Paulo Spina
A pandemia de 2020 produziu uma força avassaladora que rompeu o cotidiano das pessoas e compeliu transformações num curto período. As coordenadas de referência das instituições e da sociedade foram impactadas por incertezas estruturais. Os sentidos para o cenário atual e para a pós-pandemia estão em disputa, com crises entrelaçadas sanitária, política e econômica nas quais é possível constatar elementos conjunturais como aumento das opressões, desemprego, ampliação das desigualdades e aceleração dos confrontos políticos. Um momento importante. desse processo de conflito acontecerá nas eleições municipais de 2020 no Brasil.
Independente dos cenários que teremos nas campanhas eleitorais e nas eleições, vivenciaremos uma mudança completa para a qual não estamos nos preparando. Quero aprofundar neste texto o impacto da conjuntura para a realização dos programas eleitorais. As ideias em circulação neste processo político brasileiro serão fundamentais para os sentidos possíveis.
Revisar programas
Um programa de governo que almeja transformar o status quo, mesmo em condições normais, precisa desafiar e vencer uma força que atua na realidade para manter os acordos e esquemas. A pandemia, ao movimentar os cenários de maneira imprevisível, pode potencializar uma força de transformação. Entretanto, é preciso advertir a esquerda: qualquer programa imaginado antes da pandemia não serve para este momento. As racionalidades dispostas mudaram completamente e o primeiro passo é reconhecer que as respostas que vinham sendo dadas são insuficientes. Da mesma maneira, os métodos de construção de um programa que, na maioria das vezes, levam a elaborações fragmentadas, improvidas, superficiais e panfletárias precisam ser revistos.
A força atrativa para o centro, para barrar os avanços de uma ultradireita que está destruindo o país, precisa ser problematizada. É preciso estar nítido que foi também a racionalidade neoliberal que orbita o centro político hegemônico, aplicado pela direita e, infelizmente, também pela esquerda, que nos aproximou da encalacrada que tentamos sobreviver atualmente. Negar tal força de atração também não leva a mudança da realidade, pois o isolamento nos condena à impotência.
Avancemos em proposições concretas do que fazer. Penso que precisamos nomear soletrando palavra por palavra que nosso programa vai mudar o sentido do Estado no caso da esfera municipal. Esta que, invariavelmente, constituiu-se numa relação de subordinação com outras esferas para sustentar o lucro de setores privados de grande porte, cobrar impostos e oferecer alguns serviços sociais precisará ser completamente transformada. A cidade deverá ser organizada para potencializar uma perspectiva comunitária de organização da vida.
Entretanto, para que uma organização comunitária da cidade? O que tal organização tem a ver com a pandemia? Em que isso beneficiaria as pessoas?
Benefícios para o topo
As cidades foram constituídas para beneficiar o topo das pirâmides econômicas, políticas e sociais. Mesmo com grupos de pessoas criativas que reinventam realidades diante de cenários adversos, as cidades não servem para as pessoas mais pobres. São elas que morrem em maior número na pandemia e, dia a dia, passam por diversas mazelas que vão do caos no transporte à falta de acesso à saúde. Um Estado, na esfera municipal, que fortaleça uma organização comunitária poderá beneficiar as pessoas ao enfrentar diversos problemas transformando a cidade em um espaço que poderemos exercer nossa potência criativa e colaborativa para criarmos nossos filhos e melhorarmos nossa própria realidade.
Tal proposta orientadora de um programa encontra três campos com grandes aliados na sociedade: os que defendem direitos sociais como, em geral, trabalhadores públicos; moradores das periferias, sobretudo as mulheres, que já vivenciam no cotidiano a necessidade de redes de apoio mútuo; e os pequenos comerciantes ou pequenos negócios que oferecem produtos e serviços em comunidades periféricas.
