Gilberto Maringoni
“O atleta, por definição, no exercício da carreira, é um ser individualista, voltado para o próprio umbigo, para bater recordes, para ganhar o jogo no domingo, para ser campeão, para aproveitar ao máximo o tempo curto de sua trajetória, e enriquecer. Essa é a razão pela qual aqueles que são bem-sucedidos, em regra, reproduzem o discurso do poder e da elite. Querem carro blindado, morar em condomínios fechados e pena de morte para quem sai da linha. ‘Não me venha tomar aquilo que conquistei a tão duras penas’. Como visão de coletividade, atendem, no máximo, à família, aos amigos e a sua corriola. A sociedade que se dane.
Isso tanto é verdade, que você conta nos dedos os esportistas, no mundo todo, que se notabilizaram por posições políticas corajosas e libertárias. É o caso do Muhammad Ali, que perdeu o cinturão dos pesos-pesados por se recusar a ir ao Vietnã; é o caso de Tommie Smith e John Carlos, americanos que fizeram a saudação Black Power no pódio dos 200 metros rasos nas Olimpíadas do México (1968), e se ferraram, perderam as medalhas e nunca mais competiram; é o caso da Democracia Corintiana, do Bom Senso Futebol Clube, do Maradona e do Sócrates, para ficarmos em alguns.
Atletas dessa linhagem podem ser vistos num filme que está no YouTube, chamado ‘Os rebeldes do futebol’, cujo âncora é craque francês Éric Cantona, que ficou famoso ao dar uma voadora num torcedor fascista do Crystal Palace. O vídeo foca cinco jogadores que se notabilizaram pela atividade política. São eles Sócrates, Carlos Caszely o chileno que se recusou a cumprimentar o Pinochet, um africano, e dois da velha Iugoslávia que se posicionaram durante a guerra dos Bálcãs.
Posso agregar nessa turma também o tostão. Ele ficou conhecido como ‘anti-ditadura’ por dizer ser um absurdo o jogador de futebol ganhar o que ganhava, e professor ganhar tão pouco.
Contando nos dedos de uma mão
Um dia, telefonou-me o Daniel Cohn-Bendit, o Dany Le Rouge, do maio de 1968 francês, dizendo que viria ao Brasil para fazer um documentário sobre a Copa do Mundo de 2014. Ele pegou uma Kombi e saiu pelas periferias, entrevistando gente. Ficou muito interessante. Ao me entrevistar, perguntou: ‘O que explica o fato de o jogador de futebol brasileiro ser tão consciente politicamente?’ Eu perguntei de onde ele havia tirado aquilo, e ele falou sobre Sócrates, Afonsinho, Reinaldo, Paulo Cézar Caju… E eu respondi: ‘Continue e você não vai encher os dedos de duas mãos’. Daniel falou do Wladimir, do Casagrande, e parou por aí. Realmente não tinha mais. E me provocou: ‘Agora me diga 10 jogadores europeus’. E eu também não sabia dizer, porque não tinha.
Oportunismo dos clubes
Recentemente o Boca Juniors e o River Plate se uniram num movimento de denúncia da ditadura argentina, no aniversário do golpe de 1976. Ótimo! Mas por que esse movimento atual não aconteceu, por exemplo, quando Mauricio Macri era presidente? O Macri se fez na política via Boca Juniors, e ninguém no período dele contestou os aniversários do golpe na Argentina. Ou seja, aí também há um pouco de oportunismo. Os presidentes de clubes do Brasil bajularam Lula enquanto esteve no poder. Essa é a realidade do esportista, infelizmente. Não é muito diferente.
No caso do Brasil, há algo que não é exclusivo do esporte: a baixa consciência política do cidadão. Isso acontece ate mesmo no movimento sindical. Os sindicatos de jogadores na Argentina e no Uruguai são fortíssimos, fazem greve quando os clubes cortam salários. Se um clube da segunda divisão parar de pagar, a primeira divisão para inteira. Aqui, não. E por quê? Os caras não foram à escola, não têm curso secundário completo. Isso se expressa até no entendimento do jogo. Os jogadores argentinos e uruguaios são muito mais capazes de obedecer a um esquema tático do que os brasileiros.
