Entrevista
Ivan Valente
Como se explica o fenômeno Bolsonaro e por que o Brasil, depois de 35 anos de democracia, resolveu elegê-lo? Bolsonaro é um fenômeno que vem desde, pelo menos, a crise de 2008 e foi impulsionado a partir de 2013. Naquela situação de disputas, a direita surgiu como movimento de massas. Percebendo a instabilidade reinante, uma elite econômica sem projeto de Nação resolveu chutar o balde do regime democrático de forma agressiva e oportunista. Houve, claro, uma decepção com o governo Dilma em setores populares e de esquerda, mas além disso houve uma manipulação política por parte da grande mídia, que ajudou a criar um carimbo de corrupto no PT. Cresceu na base da sociedade uma forte tendência antipetista, que impulsionou um processo de impeachment absurdo. Abriu-se a oportunidade para a imposição de um projeto de hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo, implementado a todo vapor com Michel Temer. Paralelo a isso, o que chamamos de lavajatismo uma prática falsamente moralista, punitivista e parcial ajudou a criar o caminho que desembocou em Bolsonaro. Isso nos deu uma lição: futuros governos de esquerda, mais contundentes que o PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo etc. E defendendo a ditadura militar, citada todo dia, com AI-5 e tortura. Há quase um terço da população que não se arrepende do voto dado em 2018. Isso é grave.
A mesma sociedade brasileira que deu a vitória à extrema direita elegeu por quatro vezes um governo de centro – -esquerda. Como isso se explica? A primeira eleição de Lula assustou bastante a burguesia. O PT fez a “Carta ao povo brasileiro”, colocou o Palocci na Fazenda, atendeu ao mercado e Lula partiu para uma ação de alguma distribuição de renda aos pobres e de grandes ganhos para os ricos. Assim, deixou de assustar. Isso se confirmou ao vermos que, em 2006, mesmo após o mensalão e de tudo o que a Globo fez, ele foi muito bem reeleito. A economia ia bem, os de cima ganhavam mais e os de baixo ganhavam alguma coisa. Teve a oportunidade de pegar um boom de comodities. Frei Betto diz algo com o qual concordo totalmente. Uma coisa é ter consciência do valor das conquistas e outra é estar bem servido no consumo. Lula sempre foi isso, de servir no consumo. Claro que, contra a fome, temos que almoçar, jantar e tomar café da manhã. Mas, depois, todo mundo tinha que ter as utilidades domésticas de linha branca, o carro etc. Isso pegava bem no sentido geral do consumo, mas não mudava as consciências. Quando veio uma crise com o impacto da de 2008, a direita, que estava sendo bem acomodada no governo, começou a querer mudar de barco. Há um aspecto adicional: Lula não contribuiu para mexer em nada na hegemonia do capital financeiro no Brasil. Por que não se fala em acabar de vez com subsídios? Em reforma tributária? Em taxação das grandes heranças e fortunas? Não houve nada disso nos governos do PT. A linha geral era de atrair capital e investimento para o Brasil, especulativo ou não, mas sem mexer nas estruturas, no problema da dívida pública e no tripé macroeconômico.
No governo Lula, as Forças Armadas continuaram tão ou mais fortes do que antes e os meios de comunicação não foram regulados. Que mudanças reais o PT proporcionou ao País? O caso das Forças Armadas é complexo. Na época da discussão da Comissão da Verdade (2011-14), havia na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto da Luíza Erundina que eu coassinava segundo o qual era a hora de punir os torturadores. Mas o projeto não passou. Como você não mexe nos torturadores e nos mandantes, eles continuam falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido. Isso passa a ser uma conivência. No caso das comunicações, vamos lembrar quem foram os ministros: Miro Teixeira, Hélio Costa que foi da Globo por 30 anos e Paulo Bernardo. No fundo, eles achavam que havia democracia com a Globo mandando. Ao não mexer no sistema econômico, quando acabou a onda de commodities e a conjuntura internacional favorável, não se asseguraram direitos dos trabalhadores e houve até retrocesso. Faltou contundência, um diálogo de massa, manter mobilizado o movimento social e popular, na medida do possível. O MST, por exemplo, não queria a Lei Antiterrorismo, sancionada pela Dilma. Agora, a extrema direita quer aprofundá-la. Isso tudo é resultado de coisas que fizemos errado lá atrás. Falo disso tudo sem contar as coisas feitas no oba-oba, como a questão da Copa do Mundo e esses elefantes brancos que estão aí até hoje, que são as arenas. Houve uma euforia com a elite, e uma ilusão do PT com partes enormes do topo da pirâmide social, que se mostrou falsa e se expressou em ódio de classe contra o partido. Também houve muita ilusão com a governabilidade conservadora do Congresso Nacional.
