Cris Duarte
Caminhando no contrafluxo
Comumente as utopias se apresentam de forma propícia em tempos de crises, propondo, naturalmente, inversão à realidade imposta, levando-nos à reflexão sobre o mundo em que vivemos e o mundo que podemos construir: paz em tempos de violências; igualdade social diante das desigualdades; defesa da vida, contrapondo a banalização da morte; educação e ciência, em contraposição ao negacionismo.
Há consenso entre diversos intelectuais e militantes políticos que, nas últimas décadas, houve um distanciamento gradativo do ideal utópico em vários segmentos da esquerda, que perderam a própria capacidade de leitura crítica da realidade, abriram mão da independência política e embarcaram em um processo equivocado e cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da sociedade e do potencial de militância latente na juventude brasileira.
O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento em grande parte da sociedade brasileira, o PSOL se propôs a revigorar as utopias, cumprindo a sua função de contrafluxo, de cautela em relação às certezas, de oposição à tendência de repetição e rompendo com a excessiva naturalização com a qual percebemos os acontecimentos.
A travessia que definiu destinos
Por mais difícil que seja, torna-se necessário narrar nosso pesadelo histórico como forma de esburacar o véu de cegueira que causou a resignação generalizada, a sensação de espanto emudecedor dos movimentos históricos de esquerda que sonhavam com mudanças estruturais e revolucionárias do país.
Sob a sedução do “lulismo” e das consecutivas derrotas eleitorais, o Partido dos Trabalhadores inaugurou, a partir de 2002, um dos processos mais contraditórios de sua história, que brutalmente levou o partido de maior referência na esquerda mundial para longe de seus valores e das lutas populares que sempre defendeu.
Firmou alianças trágicas com a direita tradicional, alinhando o discurso e a imagem de Lula aos valores da classe média, recebendo apoio de oligarquias do Nordeste, da parcela da elite industrial paulista e lançando ao longo da primeira campanha a “Carta ao Povo Brasileiro”, ficou selado definitivamente, o compromisso de Lula com o modelo neoliberal e o jogo do mercado financeiro nacional e internacional.
A vitória de Lula aconteceu gerando grandes expectativas, porém, realizando concessões e recuos programáticos que deslocou a práxis petista para outro terreno logo no início do mandato. Com a decisão de colocar Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, no controle das finanças do país, a senadora Heloísa Helena, manifestou-se contra essa indicação. Posteriormente, iniciou um novo confronto ao votar contra a indicação de José Sarney para a presidência do Senado. Diante das contradições entre a história do partido e as promessas de campanha, as ações concretas do governo começaram a aflorar e a inquietar muitos militantes, simpatizantes e eleitores, gerando conflitos internos no PT. Eles se agravaram após a proposta nefasta da PEC de Reforma da Previdência do setor público, apresentada por Lula ao Congresso, em 2003, e que sem dúvida, seria extremamente danosa aos interesses dos trabalhadores.
Foi uma travessia marcada por inúmeras vozes de oposição no interior do próprio PT e que reverberaram no Congresso, na CUT, entre os servidores públicos e em amplos setores da sociedade. Após uma série de confrontos, foi instalada uma comissão de ética para encaminhar o processo de expulsão por “indisciplina” da senadora Heloísa Helena (AL), e dos deputados, Joao Batista Babá (PA), Luciana Genro (RS) e João Fontes (SE), que não aceitaram tal rebaixamento político programático em nome da governabilidade conservadora.
Arrumando os desertos
Impulsionados por todas as controvérsias, em dezembro de 2003, os parlamentares expulsos do PT, iniciaram um movimento nacional pela consolidação de um novo partido de esquerda, das massas, socialista e democrático. Isso significou ter capilaridade com os movimentos sociais, estar presente na luta cotidiana para ser capaz de pensar saídas efetivas para a população brasileira. Em janeiro de 2004 foi realizado um encontro no qual criou-se a Esquerda Socialista Democrática (ESD), movimento originário que definiu as bases de um programa provisório para a formação do novo partido. Posteriormente, deu-se a fundação e Liberdade, PSOL, com a criação do primeiro Estatuto datado do dia 6 de junho de 2004, e assinado pela primeira presidenta do partido, a senadora Heloisa Helena. Logo, à formalização do PSOL junto ao TSE, em 2005, outro grupo de descontentes com os rumos do PT e do governo, juntou-se ao partido, entre os quais os deputados federais Ivan Valente (SP), Chico Alencar (RJ), a ex-deputada federal Maninha (DF), o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio e militantes de outras legendas, em especial do PSTU. Nesse processo, o PSOL obteve o apoio de intelectuais socialistas de renome, sociólogos, economistas, filósofos e cientistas políticos.
