Um movimento para o socialismo e a liberdade
em saúde deve ser dirigido aos setores mais vulneráveis da população, deixando a assistência à saúde dos demais ao encargo do setor privado, seja mediante Planos de Saúde ou não. Entre essas agências, destaca-se o Banco Mundial (2019). Ao evidenciar as dificuldades da cobertura da APS em áreas mais pobres e distantes o Banco sugere, simultaneamente, a definição de um pacote de benefícios a ser coberto pelo SUS e uma “cobertura universal” formada por uma saúde pública voltada aos mais pobres e por uma saúde privada, dirigida aos demais segmentos da população. Chama atenção que, ao final do powerpoint apresentado na reunião da CIT, constem agradecimentos a dois técnicos dessa instituição, evidenciando a participação na elaboração do projeto. Isso, por si só, já seria tema para intensa discussão, pois implica ingerência de uma instituição internacional em questões nacionais.
Transferência de recursos
Há outros aspectos importantes, como a remuneração por desempenho e por usuário cadastrado. Isso substitui as necessidades em saúde da população pelo desempenho, cuja base é sempre a otimização dos recursos. Além disso, com a nova política de transferência de recursos, abandona-se o critério da equidade, que, apesar dos problemas, está presente no Piso da Atenção Básica (PAB) fixo, que transfere recursos de acordo com a população do município. Dirigir a APS prioritariamente aos setores mais vulneráveis da população, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não é garantia de que esses continuem a usufruir de ações e serviços de saúde no futuro. Se alguma garantia é possível, essa deriva do fato de se reconhecer a saúde como um direito e, portanto, um dever do Estado, sem que seu acesso seja mediado pela renda do beneficiário. Essa proposta, como dito, está em linha com o que é proposto pelo Banco Mundial e pressupõe o fortalecimento dos Planos de Saúde e da saúde privada em geral. Não é à toa que hospitais e clínicas de análise laboratoriais se situem na quarta posição do ranking de fusões e aquisições no primeiro semestre de 2019 (KPMG, 2019) e que o interesse do setor privado no SUS esteja aumentando para além da gestão via Organizações Sociais e para além de compor a rede hospitalar conveniada. Toda atenção deve ser dada aos desdobramentos desse “novo modelo de financiamento de APS” e da possível desindexação dos recursos para a saúde pública.
Para pensarmos em um movimento de sexualidade e gêneros dissidentes para o socialismo e a liberdade, precisamos voltar no mínimo 50 anos antes da Revolta de Stonewall. Ela é considerada por muitos, não por acaso, o marco zero da luta organizada das dissidências de sexualidade e de gênero (DSG)1 . Em 28 de junho de 1969, as bichas, sapatões e travestis de Nova York resolveram enfrentar a violência policial. Mas a história da luta organizada por direitos para as dissidências de sexualidade e gênero começou no mínimo 51 anos antes dos acontecimentos do bar Stonewall Inn. Nós não reconhecemos esses acontecimentos como marco zero de nossas lutas. Em 1918, segundo ano da Revolução de Outubro, houve pela primeira vez na história um Estado industrializado que descriminalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, aprovava a socialização dos trabalhos domésticos e o direito ao divórcio. Os primeiros anos após a tomada de poder pelos comunistas deixava um recado claro de combate duro ao patriarcalismo.
Everton Vieira
Precisamos construir uma militância de dissidentes de sexualidade e de gênero que seja anticapitalista e com uma tática clara para tornar a classe trabalhadora a nossa principal aliada na luta contra a contra a opressão. Essa aliança ampla não pode se curvar às ideias liberais e deve entender tais demandas como parte indissociável da PAULO PINTO/FOTOS PÚBLICAS democratização da sociedade.
Vida curta
Infelizmente, esse período em que a Revolução socialista dava as mãos a um novo momento histórico para as DSG não teve vida longa. No final da década de 1920, havia muitas coisas em disputa na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Uma delas foi a promoção incansável do nacionalismo russo, a consolidação da orientação do regime de socialismo em um só país, acabando com a perspectiva de revolução internacional, e também aos avanços no combate ao patriarcado. De um lado tínhamos fortes defensores da lei soviética declarando que o Estado e a sociedade não deveriam interferir em questões sexuais, exceto em casos de envolvimento com menores de idade, uso de violência ou coerção. Importantes nomes da vanguarda bolchevique e referências para os estudos feministas marxistas – as revolucionárias Clara Zetkin e Alexsandra Kollontai eram defensoras ferrenhas dessa tendência.
Chamaremos de dissidências de sexualidade e gênero (DSG) todas as sexualidades e gêneros que fujam da norma heterossexual e cisgênero, pois achamos que uma sigla, por mais extensa que seja, nunca será capaz de representar as tantas formas de ser, estar e se relacionar
Do outro lado, lutando contra a manutenção da descriminalização do que eles chamam de sodomia, tinham as forças políticas ligadas a Josef Stalin, que falavam abertamente contra as políticas dos primeiros anos da Revolução de Outubro. Foi na URSS, sob o stalinismo que, por meio do Artigo 175, essas forças restabeleceram a perseguição sistemática a população LGBT como política de Estado e criminalizaram novamente a “sodomia”, ou seja, todas as identidades e sexualidades marginalizadas. As justificativas eram um punhado de teorias reacionárias e patriarcais e a covardia de associar as sexualidades e identidades dissidentes ao fascismo. Dessa forma, bissexuais, gays, lésbicas e transgêneros passaram a ser para o stalinismo tão repugnante quanto os fascistas. Máximo Gorki, um aliado declarado de Stalin, em seu artigo “Humanismo proletário” argumentou: “Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade tem sido declarada delito social e é severamente castigada. Na Alemanha já existe um lema que diz: “Erradicando os homossexuais, desaparece o fascismo”.
