Roberto Robaina
Quando os operários tomaram o poder na cidade de Paris em 1871, Marx anunciou que, pela primeira vez na história, surgia a forma política, enfim descoberta, para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho. Nascia a Comuna de Paris, “o governo da classe operária, produto da luta de classes da classe produtora contra a classe apropriadora” (MARX, p.59).
A Comuna, que se propôs a fazer da propriedade individual uma verdade, socializando os meios de produção, a terra e o capital, foi formada por conselheiros municipais com mandato revogável, tendo maioria operária e a remuneração dos servidores públicos e dos dirigentes políticos não superior aos salários dos operários. Garantiu a unificação dos poderes Executivo e Legislativo e o armamento de todo o povo. O poder estatal anterior com o Exército, a polícia, a burocracia, o clero e a magistratura permanente foram destruídas. O velho mundo estava tendo convulsões de raiva quando a bandeira vermelha passou a tremular no Hôtel de Ville. Era o escândalo diante do “irrealizável” comunismo.
A excepcionalidade, porém, teve dois meses de duração. Os representantes do escravismo armaram a contrarrevolução. Sob o comando da burguesia de então, as tropas do exército de Versalhes invadiram Paris e massacraram dezenas de milhares de resistentes. Foi uma derrota por um longo período.
Trinta cinco anos depois, na Rússia czarista, o “irrealizável” voltava a assombrar a ordem capitalista. Ainda era um ensaio geral. Assim ficou conhecida a Revolução Russa de 1905. Mas nela já atuavam os militantes que construiriam o instrumento que, 12 anos depois, dirigiria a Revolução de Outubro, estabelecendo o regime dos Conselhos de Operários, Camponeses e Soldados: o Partido Bolchevique. Os sovietes (conselhos no idioma russo), que aparecerem pela primeira vez na Rússia em 1905, voltaram a surgir em 1917.
Tais organismos não foram inventados pelos bolcheviques, assim como a forma política da comuna não havia sido produzida pelas propostas ou pelo ideário de qualquer agrupamento político. Mas a Comuna de Paris permitiu aos revolucionários russos, a partir das lições deixadas por Marx, aprender as conclusões da experiência parisiense. Por isso, os bolcheviques não demoraram a identificar nos sovietes a forma política da emancipação econômica do trabalho. Lenin era o principal dirigente da fração bolchevique que se converteu definitivamente em partido político independente em 1912.
O aprendizado das lições de Marx sobre a necessidade da destruição do Estado burguês e da defesa de organismos de autodeterminação democrática do movimento de massas foi decisivo para os revolucionários russos. Mas Lenin foi além, ao desenvolver o balanço das razões da derrota da Comuna. Andou na esteira de Marx, mas refletiu de modo mais profundo sobre a questão e apresentou uma solução inovadora. Foi um dos seus aportes para o marxismo, a saber: a importância de um partido revolucionário de combate, um partido de ação, cujo objetivo é impulsionar a organização e a mobilização das massas até a tomada do poder e a construção de organismos dos próprios trabalhadores para exercer o poder.
Lenin percebeu que a tomada do poder e, sobretudo, a sua conservação exigiam a construção de uma máquina independente própria, capaz de realizar campanhas nacionais, de multiplicar a força de uma ideia através da agitação nacional unificada e do assentamento de golpes de modo centralizado. Percebeu que tal máquina de luta foi o maior déficit da Comuna. E, de fato, uma das conclusões que se impõe da história da Revolução Russa, desta imensa revolução que inaugurou uma época de revoluções proletárias, é que sem o Partido Bolchevique a revolução russa não teria ocorrido. E sem Lenin, provavelmente, o Partido Bolchevique não teria encontrado no tempo certo a linha correta para dar a torção necessária na situação para que o proletariado pudesse tomar o poder. Este talvez seja o maior testemunho histórico do elemento subjetivo, da importância da clareza política, da ação da vanguarda, do partido e até do papel do indivíduo na história. Mesmo sem pretender uma análise exaustiva, não quero deixar de aproveitar de compartilhar com os leitores as reflexões de Trotski sobre algumas destas questões. A citação é longa, mas vale.
