Rafael Ioris
Se a maior potência militar do planeta não pode mais pontificar sobre seu sistema político como modelo para o mundo, pelo menos como terra do espetáculo os Estados Unidos ainda têm alta influência mundial. Após longos dias de antecipação e suspense acompanhados por espectadores atentos ao redor do globo, o inepto e descentralizado sistema de eleições daquele país consagrou Joe Biden, ex-vice presidente e um dos caciques do Partido Democrata, como o próximo presidente da terra de Lincoln. Mas, ao contrário de resolver o clima de disputas internas, a eleição de Biden, pelo menos por ora, aguçou o clima de tensão no país.
O que vimos nas semanas seguintes à eleição de novembro de 2020 foi que, liderados pelo magnata imobiliário da extrema direita, apoiadores da agenda xenófoba, autoritária e de supremacia racial branca questionaram a legitimidade do pleito e prometeram reverter o resultado de forma a manter Trump no poder.
Tais dinâmicas culminaram na invasão violenta do Congresso norte-americano que ocorreu no dia 6 de janeiro de 2021. Foi um evento histórico, traumático e que, ao contrário do que esperavam Trump e os apoiadores, serviu para deslegitimar o grande líder e seus seguidores, e aglutinar forças políticas tradicionais, a mídia e a opinião pública em defesa da institucionalidade.
Luta incerta
É incerto o que Trump esperava ganhar com tais eventos ao insuflar a base com ações tão graves e inusitadas. Talvez somente manter a relevância como líder entre seus partidários? Talvez efetivamente forçar uma ruptura institucional? O fato é que os Estados Unidos continuarão imersos no mais alto clima de polarização política que o país enfrentou desde os anos 1960, e dentro de um contexto no qual grupos radicais extremistas conseguem ter um maior peso e influência do que em períodos anteriores.
Diante da forte crise política e econômica que os EUA vêm enfrentando nos últimos anos, processo aprofundado pela pandemia e pela crescente presença chinesa na região, o que se pode esperar do próximo governo democrata com relação à América Latina? Imerso em enormes desafios internos, buscará o novo presidente projetos e iniciativas inovadoras na região, ou será Joe Biden um líder focado no contexto doméstico? Que peso terá o hemisfério ocidental na política externa do governo? Traço a seguir possíveis linhas e tendências para o relacionamento entre a América Latina e os Estados Unidos nos próximos anos.
É certo que se trata de um cenário ainda em composição e, portanto, com alta imprevisibilidade. Busquei focar temas e eixos analíticos de viés mais estrutural. Mas, ainda assim, ressalto a natureza provisória e mesmo especulativa da análise que, não obstante, seja útil para novas reflexões a serem produzidas ao longo dos próximos meses e anos.
País dividido e foco doméstico
A fim de responder as questões colocadas, caberia apontar, em primeiro lugar, que a realidade saída das urnas na histórica eleição de 2020 é a de um país profundamente polarizado entre setores que defendem posições em grande parte irreconciliáveis, tantos em temas econômicos, como em questões de cunho cultural e moral cenário que obviamente apresentará grandes desafios para o novo governo. Se com a vitória de Biden, os Estados Unidos poderão retornar a racionalidade em termos de formulação de políticas públicas e de institucionalidade formal em termos diplomáticos, o trumpismo continuará vivo e influente como força política definidora de tendências naquele país.
Além disso, fazendo jus ao perfil moderado do novo presidente, a administração Biden será provavelmente pautada por um teor reconciliador e tenderá a governar pelo centro. Da mesma forma, dadas as enormes dificuldades sanitárias e econômicas que o país enfrenta, o novo governo deverá se concentrar, em grande medida, no contexto doméstico.
Por fim, levando-se em consideração os nomes indicados até agora para assumir as posições centrais na burocracia responsável pela formulação de política externa na vindoura gestão nos EUA -Antony Blinken no posto de Secretário de Estado e Jake Sullivan como Assessor de Segurança Nacional, todos funcionários de carreira que ocuparam cargos importantes no governo Obama, teremos uma gestão pautada mais pelo espírito de reconstrução do que de transformação. E mesmo levando-se em conta que no governo Trump os países ao sul eram vistos essencialmente por meio de lentes internas (com um discurso agressivo anti-imigrante, destinado a agradar a base nativista do partido Republicano), lembremos que Joe Biden participou, como vice-presidente, de um governo que também apresentou uma postura dura com relação aos imigrantes latinos.