Universo racista
Lamentavelmente, a miscigenação existente no Brasil não é um fator de democratização das consciências, quando nos comparamos a outros países. Tanto é que só agora, muito recentemente, a questão do racismo começou a aparecer para jogadores e treinadores brasileiros. E o futebol é um universo particularmente racista. Basta você olhar quais são os treinadores brasileiros negros. Qual treinador negro brasileiro dirigiu a seleção? Não há um cartola negro. Como treinador, tivemos o Didi, que foi à Copa do Mundo dirigir o Peru, mas não o Brasil. Depois do Barbosa, convocado entre 1949-53, levamos anos para termos um goleiro negro na seleção brasileira. Houve o Manguinha, em 1966, que se deu mal, e depois o Dida, nos anos 1990, que foi o primeiro titular desde o Barbosa.
A Democracia Corintiana
Os próprios integrantes da Democracia Corintiana não gostam nem um pouco que eu diga, e eu não digo para todo mundo, mas a primeira coisa a se levar em conta, e que não diminui em nada o movimento é que ele se deu com a anuência da direção do clube do Adilson Monteiro Alves, que depois se perdeu no governo Quércia. Hoje, o filho é presidente do Corinthians, em acordo com Andrés Sanchez. São da mesma corriola. Adilson foi o cara que chegou lá, pegou aquele grupo que estava na então série B do campeonato brasileiro a Taça de Prata, e disse: ‘Não sei como fazer, só sei que o que estamos fazendo está errado. Qual é o jeito certo?’ Começou-se uma discussão e despontaram Sócrates, Wladimir e Casagrande. O Magro era um médico com um pai de esquerda, que ele viu queimando livros no dia do golpe de 1964 e ficou muito marcado com isso. O Wladimir era um negro com uma capacidade de mobilização, de persuasão e de uma simpatia contagiantes. E havia um jovem revoltado chamado Walter Casagrande Júnior. Começou assim e a torcida impulsionou muito o movimento. A torcida do Corinthians sempre agiu de forma politizada. A primeira faixa aberta em público pela Anistia foi em um jogo do Corinthians contra o Santos, no Morumbi, com Chico Malfitani e Antônio Carlos Fon. Havia um clima favorável, que animou os jogadores e a direção do clube. Mas acabou. Como?
Sempre dou o exemplo de como uma caçada de patos mudou a História da humanidade. É o que Isaac Deutscher conta em seu livro sobre Trotsky. Diz ele que Trotsky, cansado, pediu férias para Lênin e foi caçar patos em uma região da Sibéria, em 1922. Mas pegou uma pneumonia e ficou por lá, ao mesmo tempo em que Lênin sofreu o primeiro baque do derrame. Enquanto Lênin ficava no hospital e Trotsky estava se recuperando da pneumonia, Stálin, que era subalterno do Partido Comunista da URSS, articulou para ser ele o número 1.
Ali no Corinthians, de alguma maneira, aconteceu uma coisa semelhante. A Democracia Corintiana ganhou uma eleição com sócios, mas perdeu a seguinte, com conselheiros, elegendo aquele Roberto, uma múmia, contra o Adilson. O Corinthians tinha acabado de ser bicampeão paulista e perdido um tricampeonato para o Santos num jogo lotérico, ou seja, estava tudo bem.
O ambiente do futebol não é apenas conservador, é profundamente reacionário, avesso a qualquer tipo de mudança. Isso tem uma influência direta do fim da Democracia Corinthiana.
Políticas públicas para o esporte
Os governos petistas não fizeram uma política de esporte democrática. Perderam uma oportunidade de ouro. Primeiro, porque não se olhou para o esporte como atividade num país nas condições do Brasil. Aqui, o esporte deve ser um fator de saúde pública, antes de mais nada. Segundo a OMS, a cada dólar investido em democratização ao acesso à prática esportiva, economizam-se três dólares em saúde pública. Nós tínhamos de ter investido em prática esportiva como fator de saúde. Num país com as dimensões do Brasil, com essa quantidade de jovens, você tiraria qualidade com a mão, e poderia entregar para a iniciativa privada cuidar disso.
