PARA ALÉM DAS MONOCULTURAS: biocombustíveis como ainda não conhecemos
A produção de biodiesel a partir de oleaginosas não destinadas à alimentação e advindas da agricultura familiar pode promover mudanças socioambientais profundas no Brasil e no mundo
Taísa Hardi
Graduada em Biotecnologia pela Universidade Federal da Grande Dourados e doutora em Biologia Molecular pela Universidade de Brasília.
O acúmulo de conhecimento científico ao longo do tempo nos permite compreender as relações entre os seres vivos e os efeitos das atividades humanas no meio ambiente. Esse progresso científico coletivo é fascinante, e um exemplo emblemático desse conhecimento é o estudo dos gases de efeito estufa: Há dois séculos atrás, Joseph Fourier observou que a atmosfera terrestre atuava como um cobertor ou estufa, retendo calor para manter uma temperatura adequada. No final do século XIX, o cientista sueco Svante Arrhenius realizou pesquisas sobre o efeito do dióxido de carbono (CO2), liberado pela queima de combustíveis fósseis, e cunhou o termo “efeito estufa”.
Desde então, a ciência conceitua o efeito estufa como um fenômeno natural em que certos gases atmosféricos funcionam como isolantes térmicos, mantendo a Terra em uma temperatura adequada para sustentar a vida como a conhecemos. No entanto, atividades antrópicas, como queima de combustíveis fósseis e o desmatamento, intensificam as emissões desses gases, levando a mudanças climáticas extremas e ao aquecimento global. Essas mudanças podem levar a alterações drásticas na vida na Terra e impedir práticas humanas inerentes à sua existência.
O mundo capitalista ainda é altamente dependente de fontes não renováveis de energia, como carvão, petróleo e gás natural, todos provenientes de combustíveis fósseis. Essa matriz energética causa impactos ambientais significativos, mas também desencadeia efeitos sociais e políticos negativos, incluindo a falta de transferência justa de renda e a diminuição da autonomia econômica dos países. Do ponto de vista científico, é totalmente irracional um cenário de dependência de uma única fonte de energia, ainda mais quando essa matriz é finita.
© Divulgação/Agência de Minas Gerais
Além disso, só poderemos atingir as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C em relação aos tempos pré-industriais, se 60% do petróleo e do gás metano fóssil, e 90% do carvão ainda existentes permanecerem no subsolo. A transição para uma matriz energética mundial baseada em fontes renováveis é, portanto, urgente. Não podemos seguir aceitando que o setor de transporte utilize sozinho 65% do petróleo refinado mundial enquanto a ciência já conseguiu desenvolver soluções e alternativas.
Os biocombustíveis, como o etanol e o biodiesel, são fontes de energia líquida que substituem a gasolina e o diesel, e são mais sustentáveis em comparação aos combustíveis fósseis por várias razões. O etanol produzido a partir da cana-de-açúcar, por exemplo, pode liberar cerca de 60% menos CO2 em comparação à gasolina, enquanto o biodiesel feito de óleos vegetais pode reduzir as emissões de CO2 em cerca de 50% a 80% em relação ao diesel convencional. Além disso, vale ressaltar que os biocombustíveis também podem diminuir a emissão de poluentes no ar, como o material particulado e os óxidos de nitrogênio (NOx) e são provenientes de fontes renováveis: plantas.
Atualmente, o Brasil destaca-se na produção de biocombustíveis, ocupando a posição de segundo maior produtor de etanol e a terceira posição na produção de biodiesel. Essa alta produção pode ser explicada pelas políticas estabelecidas desde 2004, tornando obrigatória a adição de biocombustíveis aos combustíveis fósseis. De forma isolada, essas informações poderiam ser excelentes e indicar que o modelo de produção nacional está no caminho certo. No entanto, como dito anteriormente, a ciência é a junção da construção coletiva do conhecimento, e se observarmos o todo veremos que a produção de biocombustíveis nacional, em consonância com a produção global, está longe de ser sustentável.