Barack Obama liderou os governos com o maior número de deportações da história recente do país e teve uma atuação nada modelar em sua defesa puramente formal das regras democráticas na região, frente aos golpes de Estado dos últimos anos na América Latina. E, além disso, os democratas têm um longo histórico de promoção de uma política externa hemisférica de viés neoliberal, centrada na promoção dos interesses econômicos de suas empresas, assim como no eixo da segurança nacional, definido em termos bem estreitos: defesa da fronteira e combate ao narcotráfico e ao terrorismo.
Continuidades dentro da tradição diplomática daquele país tenderão a dar o mote do comportamento internacional, embora certamente ocorrerão ajustes em áreas específicas no mais das vezes, derivados de demandas e pressões internas, como exemplo a temática migratória.
Maior interesse na região, mas sem sobressaltos
Embora o patamar de relacionamento de Trump com a América Latina tenha sido mínimo, guinadas históricas rumo a um intenso relacionamento com nossa região seriam surpreendentes. Isso se aplica inclusive à histórica promoção da lógica mercantil (formalmente de livre comércio) da diplomacia norte-americana, uma vez que hoje aquele país vive um momento de protecionismo muito mais intenso, que deve continuar o governo Biden.
De maneira concreta, em artigo em que analisa a situação latino-americana no final do segundo ano de mandato de Donald Trump, Joe Biden afirmou que os EUA haviam negligenciado de maneira perigosa a presença junto aos vizinhos ao sul da fronteira. Isso teria dado margem excessiva a uma maior influência de outras potências econômicas e militares globais na região, em especial uma maior atuação da China e, em alguns lugares, da Rússia.
Trump também teria descontinuado programas importantes, como a aproximação estabelecida por Obama junto a Cuba e a ajuda econômica e de segurança que os EUA tinham destinado a países da América Central. Aqui, a referência é ao chamado Triângulo do Norte (Guatemala, Honduras e El Salvador), focos nodais das últimas ondas migratórias rumo ao território norte-americano, decorrentes de continuadas e crescentes crises econômicas e de segurança locais.
Ainda segundo Biden, o vácuo criado por Trump na região teria de ser revertido a fim de manter a América Latina sob a égide dos interesses e agenda norte-americana. E nessa nova expressão da lógica hegemônica, a liderança norte-americana deveria exercer também pela promoção de sua visão específica de democracia e pelo combate ao que se entende como uma crescente corrupção regional, de maneira especial, na Venezuela e Nicarágua.
E seria importante apontar que Biden não demostra a mesma preocupação com a crescente erosão das instituições democráticas em outros países da região, nem faz nenhuma culpa no que se refere ao papel da diplomacia norte-americana na legitimação de processos golpistas em diversos países da América Latina, como Honduras, em 2009, no Paraguai, em 2013 e mesmo em nosso país, em 2016.
Cúpula da democracia
Em uma das poucas promessas concretas para a administração, Biden diz pretender sediar uma Cúpula da Democracia, em que provavelmente se buscará, mais uma vez, a promoção de programas de cooperação entre o FBI e Ministérios Públicos regionais nos moldes das investigações politicamente enviesadas, como as da Operação Lava Jato, no Brasil e Peru. Na mesma direção, no sumário do programa de governo publicado após a confirmação de sua vitória, Biden aponta que tentará reestabelecer princípios multilaterais e institucionais à política externa norte-americana, de modo que os EUA voltarão ao Tratado Climático de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS).Também trabalharão para reestabelecer o diálogo e a cooperação junto aos aliados tradicionais, em especial a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de modo a conter a expansão de países que continuam vistos como rivais principais ao redor do globo, em especial a China e, novamente, a Rússia.