Referindo-se às Teses de Abril, objeto de artigo de outro autor para esta revista, Trotski perguntava no seu livro Stalin (p.382): “Mas, que milagre fez Lenin para conseguir, em poucas semanas, deslocar o curso do partido para um novo canal? A resposta deve ser buscada simultaneamente em duas direções: os atributos pessoais de Lenin e a situação objetiva. Lenin era forte não só porque compreendia as leis da luta de classes, mas também porque seus ouvidos estavam perfeitamente sintonizados com a agitação das massas em movimento. Ele representava menos a máquina do partido e mais a vanguarda do proletariado. Estava definitivamente convencido de que milhares de trabalhadores que haviam carregado o peso de sustentar o partido clandestino agora o apoiariam. Naquele momento, as massas eram mais revolucionárias do que o partido, e o partido era mais revolucionário do que a sua máquina. Já em março, a atitude real dos operários e dos soldados, em muitos casos, ganhou contornos evidentemente torrenciais, e isso era amplamente diferente das orientações de todos os partidos, incluindo o bolchevique. A autoridade de Lenin não era absoluta, mas era tremenda, por conta de que toda a experiência vivida foi uma confirmação de sua presciência. Por outro lado, a autoridade da máquina do partido, assim como seu conservadorismo, estava apenas em construção naquele momento. Lenin não exercia a mera influência de um indivíduo, mas incorporava a influência da classe sobre o partido e do partido sobre sua máquina. Sob tais circunstâncias, quem tentava resistir logo perdia o chão. Os vacilantes se alinharam com os da frente, os cautelosos se juntaram à maioria. Assim, com perdas relativamente pequenas, Lenin conseguiu reorientar o partido a tempo e prepará-lo para a nova revolução.”
Em seguida, ainda sobre o papel do indivíduo, Trotski pergunta: “Isso significa que, no Partido Bolchevique, Lenin era tudo e todos os outros nada? Tal conclusão, que é bastante difundida nos círculos democráticos, é extremamente tendenciosa e, portanto, falsa. O mesmo poderia ser dito sobre a ciência. A mecânica sem Newton e a biologia sem Darwin aparentemente não significaram nada por muitos anos. Isso é verdadeiro e falso. Foi necessário o trabalho de milhares de cientistas de base para coletar os fatos, agrupá-los, levantar o problema e preparar o terreno para as soluções abrangentes de um Newton ou um Darwin. Essa solução, por sua vez, afetou o trabalho de novos milhares de pesquisadores de base. Os gênios não criam a ciência fora de si mesmos.
“Eles simplesmente aceleram o processo de pensamento coletivo. O Partido Bolchevique tinha um gênio como dirigente. E isso não era por casualidade. Um revolucionário da composição e da amplitude de Lenin só poderia ser o dirigente do partido mais destemido, capaz de levar seus pensamentos e ações à sua conclusão lógica. Mas o gênio em si é a mais rara das exceções. Um gênio se orienta mais rapidamente, avalia a situação de forma mais completa, vê mais longe do que os outros. Era inevitável que uma grande lacuna se desenvolvesse entre o gênio e seus colaboradores mais próximos. Pode até ser admitido que, em certa medida, o próprio poder da visão de Lenin agia como um freio ao desenvolvimento da autoconfiança dos seus colaboradores. No entanto, isso não significa que Lenin era “tudo”, e que o partido sem Lenin era nada. Sem o partido, Lenin teria sido tão impotente quanto Newton ou Darwin sem o trabalho científico coletivo. Não se trata, portanto, de pecados especiais do bolchevismo, presumivelmente condicionados pela centralização, pela disciplina e por coisas do tipo, mas uma questão do problema do gênio dentro do processo histórico. Escritores que tentam desprezar o bolchevismo alegando que o Partido Bolchevique teve a sorte de ter tido um gênio à sua frente, simplesmente confessam sua própria vulgaridade intelectual”.
A direção bolchevique teria encontrado a linha de ação correta sem Lenin, porém, mais lentamente, às custas de fricções e lutas internas. Os conflitos de classe continuariam a condenar e a rejeitar as consignas sem sentido da velha guarda bolchevique. Stalin, Kamenev e outros quadros de segundo escalão tiveram a opção de expressar consistentemente as tendências da vanguarda proletária ou simplesmente desertar para o lado oposto das barricadas. Não devemos esquecer que Shliapnikov, Zalutsky e Molotov tentaram seguir um curso mais à esquerda desde o início da revolução. No entanto, isso não significa que o caminho certo teria sido encontrado de qualquer maneira. O fator tempo desempenha um papel decisivo na política especialmente em uma revolução.
A luta de classes raramente espera indefinidamente até que os dirigentes políticos descubram o que é preciso fazer. O gênio é importante porque, ao encurtar o período de aprendizagem por meio de lições práticas, ele permite que o partido influencie o desenvolvimento dos eventos no momento apropriado. Se Lenin não tivesse chegado no início de abril, sem dúvida o partido teria eventualmente tentado o caminho proposto em suas Teses. Mas alguém poderia preparar o partido a tempo para o desenlace de Outubro? Essa pergunta não pode ser respondida categoricamente.
Uma coisa é certa: nesta situação que exigia confrontar resolutamente a lenta máquina do partido com massas e ideias em movimento “Stalin não poderia ter agido com a iniciativa criativa necessária e teria sido um freio e não um propulsor. Seu poder só começou depois que se tornou possível subordinar as massas com a ajuda da máquina.” (p.384)
Embora longa, a citação supracitada resume muito bem a relação classe, vanguarda e partido, sintetizando também a concepção marxista do papel do indivíduo na História. Lenin sempre teve cuidado para que a classe trabalhadora fosse escutada, sobretudo nos momentos de ascenso. Sempre apostou na vanguarda e teve que se apoiar na vanguarda lutadora contra a máquina do partido em momentos decisivos. Foi sua confiança na classe trabalhadora, nas suas lutas, sua relação orgânica com a vanguarda lutadora que permitiu isso. E, claro, sua capacidade, a profundidade de seu conhecimento sobre o marxismo (quando não há um gênio como Lenin a necessidade de a vanguarda se empoderar da máquina aumenta ainda mais).
