A vitória de Lula abre um novo período da política brasileira. Após anos de retrocesso nos direitos e na democracia e de crescimento da extrema direita, as esquerdas no Brasil podem reposicionar suas pautas históricas e impulsionar novas dinâmicas sociais e políticas de modo a consolidar conquistas concretas na vida do nosso povo.
É preciso dizer que não teremos vida fácil nessa tarefa. A luta para derrotar o bolsonarismo em definitivo apenas começou. Será um caminho longo e árduo de enfrentamentos contra a extrema-direita e também contra setores da direita tradicional que tentarão capturar essa nova conjuntura para seus próprios interesses. Será preciso muita inteligência e sensibilidade política das forças progressistas para construir unidade na diversidade, potencializando nossa capacidade de enfrentar a correlação de forças.
O PSOL tem demonstrado essas qualidades em diversas esferas da luta política. Socialmente, nossa militância vem se engajando cada vez mais nas lutas populares, especialmente nas redes de solidariedade em periferias das grandes cidades de norte a sul do Brasil. Isso se expressou na nova cara das nossas colunas militantes nos atos unificados pelo Fora Bolsonaro entre 2020 e 2022, muito mais popular, muito mais negra e feminina, muito mais representativa do que é o povo brasileiro.
Eleitoralmente, acertamos ao apostar na unidade em torno de Lula. Tratou-se de uma decisão coerente com a tática que o partido vem implementando desde 2015, quando começou o processo de golpe contra a democracia brasileira liderado por Aécio Neves, Eduardo Cunha e Michel Temer. Naquele momento, soubemos colocar de lado as divergências e críticas à política econômica de Dilma por entender que algo maior estava em jogo: a preservação da nossa democracia com a violação da soberania popular pelo impeachment. Na sequência, o PSOL cresceu política e eleitoralmente. Primeiro, com a candidatura de Guilherme Boulos à presidência em 2018; em seguida, nas eleições municipais de 2020, com a vitória de Edmilson Rodrigues em Belém e novamente com Boulos na disputa pela prefeitura de São Paulo, quando quase vencemos na principal metrópole da América Latina com uma campanha que empolgou o país inteiro.
O apoio a Lula em 2022 consolida esse processo, que se irradia pelo país todo com o crescimento da nossa bancada de deputados federais e estaduais. E coloca para nós o desafio de encarar a complexidade das instituições brasileiras, algo que vem acontecendo localmente na capital paraense e que precisa ser nacionalizado. A pesquisa do Revogaço foi uma primeira contribuição do nosso partido nessa dimensão institucional nacional.
O que é a pesquisa do Revogaço
A pesquisa do Revogaço foi um esforço de pesquisa militante que fizemos no âmbito da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (FLCMF) e com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo para produzir um conhecimento cientificamente embasado e politicamente engajado sobre o bolsonarismo e as instituições brasileiras. A noção de pesquisa militante é estruturante da atual gestão da FLCMF, pois implica em fortalecer nosso partido nos debates públicos com solidez técnica sem abrir mão de fornecer ferramentas de luta para nossa militância e os movimentos sociais com quem temos relações.
Por isso, o timing político é tão fundamental quanto a temporalidade da pesquisa científica. Iniciamos as preparações para o Revogaço em março/abril de 2022, já com o impulso de esperança que uma possível vitória de Lula trazia. Entendemos, naquele momento, que o PSOL estaria diante de um novo tipo de tarefa em sua história, qual seja, o enfrentamento institucional em âmbito nacional. Era preciso não só derrotar o bolsonarismo nas urnas e nas ruas, mas também entender os sentidos mais profundos do governo Bolsonaro para também derrotar o fascismo nas instituições brasileiras.
Além disso, precisávamos de muita coesão política na equipe, pois, como ocorre em qualquer pesquisa – e mais ainda em uma pesquisa militante -, não sabíamos qual seria o resultado da nossa investigação. Assim, montamos uma equipe, com capacidade técnica e de pesquisa e compromisso militante, composta por 35 pessoas: 3 coordenadores, 5 pesquisadores, 19 especialistas e mais 7 pessoas da equipe permanente da FLCMF.
Metodologicamente, a pesquisa foi dividida em quatro etapas, que ocorreram em paralelo. Primeiro, uma equipe de cinco bolsistas (dois graduados, dois mestres e uma doutoranda) tabulou quase 20 mil documentos infralegais (decretos, portarias, instruções normativas, resoluções) editados no governo Bolsonaro. No caso dos decretos, instruções normativas e resoluções, analisamos 100% da documentação, em um total de 2382 atos da presidência. Já as portarias, que somam 16307 documentos, a pesquisa foi por amostragem, uma vez que 99% delas versam sobre nomeação e exoneração de cargos de confiança.
