais – e beneficia o agro, ao excluir o setor da regulamentação de suas emissões. O PSOL apresentou proposta para que o agro não ficasse fora da regulamentação, mas foi derrotado pela maioria da bancada do agronegócio em Plenário.
Urge, portanto, que permaneçamos no combate às falsas soluções da economia verde para a crise climática e que se intensifiquem os esforços e pressões no Legislativo. É fundamental denunciar a imposição da plena mercantilização da natureza com lucros privados e impactos socializados que definem o ecocapitalismo. Caso contrário, a boiada seguirá passando. Enquanto isso, prejudica-se o foco em políticas públicas que realmente enfrentam o problema – a saber: a garantia de direitos territoriais aos povos indígenas e comunidades tradicionais, a garantia de orçamento público para o meio ambiente, a conservação da natureza, o combate ao desmatamento e a adaptação e atendimento aos atingidos climáticos nas periferias urbanas.