Por isso os bolcheviques conseguiram tomar o poder e derrotar os exércitos escravistas da burguesia de então, já em sua época imperialista. Sem a máquina criada por Lenin teria sido impossível. A revolução talvez não tivesse ocorrido ou o novo poder não chegasse sequer aos dois meses da Comuna de Paris. O processo histórico, porém, reservou uma nova e profunda derrota para o movimento de massas. Foi uma derrota diferente da derrota da Comuna. Na experiência francesa faltou uma máquina de luta, uma arma de guerra que pudesse enfrentar a contrarrevolução. Os revolucionários russos foram capazes de construir esta máquina.
Mas a máquina de um partido, o mais revolucionário do século XX, tende ao conservadorismo até mesmo em momentos de ação de massas, quando há refluxo, quando as lutas não dominam a situação (também quando há uma democracia burguesa por um período muito longo, que é o caso do Brasil atual), as pressões conservadoras são muito superiores. No caso da Revolução Russa, o desgaste da guerra civil, o refluxo da revolução mundial, o cansaço e as dificuldades econômicas levaram a máquina do partido primeiro a substituir os organismos da classe trabalhadora e, logo em seguida, a defender seus próprios interesses materiais, os interesses de reprodução da própria máquina e os privilégios que esta posição de poder permitia ser usufruídos numa situação de escassez extrema.
Nesta situação falar em continuidade da revolução, em permanência da revolução, era o oposto do que queria a máquina que havia sido criada por Lenin, mas que já havia se transformado totalmente. O socialismo num só país, a “teoria” de Stalin de 1924, era como música para estes interesses. E Lenin não estava mais vivo. Sua morte foi um golpe. A revolução perdera seu principal comandante. A máquina, antes revolucionária, passou a perseguir os revolucionários e se converteu em máquina da contrarrevolução política, numa demonstração de que o processo histórico não encontra linearidade, se desdobra por mudanças bruscas, por saltos, por transformação de algo em seu contrário.
Sob o domínio de Stalin, a derrota da revolução foi histórica. Se o partido revolucionário bolchevique forjou quadros impressionantes, o stalinismo foi uma máquina de assassiná-los. Do Comitê Central bolchevique e dos três membros suplentes eleitos no sexto congresso do partido em agosto de 1917 portanto do Comitê Central que encabeçou a Revolução de Outubro e do primeiro governo somente quatro sobreviveram aos expurgos stalinistas. Alguns deles: Rykov, Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Krestinsky, Smilga, Berzin, Milyutin, Lomov (todos fuzilados pelo regime totalitário de Stalin); além de Sokolnikov, preso e depois morto; Joffe, que se suicidou; e por fim Trostky, perseguido durante anos, tendo dois de seus filhos assassinados, até o atentado que tirou sua própria vida em agosto de 1940.
Assim, identificar o leninismo e o Partido Bolchevique da revolução com Stalin e o poder soviético depois de sua ascensão e sua consolidação foi, sem dúvida, uma das mais cínicas operações ideológicas da burguesia e seus políticos, jornalistas e intelectuais. Contaram com a ajuda preciosa do próprio stalinismo, que quis se manter ligado ao prestígio da Revolução de Outubro. Era também um poderoso mecanismo do regime totalitário para manter isolada a oposição. A operação foi cínica, mas bem sucedida. Grandes massas no mundo todo identificaram o comunismo com o stalinismo. Até hoje pagamos por esta derrota e por esta confusão.
Apesar disso os trabalhadores e a juventude seguem lutando e, no conflito de classes, se produzem organizações que buscam responder aos interesses do mundo do trabalho. A história recente do Brasil e de suas organizações mostra isso. Mostra novas tentativas, novas derrotas. E novas tentativas. O PT foi o resultado do ascenso de massas dos anos 70 e 80. Respondeu ao fracasso do projeto nacionalista burguês e aos projetos stalinistas, expresso nos PCs. O fracasso do PT, sua conversão em partido do regime burguês, impôs a fundação do PSOL. Agora o PSOL tem uma obrigação histórica em suas mãos. Se algo deixa clara a experiência histórica é a necessidade de se combater a burocratização. E esta ocorre quando dirigentes estão mais preocupados em reproduzir a própria máquina do que em servir e participar das lutas das classes trabalhadoras e da juventude. O conservadorismo do partido aumenta quanto mais longe a direção e os dirigentes estão do processo vivo, da intervenção direta. Quando os diregentes são cada vez mais selecionados no interior da própria máquina e não estão em sintonia, em contato com o povo. O PSOL também precisa estudar estas lições.