Fica claro, pois, que a América Latina continuará a ser vista de maneira secundária, como foco de disputa entre as grandes potências. E uma das poucas áreas em que talvez nossa região, ou mais precisamente parte dela, venha assumir alguma centralidade séria na temática ambiental. Biden apostou nesse tema como um elemento central na sua plataforma de campanha para atrair o eleitorado mais jovem do seu partido. E parece provável que um discurso ligado ao meio ambiente venha a servir como uma política de pressão sobre concorrentes comerciais, especialmente junto a países como o Brasil. De fato, tanto para manter o apelo junto às alas mais progressistas dos democratas, quanto para agregar setores empresarias ligados ao agronegócio, Biden poderá utilizar o desastre ambiental brasileiro como um exemplo negativo mundial.
Imigração limitada
Na temática migratória, Biden diz não defender uma política de fronteira aberta, mas vê o status quo como insustentável e julga necessária uma nova política migratória, que inclua um processo de anistia e legalização de indocumentados. Mas não parece certo que algo tão ambicioso seja aprovado no Congresso, especialmente sem o controle da Câmara Alta do país. O novo presidente promete reestabelecer a decisão legal de não deportar imigrantes indocumentados que foram trazidos pelos pais aos EUA quando crianças.
A nova administração pretende também suspender a expansão do muro fronteiriço com o México, assim como reverter o tom agressivo em relação às comunidades latinas. No mesmo sentido, planeja-se manter a atual suspensão legal do programa de separação de famílias imigrantes que levou as forças de segurança a prender crianças em jaulas, muitas das quais ainda esperando ser reintegradas aos familiares.
Ainda que Biden deseje retomar o diálogo com o México, lembremos que, contra todas as expectativas, o governo, formalmente de esquerda de Lopez Obrador, foi muito cooperativo com Trump, tanto no que se refere à revisão das cláusulas comerciais do NAFTA (hoje, USMCA) quanto à contenção das ondas migratórias que passavam pelo território mexicano. Aqui não houve novidades. Em 2014, Obama e o então presidente mexicano Peña Nieto criaram o programa Frontera Sur. Por meio dele, Washington forneceria recursos para que o governo mexicano impedisse que migrantes centro-americanos atravessassem o território. Até o momento, Biden não indicou que pretenda rever essa política, ainda que ela provoque forte resistência e desgaste junto aos países do sul.
China e vácuo de interlocutores regionais
Os desafios frente à ascensão e crescente influência regional da China, assim como a preocupação com o atual governo venezuelano devem prosseguir. Cabe lembrar que Biden, um moderado, teve na política externa uma atuação forte em defesa dos interesses dos EUA, inclusive na defesa do uso da força militar. De maneira concreta, ele foi um dos defensores da política antidrogas na região, em especial do Plano Colômbia, assim como da tentativa da expansão de acordos de livre comércio. Assim, para além da tentativa de recuperação de um padrão de negociação centrado na diplomacia formal, não se deve esperar mudanças profundas no relacionamento com a região.
Possíveis exceções seriam a tentativa de retomar o processo de aproximação com Cuba, embora hoje o governo da ilha talvez não tenha o mesmo interesse em repetir os termos da negociação da era Obama. Além disso, a derrota de Biden junto à comunidade cubana do sul da Flórida representa, hoje, resistência interna a um possível rapprochement mais ambicioso. Com relação ao governo de Nicolás Maduro, será surpreendente se houver uma grande mudança de tom por parte de Biden, ainda que seja possível antever que novos canais de diplomacia possam vir a ser estabelecidos, com uma eventual acomodação, especialmente agora que o novo Congresso venezuelano retirou de cena a controversa figura de Juan Guaidó.
Da mesma forma, a experiência do golpe de estado na Bolívia em 2019, apoiado pelo governo dos EUA e chancelado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), requererá um grande esforço de reconstrução da imagem norte-americana na região. Embora seja provável que presidentes como Alberto Fernandez, da Argentina, e mesmo Lopez Obrador tendam a se sentir mais confortáveis com Biden do que com Trump, há arestas que não serão facilmente aparadas, nos âmbitos do comércio e das relações com Pequim.