Em 2006 o PSOL participou pela primeira vez de eleições e conseguiu resultados positivos. A candidatura da senadora Heloísa Helena à presidência da República alcançou 6,85% do eleitorado, contabilizando 6.575.393 votos.
Nas eleições de 2008, o PSOL manteve o aspecto da primeira eleição em relação à grande quantidade de candidaturas ao Executivo das principais localidades do país, lançando prefeitos em 22 capitais. O partido conseguiu eleger 25 vereadores em 13 estados diferentes (22 municípios), mas não elegeu prefeitos.
Apesar de aparecer com boas perspectivas eleitorais, a ex-senadora Heloísa Helena, desistiu da candidatura à presidência no pleito de 2010, declarando apoio à candidatura de Marina Silva do PV. Dessa forma, houve grande indefinição sobre a candidatura do PSOL ao pleito do executivo federal até meados de 2010, algo que só foi revertido com o lançamento da candidatura de Plínio de Arruda Sampaio.
Antes do final do mandato à presidência do PSOL, Heloísa Helena abandonou a direção do partido alegando incompatibilidade de dirigir a legenda sem apoio interno no Diretório Nacional. No pleito de 2010, o partido não conseguiu eleger nenhum candidato ao executivo. Foram eleitos dois senadores (AP e PA), três deputados federais (RJ e SP) e quatro deputados estaduais (RJ, SP e PA). Além do quarto lugar de Luciana Genro na disputa presidencial de 2014, em que obteve 1,6 milhão de votos, o PSOL também aumentou a bancada na Câmara dos Deputados de três para cinco deputados. O partido não elegeu ninguém para o Senado. E, nos estados, 13 deputados estaduais foram eleitos pela legenda.
Os atentados à democracia
No biênio 2015-2016 uma articulação orquestrada entre agentes públicos provenientes de frações do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, todas elas retroalimentadas pelos oligopólios midiáticos, mobilizaram-se e exigiram o impeachment de Dilma Rousseff (PT), presidenta reeleita em 2014. Ela foi afastada defini- tivamente do cargo em agosto de 2016, sendo substituída pelo vice-presidente Michel Temer (PMDB).
O contexto era de efervescência política, desencadeando numa série de manifestações populares nas ruas no decorrer de 2015 e 2016. Nessa conjuntura, a bancada parlamentar do PSOL, mesmo sendo oposição ao governo federal tanto de Lula, quanto de Dilma, declarou-se contrário ao processo de impeachment, por este ser a concretização de um grande golpe jurídico-parlamentar.
Não foram desconsideradas nesse período, as permanentes tentativas de criminalização dos movimentos sociais e da ação e do pensamento crítico. Além disso, proliferou-se nas casas legislativas de todo o país, projetos que tentaram impedir o avanço de direitos de minorias e da liberdade de pensamento e construção do conhecimento, como a obscurantista lei elaborada pelo movimento “Escola sem partido”.
Rastros de ódio
Em 2018, enquanto Michel Temer implementava uma agenda de ataques aos direitos trabalhistas e decretava uma intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, o Brasil vivenciou a crescente escalada do ódio que se manifestou na execução da vereadora, negra, lésbica, com origem na favela, defensora dos direitos humanos, Marielle Franco, junto ao motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. A notícia reverberou no país e no mundo e ampliou o debate sobre violência política.
Após, a caravana de Lula sofreu ataques a tiros no Paraná e múltiplos casos de violência se intensificam contra ativistas sociais, população negra e LGBT+.
