Lucas Sena
A pandemia do novo coronavírus já infectou milhões e matou milhares de pessoas em todo o planeta. O início do surto ocorreu na cidade de Wuhan, na China. Um estudo publicado na revista científica The Lancet mostrou que 49 dos 100 primeiros casos registrados trabalhavam ou moravam próximo ao mercado de animais (como os nossos mercados públicos). A partir das primeiras contaminações, o vírus iniciou a dispersão para o mundo, adotando um caráter pandêmico. Entender a origem e a dinâmica de dispersão são lições fundamentais para minimizar os impactos do atual surto e evitarmos pandemias de dimensões similares.
Vírus, infecção e como surgem
Primeiro, vamos responder o que é um vírus. Eles são organismos que não apresentam células, logo são incapazes de sobreviver ou de se reproduzirem sozinhos. Para tal, precisam usar toda maquinaria de uma célula para garantir a reprodução. São o que chamamos de parasitas intracelulares. O material genético do vírus é protegido por uma cápsula que precisa se acoplar a uma célula e, depois, colocar esse material genético dentro dela. Após, o material genético do vírus passa a controlar a célula usando a maquinaria celular para produzir mais vírus.
Uma questão importante é que o vírus tem uma especificidade de contaminação, ou seja, infecta tipos de células e seres vivos específicos. É um processo similar ao de uma chave abrindo uma fechadura. A chave da minha casa não é capaz de abrir a porta da sua casa. No entanto, toda vez que o vírus se reproduz no interior da célula, ele faz uma cópia de seu material genético. Contudo, como cópias não são perfeitas, isso faz com que o vírus, recém produzido, possa ter o material genético diferente do “molde” que lhe deu origem. Esse processo é conhecido como “mutaçã0”.
Voltemos à analogia da chave e da fechadura. Se eu faço a cópia de minha chave em um chaveiro, essa chave pode sair levemente diferente. Esse “levemente” pode ter 3 desfechos possíveis: 1 – a chave não abrir a porta da minha casa; logo, ela não servirá de molde para chaves futuras; 2 – essa mudança não terá impacto funcional na chave, ou seja, ela abrirá a porta; e 3 – a cópia ficará diferente a ponto de abrir outra fechadura.
De forma similar, as novas mutações no vírus podem fazer com que ele mude as células e os hospedeiros que ele infectou. Assim como nossa chave pode vir a abrir outras portas, o vírus se modificando, ao longo do tempo, pode “saltar” de hospedeiro. Esse processo de mutação e seleção natural é a força motriz da evolução das espécies, processo descrito por Charles Darwin no livro A origem das espécies.
como surgiu o Sars-Cov-2?
O sars-cov-2 faz parte de uma família de vírus “coronaviridae” ou “o coronavírus”. Essa família apresenta esse nome devido ao formato de coroa. Até o ano passado, existiam sete (7) cepas virais dessa família que infectam humanos, dentre elas o sars-cov que matou 667 pessoas, em 2002-2003, e o mers-cov que matou 858 pessoas, em 2013-2014. Todas essas variantes evoluíram de vírus que infectam um hospedeiro natural, saltaram para um hospedeiro intermediário e, por fim, a partir de processo evolutivos, passaram a infectar os humanos.
Já para o novo coronavírus que infecta humanos, o sars-cov-2 apresenta uma similaridade genética com o coronavírus que infecta uma espécie de mamífero conhecida como pangolim (Manis Javanica) e uma espécie de morcego (Rhinolophus sp). Porém, não estava bem estabelecido quem era o hospedeiro natural e o hospedeiro intermediário.
Um novo estudo, publicado no dia 24 de março, mostrou que a sequência genômica dos vírus encontrado em um dos pangolins possui uma semelhança muito alta (99,83 – 99,92%) com as cinco sequências obtidas por meio do exame das amostras encontrados em humanos, e todas têm organizações genômicas similares ao sars-cov-2.
Não podemos ainda ser categóricos ao ponto de afirmar que o vírus “saltou” de pangolins para humanos. Mas, os dados existentes já se mostram categóricos para afirmar que o sars-cov-2 tem uma origem natural e não foi criada em nenhum laboratório para ser uma arma biológica
Transmissão, taxa de contaminação e mortalidade
O coronavírus infecta células de vias respiratórias causando sintomas de leves a graves. Nos casos graves, o indivíduo infectado apresenta falta de ar, podendo ser necessária a internação na UTI para realizar ventilação mecânica (respirar por aparelhos). A transmissão se dá pela entrada do vírus pelas vias respiratórias. Ou podemos respirar diretamente o vírus, que em geral, após ser eliminado por tosse ou espirro, pode ficar suspenso no ar por até 3 horas, com capacidade de contaminação. Porém, o vírus pode permanecer estável, por até 48 horas, no papelão e 72 horas em plásticos e aço inoxidável. Dessa forma, podemos nos contaminar tocando em uma superfície infectada e levando a mão à boca e ao nariz.
O resultado é que temos um vírus de propagação rápida, visto que um indivíduo infectado pode transmiti-lo para mais de uma pessoa, resultando em um crescimento no número de infectados de forma exponencial. Mas, o que isso quer dizer? A melhor analogia para entender a taxa de crescimento exponencial é olhar para uma dívida de cartão de crédito. Quando pagamos o valor mínimo, parece que a situação está sob controle até que, “do nada”, a dívida fica incontrolável.
Esse crescimento abrupto do número de infectados em um curto espaço de tempo causa um efeito devastador, pois leva à saturação do sistema de saúde de um país acarretando um aumento na taxa de mortalidade. O exemplo mais dramático é o da Itália, que atingiu uma taxa de mortalidade de 11%. Nesse sentido, precisamos criar condições para atrasar, ao máximo, o pico do número de infectados. Distribuir os casos ao longo do tempo, criando o efeito conhecido como “achatamento da curva”. Assim, se evitará que o sistema de saúde entre em colapso, podendo dar o devido atendimento aos infectados.
