Danilo Moura
Escrever sobre o racismo no Brasil é uma tarefa intrigante, em parte por ser um tema já amplamente debatido, remoído e de aparentes obviedades, mas também por ser uma questão que teimam em colocar no campo das subjetividades pessoais e sempre caindo no velho “não é bem assim” ou “vocês vêm isso em tudo”. O fato é que o falar sobre o racismo em nosso país é tão cansativo quanto necessário e a cada vez que se fala é necessário “repassar” conceitos básicos e triviais, quase como se tivesse que ensinar ao seu filho a engatinhar toda vez que for sair de casa, mesmo ele já tendo corrido a casa inteira.
A primeira coisa que precisa ser dita, praticamente mastigada e regurgitada para compreensão, é que o racismo não pode ser reduzido ao preconceito de cor ou mesmo de raça, precisa ser compreendido como produto de quase quatro séculos de escravização dos povos africanos, ao longo da etapa de acumulação do capital no estágio mais primitivo. O que significa dizer que é parte constitutiva da identidade nacional, assegurado pela perpetuação de relações sociais baseadas na assimetria entre brancos e não brancos, o “branco” como padrão e todos os demais como negação desse padrão, estabelecendo e protegendo privilégios cotidianos e quase invisíveis, de tão naturalizados, ao primeiro grupo.
Compreender que racismo é, necessariamente e invariavelmente, um produto do processo de escravização e parte orgânica da sociedade brasileira, deve ser suficiente para uma segunda constatação que dela deriva, quase que instintivamente, a de que não é possível racismo reverso ou qualquer outra coisa do gênero, tampouco a afirmação de que o racismo parte ou deriva dos próprios negros.
Seria preciso inverter completamente as relações sociais, séculos de exploração econômica, negação de valores estéticos, religiosos e epistemológicos, para somente daí acreditar na possibilidade do tal “racismo reverso”.
Negação de direitos
Em consequência das constatações anteriores devemos chegar a uma terceira que teima em se esconder e nunca ser debatida que é a “branquidade” e seus privilégios. Ela é tão perversa quanto a negação de direitos e a opressão infligida a negras e negros e os privilégios “naturais” concedidos às brancas e aos brancos, que se perpetuam há séculos, criando distorções econômicas, sociais e de direitos. Em sua obra Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo, Carlos Moore reflete sobre isto “Nas sociedades multirraciais, é por intermédio do fenótipo que se organiza a gestão dos recursos. Na medida em que o racismo visa ejetar esse ‘Outro Total’ do circuito de usufruto dos recursos de um espaço definido, garantindo a marginalização completa, ele almeja a substituição do Outro, a erradicação mediante à assimilação ou qualquer outra forma mais radical. Na origem, o racismo constituiu-se e consolidou-se por intermédio do exercício da agressão, da conquista, da dominação ou do extermínio de qualquer agrupamento humano existente fora dessas redes. Assim, o racismo passa a ser nada menos que uma visão coletiva totalizante, que garante a gestão monopolista e racializada dos recursos, sendo a população-alvo considerada como parte integrante desses recursos”.
O silêncio dos brancos de esquerda é tão perverso quanto os gritos racistas do bolsonarismo, exemplo da defesa dos privilégios brancos levados ao extremismo, e se somam à manutenção do racismo. A branquidade é um lugar de vantagem estrutural na dominação racial, um ‘ponto de vista’, um lugar a partir do qual se vê e vê os “outros” e as ordens nacionais e globais. Superar o racismo implica superar os privilégios da branquidade e isso, necessariamente, por uma revisão de comportamento da militância, em uma autovigilância permanente.
Não se trata de mi, mi, mi,
Por conseguinte, a esta altura já devemos constatar que o racismo não é uma questão para ser enfrentada e resolvida pelos negros, porque não se trata de “dorzinha”, “mi, mi, mi”, ou falta de autoestima. Como tudo que é estrutural, somente pode ser superado pelo enfrentamento de contradições e encontrando nas manifestações as formas de resistência e, por fim, de superação.
O branco de esquerda tem papel nessa luta e não é de espectador. Para o nosso campo a luta contra o racismo deve ser uma tarefa árdua e um desafio cotidiano para toda a militância, independentemente do lugar no espectro da racialidade. Antes de qualquer conclusão precipitada não há nessa posição qualquer tentativa de culpabilidade sobre o que antepassados brancos fizeram, mas o reconhecimento de que isso construiu os privilégios aos quais todo homem branco e mulher branca estão devidamente sentados e usufruindo de uma magnânima vista de uma sociedade racializada e que funciona a seu favor.
Recentemente, o centro do capitalismo mundial foi abalado por uma tentativa de golpe, com a ocupação do Capitólio dos EUA no dia em que seria feita a homologação da vitória de Joe Biden. O que saltou aos olhos foi a diferença no contingente policial e no tratamento destes aos manifestantes em comparação ao que foi visto nas manifestações do “Black Lives Matter!” (Vidas Negras importam!). A sobreposição das imagens deixa evidente para qualquer um quem é “mais perigoso” e quem não.
