É difícil medir o tamanho da derrota até que seja tempo de reconstrução, e parece que o ano de 2022 nos abre essas duas oportunidades: uma chance de frear o crescimento da extrema-direita que vem de mãos dadas com a necessidade de um balanço sincero sobre os acertos e erros da esquerda no último período.
Tarefas difíceis e urgentes que precisam ser realizadas nessa conjuntura instável e veloz que marca a fase do capitalismo em que estamos. Nos últimos anos, a aplicação da cartilha neoliberal avançou em seu projeto de transferir aos mais vulneráveis a conta da crise do capital: corte de investimentos sociais pelo Estado, redução de direitos de cidadania e trabalhistas, intensificação da exploração do povo, desindustrialização de países do sul global, acirramento de disputas geopolíticas entre potências para reestruturar o comércio global.
Fosse “só” isso, já teríamos um desafio imenso de reconstrução. Contudo, muito longe de um ataque meramente econômico, a força do neoliberalismo mora no fato de ser um complexo de ideologias que formam um novo e distópico imaginário social, destruindo nossas coletividades e substituindo a noção de sujeito-cidadão pelo homem-coisa. É o desenrolar do que Mbembe[2] caracteriza como devir-negro do mundo: a universalização para todos os sujeitos da condição imposta aos negros e negras desde as primeiras fases do capitalismo.
Espremendo o mercado de trabalho, o neoliberalismo desobriga as empresas de qualquer responsabilidade social enquanto intensifica a competitividade e o individualismo, esgarçando o tecido social e promovendo a terrível figura do “empresário de si mesmo” – o trabalhador em sua forma mais atomizada, seduzido pela ideia de que a verdadeira liberdade é poder contar apenas com a própria sorte, sem qualquer rede de proteção.
Não bastasse, a racionalização da organização da produção ataca diretamente as formas clássicas de organização da classe trabalhadora, enfraquecendo sindicatos e associações de trabalhadores, minando desde a raiz as possibilidades de resistência dos de baixo.
Nesse contexto, o fortalecimento da extrema-direita surge como sintoma mórbido de uma sociedade em desmanche, se mostrando capaz de oferecer uma resposta, ainda que perversa, à crise. Combinando liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes, desresponsabiliza o Estado e os setores privados pela crise retomando o discurso de Estado mínimo, e preenche as fissuras geradas pelo neoliberalismo com uma proposta de reorientação moral da sociedade, combatendo qualquer discurso que aponte como problemas estruturais do sistema as desigualdades de classe, gênero e raça.
Se é certo que apresentar falsas respostas à crise para manutenção de uma velha estrutura é mais fácil que oferecer verdadeiras alternativas, também não podemos fechar os olhos para o fato de que nos últimos tempos a esquerda patinou muito – desestabilizada pela conjuntura, mas também por descompromisso com a renovação.
Para além dos fatores externos de pressão do capital, a verdade é que falhamos por conta de uma grande dificuldade em rever antigas práticas, além de nos apegarmos à uma resistência teimosa contra a inclusão de subjetividades diversas e suas novas modalidades de fazer política. Com esse apego ao passado, tardamos o necessário processo de contínua adaptação à conjuntura.
Dentro deste panorama, chegamos às eleições de 2022 com um acúmulo de tarefas atrasadas e, aparentemente, até mesmo contraditórias: nos organizar em torno de composições para o pleito com as forças que temos hoje, enquanto seguimos na tarefa de longo prazo de reconstrução de uma esquerda capaz de responder às demandas do presente. Para organizar a combinação dessas duas tarefas, me parece que diferenciar táticas para a conjuntura imediata e estratégia de longo prazo é fundamental[3].
A tática eleitoral: unidade na esquerda, unidade com o povo
Concretamente, o que a conjuntura nos impõe é a polarização entre extrema-direita e centro-esquerda. Enquanto a direita tradicional expressa pouca força em sua dificuldade para consolidar uma candidatura de “terceira via”, na corrida eleitoral deste ano despontam como primeiros lugares a possibilidade de reeleição do projeto bolsonarista, de um lado, e a candidatura petista do ex-presidente Lula, do outro.
