POR UMA ECOLOGIA DECOLONIAL
Resenha do livro “Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho”, de Malcon Ferdinand (Ubo Editora)
Gustavo Belisário: Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e professor substituto do curso de Gestão Ambiental na Universidade de Brasília entre 2022 e 2023. Pesquisa o Plantationceno e intersecções entre a luta pela terra e questões de gênero, sexualidade e raça.
Ambientalismo é coisa de branco? Quando lutas por justiça climática são representadas nos grandes veículos de mídia, é comum que vejamos sujeitos brancos do norte global em frente às câmeras segurando seus cartazes como protagonistas. Ao mesmo tempo, a ideia de que a proteção do meio ambiente transcende classes, culturas, raças, por estarmos “todos no mesmo barco” da catástrofe climática, tende a apartar luta ambiental das lutas antirracista, feminista, de classes, por diversidade sexual e de gênero.
Pois é essa “dupla fratura” que o livro Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho, de Malcom Ferdinand, tenta desconstruir, concebendo uma ecologia que incorpore o antirracismo no centro de suas formulações. O autor chama de dupla fratura a dificuldade, por um lado, de movimentos como o afrofeminismo e o pensamento decolonial incorporarem as questões ecológicas e, por outro, da ecologia colonial invisibilizar os horrores da escravidão, do racismo e da colonização nas suas análises da crise ambiental. A despeito disso gerar pontos cegos nos movimentos que não conseguem pensar essas lutas em conjunto, Ferdinand defende existirem desigualdades nas responsabilidades dos movimentos para que isso aconteça: “Pelo lado ambientalista, a dificuldade provém de um esforço de invisibilização da colonização e da escravidão na genealogia de um pensamento ecológico, que produz, em contrapartida, uma ecologia colonial e, até, uma ecologia da arca de Noé” (p. 28).
O livro propõe repensar as bases coloniais da ecologia. Para isso, o autor propõe que olhemos três conceitos da luta ecológica por outro prisma. Ele propõe que o conceito de Antropoceno seja substituído pelos de Plantationceno e de Negroceno. Sobre a ideia salvacionista de uma Arca de Noé, alusão que habita várias intervenções ambientalistas, o autor defende que nos desvencilhemos dela mirando para o Navio Negreiro. E por fim, para Ferdinand, a práxis do movimento ambientalista deve substituir o que ele chama de caminho solitário pelo quilombo. Vejamos como o autor opera cada uma dessas ideias.
Antropoceno foi um termo inicialmente cunhado e trabalhado pelos cientistas Eugene Stoermer e Paul Crutzen para designar o tempo (ceno) em que o ser humano (antropos) passou a ser um fator geológico, capaz de mudar os ciclos da Terra. A despeito do termo ser uma importante inflexão científica, para Ferdinand o conceito de antropoceno corrobora com os apagamentos de diversos povos que resistiram à colonização e a consequente destruição predatória. Essa maneira de ver a natureza como recursos a serem explorados é um habitar colonial de origem branca e europeia, e, não evidenciar essa distinção é invisibilizar indígenas, quilombolas, povos da floresta e demais povos originários de diversas partes do mundo.
Para se desfazer dessa indistinção entre o conjunto da humanidade e essa maneira predatória de habitar o mundo, Ferdinand prefere o termo Plantationceno, cunhado por Anna Tsing e Donna Haraway. Esse conceito faz referência às economias agroexportadoras que estabeleceram os países do Sul global como lugares de produção incessante de mercadorias: algodão, café, açúcar, banana, cacau, etc. Historicamente, a plantation foi uma tecnologia difundida na colonização que combinava a domesticação de plantas e animais para a produção agrícola de um tipo monocultura, enraizando uma cultura escravista que explorou milhões de pessoas trazidas do continente africano e promovendo genocídio dos povos indígenas e destruição ambiental. No Brasil, podemos pensar na figura do engenho de açúcar como essa síntese de um habitar colonial difusor do racismo, do colonialismo e que, concomitantemente, produzia profundos desequilíbrios ecológicos.