Tabus e ataques
No chamado mundo liberal as coisas iam de mal a pior. Perseguições violentas, prisões, torturas com choques autorizadas como a “cura gay” daquele tempo e até castrações como no caso mundialmente conhecido de Alan Turing, na Inglaterra. Tantos anos de tabus e ataques sistemáticos às formas de sexualidade não reprodutoras e todas as normatizações que se estabeleceram por meio disso, tornam o mundo um lugar extremamente violento para todas as sexualidades e gênero dissidentes. Esse resgaste histórico serve para fazermos um balanço real, sem paixões ou distorções: a disputa sobre a liberdade das relações de sexualidade e gênero era polêmica não só no mundo liberal capitalista, mas também entre os comunistas. Foram os comunistas os primeiros a produzirem políticas em um Estado moderno que protegessem essas populações do reacionarismo patriarcal preservado e cultivado nas sociedades capitalistas. Apesar dos avanços e recuos, o movimento socialista tornou-se novamente, com o enfraquecimento da influência stalinista e de tudo que ela representa, fundamental na luta antipatriacal e, por consequência, na defesa dos direitos e da vida da população LGBT.
Quem são nossos inimigos?
Quando vivências subjetivas se tornam inquestionáveis, temos um problema. A questão não é e nunca foi levar em conta as “vivências”, mas usar essa subjetividade como uma verdade sacrossanta que precisa ser religiosamente acatada. Deixamos a reflexão: se um senhor reacionário que vivenciou a ditadura militar me falar que esta foi ótima, preciso então “respeitar sua vivência”? É certo que as vivências são fatores a serem considerados em qualquer análise, mas considerá-las como verdades puras e inquestionáveis é um erro. Falar disso é mexer em vespeiro na militância. Há um grupo que decretou: “Não fale da opressão que você não sofre!”. Essa é uma “lógica” perversa para a construção de um projeto popular, pois é individualista e nada tem a ver com a esquerda socialista. Nosso “local de fala” não é o nosso lugar para falar, mas a partir de onde a gente fala e o local de onde falamos está contaminado para o bem e o mal por nossas subjetividades. Para rebater, por exemplo, o discurso homofóbico, alguns militantes acabam escolhendo o caminho mais fácil e igualmente despolitizado de atacar o falante no lugar da fala. Depois que nos acostumamos a usar características físicas, comportamentais ou culturais para dizer quem pode falar do que, essa prática foi se generalizando e se propagando, sendo invocada até contra as falas sinceras e empáticas. Isso gerou rachas e até “privatizou” certos assuntos para determinadas pessoas, uma evidente influência de ideias liberais dentro de espaços que reivindicam o socialismo. Há uma confusão entre visibilidade e protagonismo com autopromoção, nesse ponto parece que o individualismo liberal já tomou conta. É preciso aprofundar a discussão sobre os limites da política de representatividade e o equívoco em criar ou reforçar categorias estáveis de opressão e identidade, ou então deixaremos a guarda baixa perante acusações de deturpação cabal da representação. Se nós assumimos posições casuísticas, abrimos espaço para contradições concretas, como são os casos nos quais a direita usa pessoas negras, de periferia, mulheres e dissidentes de sexualidade e gênero e as manipulam contra as lutas de combate as opressões. Criar categorias estáveis de opressão que detém a “verdade”, apresentando vivências “inquestionáveis” e “capazes” de produzir as mesmas sínteses, deturpando o conceito de “local de fala” para privatizar a fala e decidir quem pode falar sobre o quê, é a inadmissível interdição pura e simples do debate. É um atraso que precisa ser combatido de forma organizada e contundente.
Articular a nossa classe como principal aliada
É preciso entender o processo de consciência e a tarefa na construção do poder popular e as limitações da classe, ajudando a superá-las. Não precisamos de falas destrutivas, que surgem a partir de um discurso autoritário, banhado em uma interpretação equivocada, tentando substituir o argumento lógico por um ataque puro ao falante. O conceito de desconstrução do argelino Jacques Derrida fala exatamente sobre como produzir deslocamentos sem partir de uma fixidez de mim e do outro. Se não há uma preocupação em entender e ajudar a superar as limitações e preconceitos impostos estruturalmente à classe trabalhadora, então não há compromisso com a luta de classes, tampouco com a construção de um partido de massas. Tal melindre pequeno-burguês é contraproducente e acaba engessando a possibilidade de avançarmos enquanto classe e não enquanto indivíduos. Portanto, precisamos construir uma militância de dissidentes de sexualidade e gênero que seja também anticapitalista e com uma tática clara para tornar a classe trabalhadora a nossa principal aliada na luta contra a opressão, que não se curve às ideias liberais e entenda a diferença entre instituições que elaboram o discurso contra dissidentes de sexualidade/gênero e trabalhadoras e trabalhadores que são meros reprodutores desse discurso. Não podemos cair no erro de fortalecer uma militância liberal, incapaz, por exemplo, de se posicionar contra o imperialismo e em defesa da soberania do povo venezuelano. A luta pelos direitos das dissidências de sexualidade e gênero só será plenamente vitoriosa quando se tornar uma luta de todos e todas as oprimidas contra a opressão capitalista. Por isso é preciso que a militância socialista esteja disposta a disputar o vivo e enérgico movimento conhecido como “LGBT” para uma estratégia revolucionária e socialista. Portanto, devemos ser radicais nos propósitos e amplos no método.