Longe do pragmatismo de quem vê a vitória eleitoral como fim em si mesmo, o apoio à candidatura de Lula, hoje, é uma opção de tática eleitoral cujo princípio mora na urgência das necessidades concretas do povo: é escolha consequente em favor de estancar o desmonte institucional e social que Bolsonaro vêm produzindo com as mãos na máquina do Governo Federal.
Nesse contexto, a recusa à unidade é uma opção temerária, principalmente do ponto de vista dos mais vulneráveis, por dividir a esquerda em um cenário no qual a vitória da centro-esquerda não está dada, e só será construída com esforços ativos e combinados da militância. Além disso, propor uma oposição de minoria nas atuais condições do debate público significa propor a defesa de uma linha política fadada a nos colocar em uma posição de isolamento que desfavorece a legitimidade do partido junto às massas populares.
Por essa síntese, a decisão do PSOL por compor a campanha ao governo federal de Lula é acertada, ao permitir que acessemos uma janela histórica na qual o campo progressista tem uma chance de dialogar de forma ampla com o povo contra o conservadorismo.
Se é certo que as críticas ao saldo negativo dos governos petistas devem ser feitas para a construção urgente de um projeto para além do lulismo, defender neste momento uma posição contrária à adotada pela Conferência Nacional do PSOL é mais do que um cálculo equivocado, é um erro de concepção, pois resume a disputa por hegemonia política ao estreito campo eleitoral – este que, por natureza, estrangula as pautas da esquerda.
Olhando da perspectiva da oportunidade de reconstrução da esquerda de baixo para cima, a unidade contra o bolsonarismo hoje é uma vitória da pressão sobre os partidos por unidade de forças progressistas contra o avanço conservador manifestos desde o golpe de 2016, ainda que parcial. Se ainda seguimos sob direção de antigas lideranças e suas velhas práticas políticas, essa limitação vem das condições materiais e suas contradições do real, cuja verdadeira transformação depende da capacidade de enxergar nossa tarefa histórica como algo mais profundo que a tática eleitoral deste ano.
Por uma estratégia de reconstrução: gênero, raça e classe como arma contra o identitarismo da extrema direita
Se o velho reluta em morrer, o PSOL precisa ocupar o vácuo do novo por nascer: ser a vanguarda da refundação de uma esquerda verdadeiramente combativa, capaz de alçar sujeitos e ideias historicamente marginalizados a espaços de poder onde possam promover necessárias reformas estruturais capazes de preparar o terreno para uma conjuntura revolucionária.
Enquanto for capaz de superar intrigas internistas e sustentar sua estratégia de pressionar o debate à esquerda, o partido tem a potência de trazer à tona dois elementos fundamentais para a disputa da hegemonia: uma discussão profunda sobre a estruturalidade das opressões na formação do capitalismo brasileiro, e a dinâmica política de movimentos sociais cuja prática tenciona pela popularização da esquerda.
As pautas identitárias há muito deixaram as bolhas progressistas. Atualmente, são fortemente utilizadas tanto pelo liberalismo tradicional, que se maquia de novidade, quanto pela extrema-direita, para mobilizar as insatisfações sociais.
Frente à atual crise econômica e social que transforma as bases sobre as quais a sociedade se organizava, caracterizada principalmente pela perda de empregos por parte de camadas antes estáveis da classe trabalhadora e pela redução do poder de consumo da classe média, figuras da extrema direita constroem um “populismo conservador” [4], utilizando um discurso identitarista para oferecer uma resposta à crise: na ideologia neoconservadora, são mulheres, negros(as) e imigrantes, beneficiários de um Estado interventor e paternalista, os responsáveis pela perda de empregos e de oportunidades dos antigos “provedores da família”.