Como frear o crescimento descontrolado
A redução do número de pessoas nas ruas é o primeiro passo. Quanto menor o fluxo de pessoas, menor será a taxa de contaminação. Esse processo é conhecido como “isolamento horizontal”. A Inglaterra, inicialmente, foi contra essa medida propondo o “isolamento vertical”, que, na prática, prevê isolar apenas os casos de risco. Essa política modificou a postura do governo britânico após o estudo do Imperial College. O isolamento de Wuhan, localizada na província de Hubei, foi determinante para que outras províncias chinesas contivessem a epidemia.
Após o cordão sanitário (isolamento e quarentena) realizado em Wuhan, no dia 23 de janeiro, o número de casos em outras províncias passou a ter uma taxa de crescimento negativo em relação à média (achatamento da curva), como mostra o gráfico 2 do artigo publicado na revista Nature. Em azul, a taxa de crescimento em outras províncias, antes do cordão sanitário e, em verde, a taxa de crescimento após a aplicação do cordão de isolamento.
Outras medidas centrais são testes em massa como a Alemanha vem realizando na população. Isso faz com que os indivíduos que já foram contaminados e que já derrotaram o vírus possam ir voltando às atividades, formando uma barreira biológica, visto que tais indivíduos já possuem anticorpos para o novo coronavírus.
Outra importante medida é a ampliação dos leitos de UTI, garantia de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para profissionais de saúde e a distribuição de máscaras e álcool em gel para a população.
Enfrentar a totalidade dos desafios
Os fatos são expressão de uma situação gravíssima, tanto pela velocidade com que o vírus se propaga, quanto pela insuficiência de equipamentos de proteção individual. Mas, numa avaliação geopolítica, essa crise humanitária desmascara as “verdades neoliberais” impostas nesses últimos 40 anos “a ferro e fogo” por governantes, patrões e por uma mídia manipuladora.
Hoje, vemos que a iniciativa privada é incapaz de dar qualquer resolutividade para essa pandemia. E a incapacidade não se encerra na questão da saúde pública. Os governos do mundo todo, inclusive o brasileiro, já saíram em socorro às grandes empresas e ao sistema financeiro, colocando à disposição trilhões de dólares para evitar uma quebradeira generalizada do sistema.
No Brasil, como se não bastasse termos um governo de plantão com ideias fascistas. Bolsonaro se cerca de setores obscurantistas, terraplanistas e negacionaistas das práticas mais avançadas de prevenção e proteção contra essa pandemia.
Assistimos a um show de horrores com as declarações e atos do presidente, contrário à quarentena e ao isolamento social. E a perspectiva é de uma confluência de crises sem precedentes na história do Brasil. Somado ao histórico de concentração de renda e de um passivo de mais de 350 anos de escravismo e injustiças sociais, viveremos um pós-quarentena de milhares de vítimas, de desemprego em massa, de quebradeira no comércio e na indústria, na qual as necessidades mais elementares do povo como água e comida serão “mercadorias de luxo”.
Nesse quadro, os setores politicamente progressistas nas comunidades, nas periferias e nos movimentos sociais, precisam entender que a pandemia e a crise social, com seus efeitos deletérios como o desemprego e a depressão, precisam ser encaradas em sua totalidade. E, no caso, a questão do poder e do governo ganham uma relevância determinante. É impossível superar essa confluência de crises com um governo tipo Bolsonaro. Faz-se necessário que o conjunto da sociedade se mobilize para resolver as questões mais elementares e imediatas da população mais vulnerável, mas também para apresentar um projeto de nação inclusiva, que se apoie na democracia, nas decisões e na distribuição de riquezas, o mais rápido possível para contornarmos essa catástrofe anunciada. Um projeto dessa magnitude tem que levar em conta que a interdição, a interrupção, o impeachment ou qualquer que seja o meio de substituir Bolsonaro é uma tarefa urgente e necessária. Sem essas ações o Brasil vai continuar indo em direção ao colapso e a convulsões sociais, sem precedentes.
Lições e perspectivas:
O “salto” do vírus de uma espécie selvagem para os humanos expõe os riscos da ocupação humana no ambiente silvestre. Todos os animais apresentam microrganismos específicos com os quais seu corpo está adaptado; quando os humanos se deparam com organismos silvestres, estamos correndo o risco de nos contaminarmos com agentes biológicos que nosso corpo não tem capacidade de se proteger. Nesse sentido, a destruição de ecossistemas combinada com o consumo de animais silvestres é uma bomba-relógio que pode estourar, novamente, em qualquer canto do planeta.
A segunda questão é que temos que repensar a estrutura de cidade na sociedade contemporânea. Grandes conglomerados urbanos facilitam a propagação de vírus.
Isso se dá porque a densidade populacional é grande e um indivíduo infectado é capaz de transmitir o vírus para muitas pessoas. O cenário é agravado nas favelas onde, além da alta densidade populacional, as condições sanitárias são precárias. Oscar Niemeyer dizia que o modelo de cidade ideal não deveria ser um conglomerado se ligando em outra cidade, mas sim cidades cercadas com cinturões verdes.
A terceira questão é a necessidade de desenvolvimento de uma indústria nacional de tecnologia que nos torne independentes, do ponto de vista tecnológico. Além do desenvolvimento da ciência de ponta, que passa pelo fortalecimento das Universidades Públicas.
A aposta na ciência de entender a situação que estamos vivendo é uma questão central para enfrentarmos, da melhor maneira possível, essa epidemia e que nos possibilite tirar lições para evitarmos futuros surtos de magnitude similar.