Atualmente, o PSOL está sendo acusa – do de se reaproximar do PT e de ser um puxadinho do partido. É verdade? A posição nítida do PSOL é a de que o ano de 2022 passa por 2021. Agora neste ano! Nós precisamos fazer uma grande frente entre todos que lutam contra o bolsonarismo e contra o estreitamento da democracia, e a favor de uma resposta pronta do Estado brasileiro em relação à pandemia. É hora de unir forças e produzir muita mobilização contra Bolsonaro. No ano que vem, se ele for competitivo, temos que derrotá-lo com a candidatura de esquerda mais bem posicionada nas pesquisas. E essa candidatura precisa ter um programa que mobilize os trabalhadores e o povo. Repito, isso vai ser visto em 2022. É o momento de tornar o PSOL presente na conjuntura, no combate ao bolsonarismo e garantir protagonismo no processo.
O PSOL é um partido que galvaniza a juventude na esquerda, mais do que qualquer outro. E tem uma geração de quadros novos muito promissores. Como você vê essa renovação? Vejo de forma muito positiva. E isso tem explicação. O PSOL tem sido vanguarda em várias lutas importantes, como a luta contra o racismo, a homofobia, o machismo e pelos direitos civis e humanos. Isso tem sido uma marca, mas ela não é suficiente. Por exemplo, a candidatura do Boulos com a Erundina em São Paulo representou uma proposta de mudança popular e massiva. Ela propunha mudanças estruturais. É por isso que Boulos se tornou uma figura tão expressiva. Da mesma forma, Erundina cumpriu um papel muito importante, e mostra que a candidatura de ambos foram, antes de tudo, programática a favor do combate à pobreza, à desigualdade e com uma cara socialista. Conquistar 40% dos votos no segundo turno foi uma vitória e mostra o enorme potencial do PSOL.
O PSOL se consolidou como uma corrente de opinião e lançou candidatos majoritários na maioria dos estados. Qual foi o principal ponto de virada do partido, depois de sua criação? Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós. Ela estava insatisfeita no PSB e a convidei para entrar no PSOL. E ela aceitou. A Erundina dá um grande salto de qualidade ao partido, uma dimensão de massas. É notável também a entrada de Guilherme Boulos, maior expressão do movimento social nesse último período, além de outras figuras públicas que reforçam a representatividade do PSOL na conjuntura. A ética na política, a coerência na ação e a questão programática do PSOL foram três pilares que preservaram o partido e o tornaram respeitado nos movimentos sociais. Nós nos tornamos grandes mesmo sendo pequenos. O PSOL é grande, por ser muito respeitado por esses três pilares. Ao mesmo tempo, é ainda um partido pequeno em expressão e capilaridade de massa.
Estamos na maior crise da história republicana. Você é otimista, realista ou pessimista? Mesmo com todo esse retrocesso bolsonarista, é óbvio que confio que o povo brasileiro vai virar essa situação. É claro que, para isso, temos que acumular força e ter movimentos de massas. Há um percalço pelo caminho. Estamos em meio a uma pandemia e não podemos sair para a rua! Não vai ser fácil, vai ter muita luta e mobilização, mas nós vamos superar isso. E vamos deixar o pessimismo para momentos melhores.