A segunda etapa foi a produção de 20 relatórios temáticos por um conjunto de 19 especialistas nas seguintes áreas: Meio ambiente; Economia; Participação; Transparência e Combate à Corrupção; Energia; Direitos Indígenas; Saúde; Educação; Políticas Culturais; Segurança Pública; Política Urbana; Política Agrária; Relações Internacionais; Negritude; Mulheres; LGBTI+; Criança e Adolescência; Assistência Social; Comunicação; Forças Armadas. As/os especialistas são ativistas dos movimentos sociais e/ou exercem funções técnicas no parlamento ou no terceiro setor em suas respectivas áreas.
Terceiro, dois bolsistas (um mestre e uma doutoranda) levantaram na Folha de São Paulo todas as notícias de ações do governo Bolsonaro por meio de legislação infralegal. Por fim, no âmbito da coordenação do projeto, analisamos e confrontamos esse material com as Emendas Constitucionais, Projetos de Lei e Medidas Provisórias do governo Bolsonaro.
Nosso objetivo com essa metodologia foi cruzar os dados da pesquisa quantitativa (a tabulação dos documentos) com a pesquisa qualitativa (os relatórios temáticos) e com a pesquisa em fontes secundárias (o jornal Folha de São Paulo) a fim de permitir tanto um controle mais fino dos atos do governo (e que estão detalhados nos relatórios temáticos) quanto uma visão global, a qual chamamos de Método Bolsonaro de Destruição.
O Método Bolsonaro de Destruição
O governo Bolsonaro ficará marcado como um período de destruição política, social e cultural sem precedentes na história do país, não só pela quantidade e pela qualidade das medidas que revertem direitos, mas porque tal destruição ocorreu durante a vigência de um regime democrático. Bolsonaro utilizou as instituições, os procedimentos e os mecanismos legais para organizar e sustentar a destruição.
Chamamos essa atuação unitária e resoluta de Método Bolsonaro de Destruição, para demonstrar a coerência dos procedimentos adotados pelo governo e o alcance de suas medidas, que afetam todo o povo brasileiro. Esse método foi organizado e operado por uma burocracia que mobilizou uma parcela da elite do funcionalismo político profundamente elitista e antipopular (os assessores do Ministro da Economia, Paulo Guedes, são o melhor exemplo) e que foi completada por uma ocupação em massa da máquina pública por militares, cuja adesão ideológica e material ao projeto bolsonarista é evidente.
Esse método abrange quatro dimensões complementares: o Método Bolsonaro de Destruição Orçamentária; o Método Bolsonaro de Destruição do Público; o Método Bolsonaro de Destruição Ideológica; e o Método Bolsonaro de Destruição Institucional.
O Método Bolsonaro de Destruição Orçamentária consiste em uma profunda e constante operação de corte orçamentário para asfixiar materialmente as estruturas do Estado, cuja função é garantir e promover os direitos; o Método Bolsonaro de Destruição do Público vem a ser um abrangente e radical projeto de privatizações, desestatizações e distribuição de “vouchers” que visam inviabilizar os sentidos públicos e universais do Estado; o Método Bolsonaro de Destruição Ideológica se caracteriza por um sistemático e poderoso movimento de ataques ideológicos aos setores que são sujeitos de direitos e pela legitimação da violência e do autoritarismo; e, por fim, mas não menos importante, o Método Bolsonaro de Destruição Institucional é constituído por um consistente e metódico processo de desarticulação das políticas públicas estatais em todos os níveis (Federal, Estadual e municipal) e em todas as áreas em que atua o Estado brasileiro.
Como continuar o Revogaço
Em 01 de janeiro terá início o novo governo Lula e o PSOL tem um compromisso com sua base social de sustentar esse governo e puxá-lo para a esquerda. Sabemos que um fracasso de Lula na presidência significará um retorno do fascismo ainda mais forte. Não podemos vacilar nesse momento histórico!
Seguiremos monitorando o impacto do bolsonarismo em nossas instituições sempre a partir de uma perspectiva metodológica da pesquisa militante. Há, por um lado, a investigação sobre o que de fato o governo Lula vai revogar. Por outro, precisamos entender melhor como reverter os estragos feitos em tantas dimensões pelo Método Bolsonaro de Destruição.
E, atravessando tudo isso, é preciso entender as dimensões locais do bolsonarismo, especialmente em São Paulo, uma vez que em 2024 enfrentaremos a batalha para eleger Guilherme Boulos prefeito, dando consequência à sua histórica votação para deputado federal, com mais de um milhão de votos.
Josué Medeiros é professor Adjunto do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) e membro do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS-UFRRJ).