Fábio Felix
A longa crise política e econômica pela qual o Brasil vem passando está forçando um rearranjo de poder entre forças sociais – contexto em que é essencial fazer uma análise sobre o aparente crescimento do conservadorismo no país. Nos espaços de representação legislativa, não há dúvidas de que os segmentos ligados às correntes do fundamentalismo religioso e penal têm tido um grande protagonismo na agenda política brasileira. O Congresso Nacional eleito em 2014 foi apontado por diversos analistas como um dos mais conservadores desde a ditadura militar. Enfim, é preciso reconhecer o crescimento de forças políticas reacionárias durante os 13 anos do ciclo petista à frente do governo federal brasileiro.
Esse fenômeno não pode ser explicado de forma rasa e descolado da conjuntura internacional. O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff demonstrou além da ampla indignação com os inúmeros atos de corrupção praticados nas gestões petistas uma surpreendente capacidade de mobilização de segmentos sociais vinculados à extrema-direita brasileira. Movimentos como Revoltados Online ou Movimento Brasil Livre foram protagonistas na convocação dos atos pró-impeachment, que contaram inicialmente com um pálido colaboracionismo dos partidos de centro-direita.
Não há como negar, portanto, o surgimento dessas novas referências políticas conservadoras e fundamentalistas, que infelizmente contam com larga influência de massas. O impeachment acabou sendo um laboratório para esses novos atores políticos, mas a agenda legislativa brasileira, liderada pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, já dava indícios muito evidentes da hegemonia conservadora no âmbito no parlamento.
O fortalecimento deste campo ideológico não ocorre de forma isolada no Brasil. Pelo contrário, existem elementos muito fortes de uma conexão internacional desse processo. Em artigo sobre a extrema-direita escrito em 2015, o professor Michael Löwy apontava a existência de uma ascensão conservadora na Europa impulsionada por ideologias oriundas de diferentes raízes. Para Löwy, as principais fontes deste movimento eram: (a) o ressurgimento do nazismo orgânico; (b) um novo modelo difuso de nazismo/fascismo; e (c) o fortalecimento de grupos com forte conotação racista e xenófoba, mas sem vínculo aparente com as ideologias de ultradireita do século XX. Em sua análise, o crescimento se mostra ainda mais assustador do que em 1930, por não haver nações adeptas de ideologias de extrema-direita com liderança global.
Uma das explicações para esse fenômeno é a falência dos projetos de poder dos partidos socialistas ou socialdemocratas europeus, que não conseguiram os resultados prometidos de enfrentamento às desigualdades sociais e “esqueceram” tantas outras promessas econômicas e políticas de sua agenda original, por terem em algum momento optado pela conciliação com a agenda do capitalismo e os grupos sociais que o sustentam. O papel conciliador, ou seja, de construção de uma suposta paz mediada entre os campos que paradoxalmente estruturam o capitalismo não foi capaz de entregar o que prometia para nenhum dos lados.
Com isso, o posicionamento da burguesia europeia toma outro rumo e o financiamento aos grupos e partidos de extrema-direita começa a acontecer de forma organizada pelos setores do grande capital: rentistas, multinacionais e banqueiros. O que significa um comprometimento militante das elites internacionais em torno de um projeto de acumulação, nem que isso signifique abrir mão de princípios democráticos e de maior liberdade nos costumes.
O envolvimento organizado de segmentos religiosos também tem grande importância. No caso da Europa, diferentemente do Brasil, Löwi enxerga na direita católica o maior protagonismo político neste processo. Os dados são alarmantes. Em 2014, a extrema-direita alcançou entre 25% e 30% nas eleições de Reino Unido, Dinamarca e França e, assim como no Brasil, tem conseguido influenciar fortemente a centro-direita e outros campos ideológicos mais moderados. Vale aqui uma provocação de que o suposto clima de insegurança social e a islamofobia têm atraído para os discursos da extrema-direita, inclusive parte dos setores progressistas ou de esquerda.
Nos Estados Unidos não é difícil perceber que a ultradireita do Partido Republicano tem crescido substancialmente no último período. A vitória em eleições majoritárias, a ocupação de cargos estratégicos no Senado e agora a indicação majoritária de Donald Trump como candidato à Presidência do país são demonstrações disso. Na luta para alcançar a nomeação, Trump não fez questão de disfarçar que seu programa vai contra os interesses de latinos, mulheres e negros, além de abusar das referências discriminatórias em seus discursos.
No caso do Brasil, o metabolismo reorganizativo da extrema-direita guarda algumas peculiaridades. Aqui o papel protagonista do fundamentalismo religioso é dos setores dirigentes das igrejas neopentecostais, que tomaram a direção de diversos partidos políticos e adquiriram meios de comunicação próprios, o que sinaliza quais rumos esse processo pode tomar. Essas lideranças políticas evangélicas desenvolveram uma agenda político-ideológica e escolheram como seus maiores inimigos os LGBTs e os movimentos feministas.