Um programa numa perspectiva comunitária exige de nós a construção de uma constelação de processos envolvendo escuta, imaginação, cooperação e criação que signifiquem uma democracia de alta intensidade capaz de nos tirar da apatia e nos mostrar que a normalidade anterior tinha uma face autodestrutiva.
Para avançarmos em transformações precisamos compartilhar convicções que apesar das inúmeras possibilidades de posições diferentes entre nós aponte um sentido de mudança. O primeiro momento de elaboração de um programa é a análise coletiva dos principais problemas da cidade. Analisar como a população local compreende suas necessidades, fazer um diagnóstico histórico da evolução dos problemas e identificar as ineficiências das administrações anteriores. Tal momento diagnóstico deve ser acompanhado de formulações gerais e concretas que apontem o sentido dessa análise, o horizonte de transformação almejado e, também, considerar as dimensões diferentes presentes do urbano: os bairros, as relações funcionais, econômicas e relacionais com a região e com cidades vizinhas. Sugere-se sete formulações concretas que podem ser a base para analisar a realidade e propor um programa de transformação:
- Das estruturas sistêmicas de corrupção ao modelo de governo aberto. O histórico político de administração dos territórios desde as capitanias hereditárias e a divisão do pacto federativo contemporâneo privilegiaram o benefício de castas políticas, econômicas e sociais. É desse processo de constituição de regalias e racismo estrutural que a corrupção sistêmica se instalou. É obvio que os valores de justiça e honestidade das pessoas à frente de uma prefeitura importam, mas o fundamental é um programa capaz de mudar a estrutura que combaterá e impedirá a corrupção sistêmica que assola as prefeituras do nosso país. Quais são as formas atuais de gestão que facilitam a corrupção? Quais são os processos de centralização do poder que impedem uma transparência efetiva em determinada cidade? Como transformar o poder público de forma a combater sistematicamente a corrupção? A centralização e falta de transparência são, nitidamente, problemas da gestão que favorecem a lógica da corrupção sistêmica. É completamente necessário ascender as luzes de todos os espaços do poder municipal, promovendo uma efetiva transparência das ações em cada segmento o Governo Aberto. Governo Aberto é um conjunto de medidas de transparência que envolve a criação de um observatório independente dos gastos públicos; plataformas permanentes de participação e controle dos gastos em todas as ações governamentais ou que envolvem investimentos públicos; auditoria de todos os contratos municipais; revisão e reversão de contratos contrários ou que mercantilizam o bem comum e os direitos sociais; redução constante dos custos do alto escalão do governo e cargos de confiança; metodologias transparentes de avaliações coletivas dos serviços públicos ou comunitários; planos de desenvolvimento por bairro e planos setoriais impulsionado pelo poder municipal e realizado coletivamente com a população; orçamento e definição de prioridades de forma participativa; publicação de declaração patrimonial e conflito de interesses de funcionários do alto escalão; monitoramento de execução dos planos dentro dos prazos; e programa de proteção aos denunciantes de corrupção.
- Da solidão das cidades para a ampliação da solidariedade e da potência criativa compartilhada. As cidades atualmente são organizadas para o desenvolvimento de um suposto desempenho individual competitivo, no qual as pessoas se esbarram numa correria que atende aos interesses das mercadorias e não o das próprias pessoas. As cidades se tornaram ambientes hostis para os próprios habitantes, fazendo de as pessoas seres atomizados, sem uma rede que possam compartilhar problemas e soluções e, dessa forma, desperdiçam um potencial criativo que só pode emergir a partir de espaços comuns. Mesmo em cidades pequenas, o isolamento tem sido uma realidade comum. Onde e quando os moradores de determinada cidade se sentem isolados, abandonados ou desprezados pela estrutura pública ou comunitária? Como uma cidade pode envolver os diversos segmentos da sociedade, sobretudo, os mais vulneráveis, em determinado planejamento e execução da política urbana? Mudar o sentido do poder municipal significa colocar toda a estrutura de governo a serviço das pessoas e comunidades, como indutor da solidariedade e de processos compartilhados que estimulem a criatividade e a resolução dos problemas comuns. São fundamentais formulações capazes de maximizar o potencial da cidade por meio de um sólido conhecimento da realidade urbana de cada bairro. Isso só é possível por meio de uma segmentação com estruturação urbana do território em uma efetiva escala de intervenção colaborativa, fomentando, dessa forma, a coesão e o bem viver dos moradores. É a territorialização das políticas com efetiva participação popular por meio da combinação de coordenação horizontal comunitária com regulação, investimento e coordenação vertical pela prefeitura.