Sim, o privilégio da branquidade faz com que manifestantes desarmados defendendo a vida sejam vistos como mais perigosos do que homens brancos armados que invadem o Capitólio construindo um cenário de atentado terrorista.
O preconceito nos SHOPPINGS CENTERS
Vale, ainda como exemplo, lembrar os rolezinhos de 2014, em que a simples presença de corpos negros em determinados ambientes, nesse caso os shoppings centers, aciona um verdadeiro sistema de segurança para proteger e salvaguardar o espaço “naturalmente” destinado para o grupo racial e social privilegiado com o usufruto deste. A branquidade é quem, silenciosamente, alerta a todos no ambiente que tem algo errado, algo está fora do lugar, quem avisa à “gente de bem” que esse é o tipo que não cabe naquele espaço; portanto, enfrentar o racismo é enfrentar seus próprios privilégios.
Ainda ilustrando, a branquidade estabelece, na mídia e no imaginário social, principalmente a partir da linguagem, a diferença entre o traficante que tinha 200g de maconha e o jovem estudante portando 3kg de cocaína, racionalizando o racismo e promovendo uma falsa sensação de legítimos ao encarceramento e genocídio da população negra. Por tudo isso, não é um exagero afirmar que as populações negras encarceradas são formadas por presos políticos, ou assassinados por motivação política, no Brasil ou onde quer que seja, em vista da condição que o escravismo racializado nos legou.
Vale resgatar que em 1978, na oportunidade da fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR); um grupo de “presidiários” de São Paulo, manifestaram-se do seguinte modo: “Do fundo do grotão, do exílio, levamos nosso sussurro a agigantar o brado de luta e liberdade dado pelo MNUCDR. Nós, presidiários brasileiros, contamos com nosso grupo unificado contra a discriminação racial. E aqui estamos no lodo do submundo, mas dispostos a dar nossos corpos e mentes para a ação da luta, de nunciar também a discriminação dentro do sistema judiciário. Aqui, no maior presídio da América do Sul. (…) Também tem o seguinte: Se (direito humano) for algo do qual dependemos da sociedade branca para nos conscientizar, algo que se consiga com docilidade de servos, não apresente!… Já estamos fartos de palavras, demagogias, por isso somos um grupo, por isso gritamos sem cessar. Somos negros, somos netos de Zumbi. (E vovô ficaria triste, se nos entregássemos sem lutar…)’’
Estado embranquecedor
Engana-se quem avalia que o Estado brasileiro é ausente e que nunca teve política pública relacionada a essa questão. O que acontece é que o Estado sempre agiu para manter o status quo dos brancos e, inclusive, com diversas tentativas de “embranquecer” a nação. Basta para isso correlacionarmos o genocídio com as levas de imigrantes europeus.
O Brasil, depois de quase quatro séculos de escravização de povos africanos e descendentes, após uma abolição incompleta que não concedeu a cidadania e/ou integrou os negros e negras à sociedade, sem realizar referência ao genocídio dos povos originais, ainda não consegue reconhecer os efeitos nefastos do que significou esse período e, por isso mesmo, é incapaz de fazer um acerto de contas com a história. Ainda se fala do racismo como se folclore fosse, homenageia-se escravocratas e se criminaliza aquelas e aqueles que por sentirem na pele as mazelas, levantam-se insurgentes contra as desigualdades.
A esquerda precisa inaugurar um novo período em que o privilégio da branquidade e seja combatido com a mesma voracidade que combate a exploração capitalista e, portanto, incorporar a ideia de que “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, logo, enfrentar os próprios privilégios e se colocar como aliada das negras, negros, povos indígenas e demais segmentos racialmente excluídos.
Há no movimento negro quem pense que “os brancos podem ficar do nosso lado nas questões pequenas, mas jamais nas fundamentais”. Entretanto, também há quem pense que é na superação da branquidade e dos privilégios que dela derivam que encontramos o tal “lugar de fala” de boa parte da esquerda e do campo progressista.
Concluo esse brevíssimo artigo com um alerta às companheiras e aos companheiros da dita esquerda branca, meio clichê e até repetida: no Brasil a revolução será negra ou não será, e como bem dito por um intelectual negro: “se a esquerda não é negra, sejamos nós a esquerda’’.
“(…) Pois o desrespeito das elites pensantes brasileiras com as coisas do negro sempre foi a marca maior da ideologia deste país. As elites pensantes brasileiras, como subsidiárias do pensamento europeu/ estadunidense, durante séculos vêm produzindo pilares ideológicos que dão sustentação ao preconceito, ao racismo, à discriminação que sempre se viu e se vê no Brasil”
Fernando Conceição