A função do Estado era ter posto a população brasileira para fazer esporte, e criar uma política esportiva para o Brasil. O que não ocorreu, e eu os questionei por isso. A ideia de fazer campeões é absolutamente fora de contexto num país como o Brasil, embora, evidentemente, o campeão emule a população a fazer esporte. Tem esse aspecto, mas não se pode eleger como prioridade o ‘fazer campeão’ num país com os nossos problemas. Isso acaba, inclusive, sendo injusto com os atletas de alto rendimento, pois se exigia deles aquilo que não podiam dar. E muita gente dizendo: ‘Ah, o brasileiro, na hora H, treme. Quebra a vara da Fabiana Murer…’. Mas por quê? Porque toda a expectativa de vencer todos os nossos fracassos era colocada em cima deles. E eles eram poucos.
Revelação de craques
Tirando o futebol, que não precisava (e hoje precisa) ter grandes estruturas, os outros esportes sempre foram de geração espontânea no Brasil. O Guga, no tênis, apareceu porque o pai dele patrocinava, o chamado paitrocínio. No atletismo aparecia mais gente, por ser um esporte que exigia menos equipamento. Tivemos os campeões de salto triplo, Adhemar Ferreira da Silva, Nelson Prudêncio, João do Pulo. Podiam perguntar o que tem no Brasil para sermos bons em salto triplo, mas é o mesmo que perguntar o que temos para sermos bons em Fórmula 1. Manoel dos Santos, recordista mundial dos 100 metros livres na Olimpíada de Roma, em 1960, também era a exceção da exceção.
Olimpíadas e Copa no Brasil
O saldo, para nós, não foi positivo. As Olimpíadas são um evento que um país pode fazer para fechar uma política esportiva. Na hora em que uma Nação se transforma em olímpica, competitiva, aí se faz uma Olimpíada. Esse Carlos Arthur Nuzman, para enriquecer, convenceu Lula de que o evento seria o primeiro passo para fazer do Brasil um país poliesportivo. Não fez e não ficou nada. Ao contrário. Hoje, o bolsa atleta virou poeira, e os equipamentos estão todos sucateados no Rio de Janeiro. O que havia de instalações anteriores no Rio foi derrubado para se fazer Olimpíada, e não se fez nada no lugar. Foi um desastre do ponto de vista de legado. A festa foi linda, isso é inegável. A cerimônia de abertura e de encerramento, a Olimpíada em si transcorreu bem, mas nada justificava que o Brasil fizesse aquilo.
É diferente de uma Copa do Mundo. Tudo justificava que o Brasil, que tinha feito em 1950, voltasse a fazer em 2014, um país cinco vezes campeão do mundo. Mas tínhamos que ter realizado a Copa do Brasil no Brasil, não a Copa da Ásia no Brasil, ou a Copa da Alemanha no Brasil, construindo 12 estádios quando a própria FIFA pedia oito. Fizemos 12 e queríamos ter feito 16. Dona Marina Silva queria fazer um estádio em Rio Branco, no Acre! Não há o que justifique não terem usado o Morumbi para os jogos em São Paulo, em vez de construírem um estádio em Itaquera.
Os Estados Unidos da América não construíram nenhum estádio para fazer a Copa em 1994. A França construiu dois. Aqui, fizemos 12. Aqueles que estavam prontos derrubamos para fazer outros em cima. Maracanã, Mineirão… Derrubamos a cobertura do Maracanã, tombada pelo Iphan. Fizemos uma arena na Amazônia, em Manaus. Foi um absurdo. E, ainda, estimulou-se aquela coisa do ‘padrão FIFA’. Queremos uma escola padrão FIFA, um SUS padrão FIFA. Havia ali uma semente que redundou em tudo o que a gente sabe. Lula até hoje briga comigo quando falamos disso. Ele diz que não houve um tostão de desvio…”