A seguida ocorrência de catástrofes climáticas – os chamados “eventos extremos” – confirma a opinião da esmagadora maioria da comunidade científica: a crise climática, provocada pelo desenvolvimento capitalista, é uma ameaça real à sobrevivência da Humanidade. Da magnitude desta ameaça também é testemunha a quantidade de debates, fóruns e conferências promovidas pelas mais diversas instâncias, desde as corporativas até as badaladas conferências do clima das Nações Unidas, em busca de propostas e soluções. Está em curso no planeta um processo de disputa de rumos, que tem como centro o próprio destino do capitalismo e as maneiras pelas quais este sistema buscará sobreviver continuando a dispor dos recursos da natureza e se apropriando de suas riquezas.
Ao colocar em xeque o capitalismo em si, a emergência climática desnuda de forma clara seu caráter estratégico para a luta por uma alternativa global ao sistema do capital. Já não é possível ter como horizonte o desenvolvimento ilimitado das forças produtivas – mesmo porque o planeta é limitado – e já não tem cabimento projetos nacionais de desenvolvimento que não levem em consideração a questão ambiental e a crise climática.
A luta para deter as mudanças no clima se desenvolve hoje em duas frentes relacionadas às maiores fontes produtoras de gases de efeito estufa: a primeira é a redução do uso de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão); a segunda é a necessidade de deter a destruição da cobertura vegetal do planeta, particularmente as grandes florestas tropicais, como aquelas existentes na Amazônia, Congo e Indonésia e que respondem por 80% das florestas tropicais do mundo. Em torno da primeira frente se desenvolve o debate sobre o financiamento da mudança da matriz energética, que pode ser resumido na seguinte pergunta: quem irá pagar os custos para que países em desenvolvimento, como China e Índia, entre outros, abandonem uma fonte de energia suja, como o carvão, e adotem alternativas de energia limpas? Apesar do compromisso formal dos EUA e da Comunidade Europeia, este dinheiro teima em não aparecer.
Se a primeira frente – o combate ao uso de combustíveis fósseis – diz respeito à totalidade dos países do planeta, incluindo o Brasil, a segunda se restringe, ao menos de maneira imediata, aos poucos países responsáveis pelas grandes florestas tropicais: os países pan-amazônicos (Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Brasil e Guiana Francesa), a República Democrática do Congo e a Indonésia. Nestes países a sanha destruidora das florestas está a cargo de setores do capital predatório, como o agronegócio, grande indústria de mineração, garimpo ilegal, petróleo e madeireiras.
No entanto, existem muitos setores do capital para os quais a manutenção das florestas pode ser um grande negócio, através do mecanismo de compensação conhecido como REDD (créditos de carbono), através do qual, por exemplo, a Noruega pode aportar recursos para a manutenção das florestas amazônicas, ganhando em troca o direito de continuar explorando petróleo no Mar do Norte. O mecanismo REDD tem muitos outros problemas, como a mercantilização da natureza e a perda da autonomia das comunidades em relação aos seus territórios, o que não impede que diante da devastação da floresta, algumas lideranças amazônicas o considerem um mal menor.
A recente vitória de Lula fez o Brasil emergir novamente como um protagonista essencial no debate sobre as mudanças climáticas, por ser nosso país o detentor de 2/3 da floresta amazônica, que sofreu uma destruição alarmante durante o governo de Bolsonaro. Nosso compromisso em colaborar com o governo Lula, disputando ativamente suas diretrizes, somado ao fato de que nossa Federação Partidária ocupa dois cargos de importância crucial neste debate (os ministérios dos Povos Indígenas e Meio Ambiente), obriga o PSOL a encampar com a devida responsabilidade o debate ambiental. Nenhum partido tem nossa autoridade política para impulsionar um amplo movimento em defesa de uma transição justa, que inclua as maiorias sociais e questione o modelo de acumulação capitalista.
Isso se mostra ainda mais relevante quando notamos que a esquerda brasileira segue presa a certas visões de desenvolvimento econômico que fortalecem a ilusão numa via nacional e autônoma para o fim das desigualdades. Essas visões ignoram os efeitos do processo de desindustrialização, os impactos da quarta revolução tecnológica, as mudanças promovidas pela desregulamentação do mundo do trabalho e as cadeias de dependência externa que nos relegam à semiperiferia do sistema capitalista. Boa parte dos partidos de esquerda segue presa à ideia de que o crescimento da economia, se bem redistribuída pelo Estado através de políticas sociais, poderá levar o país ao fim das desigualdades. Uma visão ultrapassada das possibilidades de integração para economias primário-exportadoras.
Superar estas visões é fundamental. Um projeto para o Brasil pode e deve ser pensado em bases radicalmente distributivas, com investimento pesado em novas cadeias produtivas, amparadas pelo maciço investimento em tecnologia e na criação de uma economia do conhecimento que desenvolva todo potencial que a floresta encerra para as áreas da biomedicina, produção de medicamento e alimentos, pesquisa meteorológica, ambiental e histórica, turismo ecológico e outras áreas, planificando a criação de um outro modelo de ocupações urbanas a partir da participação, decisão e vontade de seus povos.