Em abril de 2018, foi decretada a prisão do ex-presidente Lula em uma escancara da perseguição judicial desencadeada pela Operação Lava Jato. O PSOL se manifestou publicamente contra a decisão do STF por considerar que a súmula 122 do STF é “flagrantemente inconstitucional” porque a carta magna prevê o início do cumprimento de penas após o trânsito em julgado.
Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964 que levou ao poder pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército que nunca fez questão de esconder o viés ideológico bem próximo ao fascismo.
A campanha de Bolsonaro, dirigiu-se a um público previamente conhecido, basicamente de classe média, e o povo que na maioria aderiu, foi fisgado pela insatisfação com o desemprego e a violência urbana. O objetivo foi potencializar e transformar a insatisfação em ódio. Vimos uma campanha da extrema direita bem azeitada por uma máquina de propaganda eleitoral no WhatsApp e Facebook que difundia fake News de forma maciça contra os candidatos das chapas do PT e do PSOL.
Chapa histórica
Apesar das dificuldades de um cenário de fragmentação das esquerdas, tempo reduzido de propaganda eleitoral gratuita, desigualdade na distribuição do fundo especial de financiamento de campanha, o PSOL apresentou nesse pleito uma chapa histórica com o líder social do MTST, Guilherme Boulos, e Sônia Guajajara, a principal liderança indígena do país e reconhecida internacionalmente como uma ativista da pauta ambiental.
O partido avançou significativamente com a resistência negra, feminista e LGBT, impulsionadas pelo legado de Marielle, ampliando a presença na Câmara dos Deputados em uma bancada com dez parlamentares composta por 50% de mulheres.
Em uma eleição marcada pelo ódio, o PSOL plantou sementes de esperança para o futuro, levando pautas importantes para o debate, como a da reforma agrária, a luta por moradia, a defesa dos movimentos sociais, a defesa de pautas das mulheres, dos negros e negras e LGBT+.
Crise e disputa
Na resolução do Diretório Nacional do PSOL, publicada em outubro de 2019, já estava explícita a importância das próximas eleições para o partido, considerando o cenário político nacional.
O que não se esperava era que 2020 seria o ano da mais grave crise sanitária mundial, devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, causando um incalculável prejuízo humano.
A campanha aconteceu de forma atípica, tendo que se adaptar aos protocolos de biossegurança estabelecidos pelas autoridades sanitárias, o que forçou o adiamento da votação de outubro para novembro e a mudança na legislação que impediu as coligações para as eleições proporcionais. Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou todas as limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro impulsionado pelo poder popular A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a Prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, a defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude.
Capital político
Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo. Em Belém (PA), mesmo com a avalanche de fake News, Edmilson Rodrigues chegou ao segundo turno e conquistou a prefeitura com 51,76% dos votos.
Em outros três municípios o PSOL também saiu vitorioso das eleições. Elegeu Salomão Gurgel em Janduís (RN), Edson Veriato em Potengi (CE), João Alfredo em Ribas do Rio Pardo (MS), e Cido Sobral em Marabá Paulista (SP).
O compromisso histórico do PSOL com um projeto coletivo, amplo e contínuo de emancipação e transformação social segue se confirmando nas urnas a cada eleição. Agora, o partido também conta com 90 mandatos nas câmaras municipais, nas cinco regiões do país, sendo 34 deles liderados por mulheres, 43 negras e negros eleitos pelo partido, 4 mandatos de mulheres trans e outros 10 mandatos coletivos. Do total de mandatos, 53 foram eleitos em capitais ou cidades acima de 200 mil habitantes.
Com a substituição de Edmilson Rodrigues na Câmara dos Deputados pela jovem negra Vivi Reis, a bancada do PSOL passou a ser a única do país a ter maioria feminina. O PSOL vem crescendo de forma orgânica e consistente, criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores do Brasil, dos movimentos sem-teto e dos coletivos de cultura e educação popular fazendo da democracia nossa casa comum.
O partido tem mostrado compromisso nas discussões sobre raça, gênero, pautas LGBT e indígenas. Falar sobre tais temas é falar sobre a desigualdade, a pobreza e a violência no Brasil agravadas radicalmente pelo cenário alarmante da pandemia e do governo genocida de Jair Bolsonaro.
“Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja”
Eduardo Galeano