O fundamentalismo religioso brasileiro construiu uma forte agenda conectada com as proposições do conservadorismo internacional, como o enfrentamento do que denominam “ideologia de gênero” como uma das principais pautas. O ataque sistemático ao Estado laico, a “satanização” das posições ideológicas de esquerda e a tentativa de limitar a compreensão de família são suas principais proposições. Infelizmente, uma das táticas utilizadas tem sido a difusão de informações e dados falsos. Uma das maiores vítimas deste processo é o deputado federal Jean Wyllys do PSOL/RJ, que sofre diversos ataques caluniosos nas redes sociais.
No conservadorismo brasileiro há também uma forte integração do segmento religioso com os representantes do fundamentalismo penal. A conhecida “bancada da bala” conta com representações da extrema-direita da segurança pública e apresenta proposições que potencializam a hiper militarização das polícias, relativizam as denúncias de violações de direitos, tentam expandir o armamento na população, defendem uma reforma drástica no Código Penal para aumentar punições e, por fim, escolheram como sua principal agenda a redução da idade penal.
O forte fisiologismo presente no modelo político brasileiro também contribui para o fortalecimento desses setores. Mesmo no atual contexto de impeachment, ainda é comum em diversos âmbitos a aliança dos partidos de centro-esquerda com os principais partidos representantes do fundamentalismo religioso ou penal. Na mesma coligação é possível eleger um representante defensor de direitos humanos ou um pastor fundamentalista. É bom lembrar que até 2010, o vice-presidente da República era José Alencar, do PR (um partido fortemente vinculado aos interesses políticos da Igreja Universal). E em 2013, o PT fez um acordo na divisão das comissões temáticas da Câmara dos Deputados que deu ao pastor Marco Feliciano, a Presidência da Comissão de Direitos Humanos da casa.
Portanto, não é possível esquecer a responsabilidade do modelo de coalizão e governabilidade liderado por Lula e o PT na consolidação da extrema-direita. Esses segmentos parasitaram os primeiros oito anos do mandato do governo federal, participando da base de apoio e compondo o Ministério em cargos estratégicos. As alianças estabelecidas com quase todos os partidos tradicionais da política brasileira contribuíram significativamente para a rearticulação do campo político de extrema-direita no Brasil.
Löwy aponta, contudo, que diferentemente do caso europeu, a extrema-direita brasileira tem uma ligação menor com as ideologias fascistas clássicas e a existência do neofascismo ocorre de forma marginal. Para ele dois pontos são mais significativos na extrema-direita brasileira: a apropriação da luta anticorrupção, com forte apelo de massas, e o saudosismo comemorativo com o militarismo e a ditadura. O retorno das disputas de narrativa sobre a ditadura militar e o silêncio conivente de antigos perseguidos e torturados políticos é ensurdecedor.
Com isso, a reorganização conservadora no Brasil passa pela difusa luta anticorrupção como bandeira geral, mas esconde atrás disso uma ideologia repressiva, o culto à violência policial, a criminalização dos movimentos sociais (Lei Antiterrorismo, Lei Geral da Copa), combate aos projetos de gênero, enfrentamento aos direitos LGBTs, tentativa de desconstrução da existência de racismo e forte ataque as referências históricas da esquerda.
Esta reflexão deve contribuir para os desafios de reconstrução da esquerda brasileira. A necessidade de superação do projeto petista e a construção de uma nova alternativa progressista no Brasil passam necessariamente pela inauguração de uma nova cultura política de diálogo com a sociedade. Vladimir Safatle, em artigo publicado na revista “Movimento” em 2016, afirma que a hipervalorização do processo afirmativo da extrema-direita e do conservadorismo pode paralisar a capacidade de avaliação das esquerdas, bem como a projeção de alternativas futuras. Para ele, este seria um caminho ruim de incentivo à mobilização.
Para Safatle, a ideia de que estaríamos sendo tomados por uma onda conservadora avassaladora e de que nossa única tarefa seria enfrentá-la esconde um pressuposto fundamental: no lugar em que a direita cresce e ganha força, há uma esquerda que fracassou. Dessa forma, é um erro no processo de reorganização da esquerda socialista brasileira mobilizar as pessoas pelo medo. Nosso desafio é enfrentar esse cenário difícil com a construção de um novo projeto político de esquerda que seja crítico, autocrítico e absolutamente coligado com as pessoas.
Fábio Felix é mestre em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB), professor da Universidade Católica de Brasília (UCB) e é Secretário-geral do PSOL/DF.