- Da gestão centralizada e ineficiente para a multiplicação dos coletivos comunitários e de trabalhadores. A estrutura do poder municipal nas diversas cidades do Brasil, com o poder executivo centralizado nas figuras de prefeitos e secretários determinando o planejamento e a execução das políticas, tem sido espaços, em geral, associado a interesses de minorias privilegiadas. Quais são os processos de centralização do poder que impedem uma gestão efetiva em benefício das classes populares? Quais medidas são necessárias para a transformação do arcabouço do poder municipal? O sentido de transformação deve apontar para a descentralização do poder de planejar e executar as políticas urbanas. Dessa forma, a estrutura clientelista de governos executivos e câmaras municipais que regulam, filtram e distribuem políticas de acordo com seus interesses precisa ser modificada na base por meio da multiplicação de coletivos comunitários e de trabalhadores que podem se transformar em planejadores, influenciadores e executores de políticas urbanas, por meio de chamamentos públicos democráticos, transparentes, orientados para um determinado fim, regulados e avaliados por princípios governamentais construindo um tecido social de comunidades urbanas. Com essa proposição política, afirma-se o entendimento de que os bairros pertencem a moradoras e moradores, trabalhadoras e trabalhadores, com a constituição de projetos e estratégias comuns de fortalecimento social, que podem resultar em obras de melhorias urbanas, paisagísticas e arquitetônicas realizadas pelos próprios coletivos por meio de processos públicos, transparentes e democráticos. Busca-se a solução dos desafios e problemas locais na própria comunidade, baseando-se em habilidades e experiências
- Do enraizamento do preconceito ao vir-a-ser das singularidades próprias. Infelizmente, as realidades das cidades e das comunidades não estão imunes à ampliação do preconceito e da discriminação engendrada pela política reacionária de uma extrema direita no poder federal. Não podemos ignorar que a irrupção de uma antipolítica que expressa ódio ao invés de diálogo traz problemas concretos para o nível municipal. Como tal fenômeno ganha contornos concretos na dimensão local? Para o desenvolvimento de um programa e o enfrentamento desse grande problema, duas questões devem se entrecruzar na direção de soluções. Como será possível uma administração, que tem como base o envolvimento participativo, lidar com indivíduos e coletivos que se expressam politicamente destilando ressentimentos, ódio e preconceitos? Como um programa pode engendrar e potencializar uma mentalidade solidária e afetos fortalecedores do diálogo com o diferente? Não há saída fácil. É preciso instituições transparentes e processos democráticos que acolham os coletivos e os cidadãos de forma completamente imparcial, aberto a divergências, mas que barre expressões públicas de misoginia, homofobia, racismo, demais preconceitos, difamações e mentiras. Um poder municipal que possibilite políticas urbanas e comunitárias que fortaleça o vir-a-ser de singularidades próprias.