Por decisões políticas equivocadas, nossa produção de biocombustíveis se baseia em monoculturas e utiliza tecnologias de primeira geração – duas grandes problemáticas que merecem nossa atenção. Primeiramente, em relação à utilização de monoculturas para produção observa-se a perda da biodiversidade e a flagrante dependência de apenas duas matérias-primas: cana de açúcar para a produção de etanol e soja para a produção de biodiesel. Nesse modelo, apesar de termos uma fonte renovável, replicamos os mesmos erros do modelo petrolífero: dependência de uma única matéria-prima e injustiças socio-ambientais, marcadamente a ausência de distribuição justa de renda.
Decisões políticas equivocadas baseiam a produção de biocombustíveis em monoculturas e tecnologias de primeira geração
A segunda problemática do modelo atual de produção de biocombustíveis está no fato de que a tecnologia utilizada é de primeira geração (1G), o que significa que para produzir etanol e biodiesel, utilizamos culturas destinadas à alimentação humana, competindo diretamente pela destinação final e por terras agricultáveis. Felizmente, a ciência também mostrou o caminho para solucionar esse complexo desafio: diversidade na produção, uso racional das terras agricultáveis e modelos integrativos de produção.
Vejamos como: do ponto de vista técnico, a produção de etanol se dá pela conversão de açúcares fermentescíveis em etanol pela levedura Saccharomyces cerevisiae. Esses açúcares estão presentes nas biomassas vegetais, o que significa que qualquer resíduo que contenha celulose e hemiceluloses pode ser fermentado em etanol. Essa tecnologia é conhecida como 2G e permite que o etanol seja produzido a partir de biomassa vegetal, sem competição com a alimentação humana, seja por destinação final ou terras agricultáveis. De forma mais detalhada, o biodiesel é obtido por meio da reação química dos ácidos graxos e triglicerídeos presentes nos óleos vegetais de oleaginosas e em gorduras de origem animal.
Existem mais de 200 oleaginosas com potencial para produção de biodiesel e grande parte delas não são destinadas à alimentação humana. E as vantagens dessas oleaginosas não param aí: o pinhão-manso, a mamona e a macaúba, por exemplo, são culturas perenes e de fácil propagação, sendo possível o seu plantio consorciado com hortaliças e beneficiando a agricultura familiar. Neste modelo, torna-se possível destinar terras não agricultáveis para produzir diversas oleaginosas que serão convertidas em biodiesel, bem como integrar a produção entre oleaginosas e culturas alimentares.
O modelo integrativo de produção pode ser estendido também aos co-produtos da cadeia produtiva do biodiesel, chamados de tortas ou farelos. Tratam-se de compostos ricos em proteínas e lipídios, e podem ser aplicados na suplementação de animais, possibilitando substituir as proteínas tradicionais obtidas a partir da soja e do trigo. Alguns desses co-produtos podem conter moléculas tóxicas para os animais, mas a ciência já tratou de resolver esse problema também!
Dentre os diversos processos de destoxificação dos co-produtos da indústria do biodiesel, o processo de biodestoxificação é o mais fascinante. Nesse processo, fontes renováveis como os cogumelos podem ser aplicadas. Esses fungos conseguem degradar as moléculas tóxicas e enriquecem o composto. Como se não bastasse, deste ciclo ainda resultam cogumelos comestíveis para seres humanos.
Ademais aos pontos apresentados, em termos socioecológicos, o Brasil conta com os saberes dos povos tradicionais, que possuem muitas práticas e tecnologias de produção harmônicas com a natureza. Não basta, portanto, somente a ciência mostrar o caminho, esse caminho deve ser incorporado nas políticas e nos meios de produção. Preservar a vida na Terra como a conhecemos, e a própria existência humana, passa necessariamente pelo enfrentamento às mudanças climáticas e aos modelos dilapidados de produção exploratórios.