A violência contra defensores do meio ambiente, em particular lideranças indígenas, demonstra a centralidade da agenda ambiental para a luta anticapitalista. O sequestro de Estado e suas instituições para uma visão desenvolvimentista e predatória é uma realidade, que legitima a barbárie e coloca milhares de lutadores em risco na Amazônia e em outras partes do Brasil. A luta ambiental hoje comporta a defesa dos nossos ecossistemas – todos ameaçados – mas também de nossos rios urbanos, das pessoas empurradas para ocupações promovidas em áreas de risco, de nossos bosques cercados pelo crescimento das grandes cidades, do solo contaminado pelo manejo precário dos resíduos, do ar poluído das grandes metrópoles. Lutar pelo meio ambiente também é lutar contra os impactos do neoliberalismo em nossas vidas.
Diante desses desafios, a defesa da Amazônia ocupa um lugar estratégico. A região representa 2/3 do território brasileiro, tem dentro de si a maior biodiversidade do planeta, incontáveis riquezas minerais, é lar de mais de duzentos povos que falam mais de cento e cinquenta idiomas diferentes, abriga diversos modos de vida tradicionais. Dentro de si coexistem diferentes biomas e uma enorme diversidade sócio espacial onde convivem ribeirinhos, quilombolas, comunidades tradicionais, camponeses, agricultores sem-terra, populações urbanas, que vão desde pequenas vilas a cidades com quase dois milhões de habitantes. Essa riqueza, no entanto, permanece submetida a uma visão que condena a região a mera produtora de commodities – minério, madeira, carne e energia – gerando um enorme passivo ambiental, pobreza para suas populações e a manutenção de um modelo econômico dependente.
A Amazônia é o território onde se disputam os destinos estratégicos do mundo. Até agora uma visão “industrialista” do desenvolvimento econômico fez com que a esquerda brasileira relegasse esta região e seus povos a um segundo plano. Mas agora, diante dos impasses do capitalismo e a evidente ligação entre Amazônia, crise ambiental e uma saída anticapitalista para a Humanidade, é hora de uma resposta contundente, que coloque a esquerda socialista – e o PSOL em particular – como porta-vozes de uma saída estratégica que coloque a luta contra a catástrofe climática e a defesa da Amazônia em primeiro plano. O governo do companheiro Edmilson Rodrigues, eleito com consigna de “um governo de novas ideias” tem a oportunidade de ser uma vitrine desse giro estratégico. Nossos mandatos nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados também.
Mais do que isto, temos diante de nós o desafio de “amazonizar” o PSOL e a esquerda brasileira. E isso significa fortalecer um partido que luta para construir um socialismo com a cara de todos os povos que compõem o Brasil, que compreende o papel estratégico da Amazônia nos destinos da Humanidade, que seja capaz de formular propostas para uma transição energética que favoreça aos trabalhadores e que, assim, seja capaz de intervir e fazer parte das lutas e opções dos seus povos, seja sobre seus territórios, seja em campanhas e conferências internacionais. A candidatura de Belém como sede da COP-30, em 2025, pode cumprir um papel decisivo nesse processo.
Por estas razões, o PSOL deve promover uma Conferência sobre a Amazônia, ainda no primeiro semestre deste ano, cujo resultado pode representar um novo posicionamento sobre as alternativas socioeconômicas para a Amazônia e seus povos em estreita ligação com as exigências da luta contra as mudanças climáticas, a soberania nacional e a autonomia dos povos nos seus territórios. Em outras palavras, uma conferência que marque uma atualização programática e estratégica do PSOL frente aos desafios que a crise climática exige.
Devido ao desnível de acúmulo no partido sobre estes temas, e a necessidade imperiosa de darmos um primeiro passo, propomos uma conferência composta pelos diretórios dos estados amazônicos, os mandatos parlamentares da Amazônia, os núcleos ecossocialistas de todos os estados brasileiros, convidados e convidadas, que sejam integrantes dos povos e das lutas da região ou intelectuais progressistas com uma reflexão avançada sobre estes temas. Temos a oportunidade de construir uma formulação amplamente consensual sobre esses desafios ao mesmo tempo em que fortalecemos uma corrente anticapitalista no movimento ambientalista brasileiro.
Por isso, e considerando que a Conferência apenas inicia um processo de imersão do conjunto do partido no universo amazônico, propomos que suas resoluções sejam obtidas através do consenso progressivo, recomendável dado a enorme relevância dos temas que serão tratados. Seu acúmulo deve ser apresentado como uma contribuição ao Congresso do Partido de 2023.
Juliano Medeiros – Presidente Nacional do PSOL
Luiz Arnaldo Campos – Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura de Belém
Gratidão!