De todo modo, parece certo que Biden buscará uma maior interação e diálogo com a região. Mas não parece tão claro que, excetuando-se Jair Bolsonaro, haja uma definição de rumos a serem seguidos pela maioria dos países da região, cada dia mais dependentes do mercado e de investimentos chineses. Apesar de, até o momento, Bolsonaro manter uma postura de alinhamento estreito junto aos EUA, a pressão do agronegócio e de setores de tecnologia na questão do 5G poderá forçar o governo a fortalecer relações com a China.
Fragmentação política
A América Latina encontra-se hoje em um contexto de maior divisão interna polarização ideológica, turbulências políticas e dificuldades econômicas e sanitárias do que durante os anos Obama. Acima de tudo, não há clareza sobre quem seria o interlocutor regional para o estabelecimento de diálogo e interação, uma vez que as organizações regionais como a UnaSul, Celac e mesmo o Mercosul, encontram-se fragilizados. As alternativas propostas por novas lideranças, como o controverso Grupo de Lima, não foram capazes de se estabelecer como vozes legítimas. Por fim, Brasil e México, que, em tese, poderiam aglutinar interesses regionais, parecem desinteressados e/ou incapazes de assumir a tarefa de falar pela região.
Mais uma oportunidade perdida?
Para além da tradicional defesa regional contra influências extra hemisféricas e do combate ao narcotráfico, não está claro quais as prioridades específicas da administração Biden com relação ao nosso continente. As exceções mais claras seriam a manutenção da agenda anticorrupção da era Obama, cujos resultados, além de controversos desde então, estão hoje muito menos aceitos na região; e, em especial, a temática da proteção ambiental, de maneira central da região amazônica. Biden chegou mesmo a prometer a criação de um fundo de 20 bilhões de dólares para a proteção da floresta amazônica, em especial frente aos incêndios florestais crescentes em território brasileiro, ideia que foi fortemente rechaçada pelo governo brasileiro. O desencontro aponta para possíveis atritos entre os dois maiores países do hemisfério.
Não se devem esperar nem mudanças radicais, nem o mais do mesmo no relacionamento dos EUA para com nossa região. Biden certamente se dirigirá ao mundo com maiores níveis de diálogo e diplomacia, mas é bem provável que o país manterá uma postura dura frente à China, enquanto trabalha para recompor a influência global.
Num contexto regional em que os organismos de representação multilateral se encontram fragilizados e em que a crise da pandemia trouxe à luz enormes deficiências das sociedades latino-americanas, novas formas de diálogo e colaboração terão grandes dificuldades de efetivação.
No momento em que políticas de controle sanitário, que certamente teriam tido melhor resultados se buscadas por meios multilaterais e que poderiam assim servir para aprofundar iniciativas de coordenação diplomática regional, o que vemos é a reversão de tais projetos e o aprofundamento da lógica e narrativa unilateral e mesmo xenófoba.
Em grande medida, espera-se que a dinâmica de relacionamento hemisférico seja, pois, mais de caráter bilateral do que multilateral e mudanças em questões específicas tenderão a se dar não só por alguma iniciativa por parte dos EUA, mas também pela forma com que países específicos venham a se engajar com o novo governo norte-americano. Nesse sentido, especialmente em países onde a diplomacia formal esteja encastelada em amarras ideológicas da Guerra Fria em especial, o Brasil, novos atores da política externa, como ativistas e acadêmicos poderiam fazer a diferença na busca de inovações que sejam mais promissoras do que tanto o status quo, quanto experiências históricas de claro imperialismo, como nos anos 60, 70 ou 80 do século passado.
Diferenças no relacionamento
É inegável que faz muita diferença se os EUA se relacionam com o resto do mundo de uma forma agressivamente unilateral, como fez Trump, ou sob uma abordagem multilateral, institucional e diplomática, como se espera que seja feito por Biden. De toda forma, não é de se esperar que a América Latina venha a aparecer no centro das atenções de Washington.
Biden certamente buscará maior engajamento com seus vizinhos, mas isso continuará a ser feito de forma ad hoc e certamente guiado, prioritariamente, pelos interesses econômicos e de defesa da potência hegemônica regional. A forma como a América Latina reagirá às novas orientações dos Estados Unidos ajudará em muito a definir os rumos do que tem sido historicamente o relacionamento mais impactante e definidor que a sofrida, mas resistente região tem mantido com o resto do mundo.