- Do reconhecimento da emergência climática a mudanças efetivas no paradigma econômico da cidade. A pandemia de 2020 arrefeceu o debate sobre a emergência climática que vinha ganhando as ruas com protestos mundiais organizados por estudantes. O reconhecimento de que o nosso tempo histórico, além da pandemia, tem o desafio de implementar medidas urgentes relacionadas à diminuição do impacto ambiental traz consequências para um programa municipal transformador. Uma das questões que dificultam o aprofundamento de medidas de proteção ambiental está relacionada à associação comum entre o modelo econômico e o crescimento e à melhora de índices sociais e de qualidade de vida da população. Como podemos organizar as cidades para diminuir o impacto ambiental e ampliar o acesso das pessoas a uma vida de qualidade? Só das pessoas a uma vida de qualidade? Está claro que medidas pontuais não irão produzir mudanças no ritmo necessário para o planeta. E, independentemente do tamanho da cidade, cada programa deve ter a coragem de propor um plano de transição que garanta diminuição significativa do impacto ambiental com a efetiva mudança do modelo econômico da cidade. Soluções caminham na direção da economia circular; economia de base comunitária; comércio de proximidade; uso eficiente de recursos; processos e cadeias produtivas da cidade e padrões de consumo; trabalho inclusivo e renda básica de remuneração do trabalho doméstico; soluções ecológicas baseadas na natureza como edifícios ecológicos, transporte público sustentável e energia renovável, entre outras.
- Da crise do serviço público à reinvenção participativa com ampliação dos direitos. Os trabalhadores públicos de diversas áreas têm sido constantemente atacados pelas políticas e estão subordinados a gestões estruturalmente opressoras. Candidatos de todos os matizes vão proclamar com discursos eficiência da gestão, valorização dos trabalhadores e meritocracia. Entretanto, com a manutenção da estrutura opressora seja gerido diretamente pelo Estado, seja pelas gestões privatizadas o resultado só poderá ser de aprofundamento da crise do serviço público. Um programa transformador para as cidades deverá reconhecer que o problema é estrutural e ter a coragem para fazer uma reinvenção do serviço público a partir dos próprios trabalhadores e dos usuários dos serviços. Qual deverá ser o sentido dessa reforma do sistema público? Como avançar em tais mudanças ampliando direitos para a população? O sentido dessa transformação do serviço público de diversas áreas deve ser o de potencializar as relações de trabalho, de forma solidária, achatando hierarquias, fortalecendo autonomia, transparência e criatividade dos serviços nos planejamentos estratégicos compartilhados entre trabalhadores e comunidades. Isso combinado a ações verticais de avaliações constantes, regulações gerais, difusão das melhores práticas e investimentos.
- Do caos no trânsito, às vias abertas para as classes populares. O aparente não planejamento das cidades com o trânsito caótico, torna-se um dos principais exemplos com os veículos particulares em abundância e, principalmente, as enormes distâncias que os trabalhadores precisam percorrer entre as casas e os trabalhos, na verdade, são resultados de políticas que seguem o planejamento e a lógica dos privilégios de elites empresariais ligadas ao transporte. Tal organização dos deslocamentos nas cidades não serve aos trabalhadores e, ainda, impactam de forma significativa e nociva o ambiente. É preciso transformar a lógica de deslocamento e não apenas acrescentar promessas de melhorias no transporte de massa ou tipos de transporte alternativo. Com a pandemia e os reais receios de proximidade social, as pessoas sentiram-se atraídas para o transporte individual, que resultará em piora do trânsito e mais poluição ambiental. Só uma administração municipal disposta a mudar a lógica do transporte poderá inverter tal comportamento pós-pandemia. Como modificar a lógica do transporte nas cidades? São quatro ações simultâneas que poderão provocar uma reforma do transporte nas cidades, para que o deslocamento das pessoas se torne um direito social e não uma mercadoria: diminuição gradativa dos custos do transporte para os usuários em direção à tarifa zero; ampliação efetiva da frota de ônibus com qualidade e conforto; mudanças na forma de contrato e remuneração de empresas do transporte; e acréscimo do transporte público por ônibus na modalidade aplicativo.
Financiamento, urgências e prioridades
De forma geral, um programa também precisa se aprofundar no orçamento e apontar as fontes de financiamento de cada proposição, demonstrar a urgência das mudanças com medidas emergenciais para os primeiros seis meses e criar um índice de prioridades temporais na sua aplicação.