A extrema direita brasileira segue o mesmo caminho. Não à toa, o crescimento do bolsonarismo se dá principalmente nos redutos clássicos da masculinidade ferida[5]: homens brancos, de classe média e de elite, que vêem seu papel e seu protagonismo social ser questionado e reduzido pelas demandas identitárias.
Nesse contexto, o resgate de um debate mais profundo sobre a estruturalidade das contradições de gênero, raça e classe é uma das contribuições do PSOL à reorganização da esquerda. Nos últimos anos, o partido esteve na linha de frente das discussões sobre a produção de novas identidades políticas, e tem a potência de colocar no debate público sua síntese de que as identidades devem ser consideradas como um dado da realidade e como “um elemento concreto de organização estratégica e/ou tática política, sem o que não há revolução”, para usar as palavras de Silvio Almeida.[6]
Além disso, não podemos esquecer que integram hoje o PSOL os movimentos sociais com a maior capacidade de organizar a assim chamada “nova classe trabalhadora”, composta por informais, precarizados, mulheres, negros e negras. Sob forte pressão do neoliberalismo, constituem hoje a porção mais dinâmica da classe, e são o elemento fundamental para construir uma possibilidade de resistência ativa, que parta da rua e da mobilização real, contra acordos conciliatórios vindos de cima pela pressão da articulação dos de baixo.
A unidade dialética desses dois elementos que dialogam tanto com o espírito do nosso tempo quanto com a necessidade de construção de uma vanguarda capaz de avançar a consciência geral, o PSOL tem a potência de transformar tanto as pautas que movem a esquerda quanto nossos modelos organizacionais. A substituição da ética da velha política, baseada em acordos por cima e na agressividade da masculinidade tóxica pela valorização dos saberes e experiências populares e da diversidade é capaz de fazer surgir formas organizacionais baseadas na ética do cuidado e do companheirismo – ferramenta essencial para transformar a política em um ambiente acolhedor, que responda ao medo e insegurança promovidos pelo neoliberalismo com a produção consciente de coletivos saudáveis, capazes de criar pontes entre diferentes sujeitos e realidades, potencializado nossas formas de resistência coletiva.
Fazendo uma soma no papel, a combinação na estrutura partidária de movimentos sociais combativos para popularizar a esquerda e debates sobre identidade para diversificação de vozes parece ser a resposta para a encalacrada da esquerda. Como na prática a teoria é sempre mais difícil, resta saber se conseguiremos amadurecer essa longa gestação a tempo de aproveitar a fresta que se abre.
[1] Advogada, mestra e doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo, Conselheira de Política para Mulheres do Município de São Paulo, Coordenadora do Núcleo de Direito e Diversidade da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, membra da Executiva do Diretório Municipal do PSOL, militante da Revolução Solidária, corrente interna do PSOL.
[2] Achille Mbembe, em Crítica da Razão Negra, publicado em português pela N-1 Edições em 2018.
[3] Segundo a definição de Marta Harnecker, em sua obra Estratégia e Tática, publicada pela Expressão Popular em 2004: “Enquanto a estratégia é o caminho mais longo que deve ser percorrido para atingir objetivos de transformação estrutural da sociedade, a tática é um conjunto de decisões concretas tomadas a partir da conjuntura imediata.”
[4] A emergência de novas direitas que se utiliza de discursos de senso comum e antissistema, como trumpismo e bolsonarismo, foi caracterizada como “populismo conservador” por Nancy Fraser, em seu livro “O velho está morrendo e o novo não pode nascer”, publicado em português pela Autonomia Literária em 2020.
[5] Dados que podem ser encontrados na publicação de 2018 de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco “Da esperança ao ódio: juventude, política e pobreza do Lula ao bolsonarismo”, disponível em: https://www.academia.edu/37751341/Da_Esperança_ao_Ódio_Pobreza_e_Política_do_lulismo_ao_bolsonarismo
[6] Essa é a definição de políticas progressistas da identidade elaborada por Silvio Almeida no prefácio que faz à edição brasileira da obra “Armadilhas da Identidade”, publicada pela Editora Veneta em 2019.
Por Tainã Góis