Para Ferdinand, Plantationceno expressa uma política mais acurada de marcar o tempo geológico, pois coloca no centro da crítica essa maneira colonial de habitar o mundo que homogeneíza e esquadrinha espaços, destruindo as diversidades epistemológicas, biológicas, químicas, físicas e cosmopolíticas. Em um só termo, Plantationceno condensa a crítica da desumanização, subalternidade e exploração do negro; e da destruição de centenas de povos, línguas, culturas, regimes alimentares, relações com as águas, e com os animais. Assim, desloca-se uma história única do Homem implícita no Antropoceno ao mesmo tempo em que se distribui de maneira mais justa as responsabilidades da destruição da natureza. Segundo Ferdinand: “Os genocídios dos ameríndios, a escravização dos africanos e suas resistências são, portanto, compreendidos na história geológica da Terra e do tempo” (p. 66 e 67).
A imagem cristã mítica da Arca de Noé também é alvo de críticas do autor a partir de uma perspectiva antirracista e decolonial. A alusão à Arca construída para enfrentar o dilúvio está presente em diferentes versões no movimento ambientalista. Em todas elas, a aposta da Arca de Noé é no abandono dos pertencimentos sociais e comunitários em prol de uma ecologia global, que também desterritorializa de maneira colonial. A corrida por energias renováveis – seja de parques eólicos ou produção de urânio para energia atômica – é um dos exemplos dados pelo autor, dado que muitas vezes promove o desterro de populações indígenas sob a justificação de “um bem maior” de salvamento do mundo. Esse ambientalismo promove uma cidadania ecológica global que não guarda os vínculos com ecologias e mundos comunitários.
Malcom Ferdinand nos sugere a pensar em outra metáfora: a do navio negreiro. O autor nos conta que nas embarcações que faziam o comércio de negros escravizados através do Atlântico, era comum que existissem cláusulas nos contratos que previam a perda de uma porcentagem da “mercadoria”, que poderia aumentar quando ciclones e outras condições climáticas desfavoráveis fossem enfrentadas. Durante tempestades, para não colocar em risco a tripulação branca, os operadores do tráfico negreiro se livravam dos corpos negros para manterem a estabilidade dos barcos. Não era incomum – e Ferdinand nos traz alguns exemplos históricos disso – que os operadores do navio inventassem nos relatos de viagem condições climáticas desfavoráveis para justificar os corpos jogados no mar no percurso. Com essa alusão, Ferdinand nos convida a não reproduzirmos o racismo ambiental e a naturalização da perda de certos corpos nas crises ambientais ou de fazer coro a ideologias neomalthusianas que entendem o genocídio como ferramenta para salvar “nosso barco comum”.
A práxis sugerida por Ferdinand é do aquilombamento, isto é, confiar na convivialidade e no pertencimento comunitário como uma resposta radical à crise climática em que nenhum corpo deve ser descartado em nome do futuro da humanidade. Os quilombos eram formados por pessoas escravizadas que fugiam do sistema da plantation para reconstruir outras relações com a terra. Nos quilombos, os ex-escravizados construíam vínculos com as plantas, águas, espíritos, animais e outros povos que já estavam lá, sem reivindicar uma hierarquia de quem estava “voltando à terra”. Com esse respeito a quem já está por séculos construindo esse tipo de habitar, os brancos têm muito o que aprender que o caminho “de volta para terra” não tem por protagonistas quem dela se desvinculou.
A ecologia decolonial de Malcom Ferdinand reafirma o compromisso que o ambientalismo brasileiro tem que ter com a luta anti-racista e com os movimentos sem-terra, indígena, de pessoas atingidas por barragens, mulheres camponesas, e quilombolas. Nos afastar da plantation é não ter como centro de sua pauta anti-especista a perseguição às religiões de matriz africana e seus sacrifícios animais. É não apostar no neomalthusianismo que naturaliza os deslizamentos de terra nos morros de grande cidade deixando milhares de pessoas sem casa. Que sigamos a luta por um ambientalismo que também descolonize nossas maneiras de pensar e viver a relação com a Terra.