Luciana Genro
A inspiração mais direta de Margareth Atwood para escrever o livro The Handmaid’s tale O conto da Aias foi a ascensão da direita cristã nos Estados Unidos durante os anos 1970 e início dos anos 80, e a Revolução Islâmica de 1979, no Irã. Mas uma história familiar também contribuiu. Desde criança, Atwood ouviu histórias de sua avó sobre Mary Webster, que talvez fosse sua parente. Webster realmente existiu, foi enforcada (e sobreviveu) em Hadley, Massachusetts. Em 1685 ela foi acusada de bruxaria, alguns anos antes dos famosos julgamentos das “Bruxas de Salem”. Estes começaram em 1692, quando foram assassinadas 20 pessoas e outras 150 foram presas por acusações de bruxaria na Massachusetts colonial.
Mas o que as bruxas têm em comum com a história contada por Atwood? Não há bruxas no livro, mas há muito naquela ficção que nos remete ao episódio histórico muito bem analisado por Silvia Federici no livro Calibã e a Bruxa. Vamos por partes.
Teocracia fundamentalista
No livro de Atwood, a República de Gilead é uma teocracia fundamentalista surgida de um golpe que liquidou com o Estado democrático de direito norte-americano. Acidentes nucleares, epidemias e desastres naturais dizimaram boa parte da população e tornaram a maior parte das mulheres inférteis.
A história é contada por uma aia, como são chamadas as mulheres férteis que foram escravizadas e transformadas em reprodutoras de filhos dos Comandantes, os homens poderosos e ricos daquele país.
Nessa ditadura misógina e brutal, a maior resistência ao novo regime vinha das mulheres. Assim, foi preciso esmagá-las. Foram degradadas, humilhadas e submetidas. Perderam toda a autonomia. As mulheres foram proibidas de trabalhar e até de ler. Cartões de crédito foram cancelados. As aias perderam inclusive o direito a um nome próprio. Offred, nossa narradora, era June. Mas agora ela é propriedade do Comandante Fred. As mulheres devem viver como autômatos, cumprindo os papéis que lhes forem determinados de acordo com a sua classe social e com sua capacidade reprodutiva. As aias têm por obrigação procriar são estupradas pelos Comandantes até engravidar e entregar seus filhos e filhas para as esposas inférteis que sonham em ser mães. A história carrega, de forma simbólica, muito do passado e do presente das mulheres.
Nas origens do capitalismo, degradar para dominar
No livro Calibã e a Bruxa, Sílvia Federici relata todo o processo econômico e político que se desenvolveu para que o capitalismo pudesse consolidar a dominação sobre a humanidade e o papel que desempenhou nesse contexto que ficou conhecido como “caça às bruxas”. Muito dessa história real, relatada por Federici, pode ser vislumbrada em O conto da Aia.
Assim, como em Gilead, o novo regime político necessita subjugar a maioria do povo. Para consolidar o capitalismo na Europa, foi preciso derrotar a resistência dos camponeses e, na América, a resistência dos nativos e dos escravos. Em ambos os contextos, as mulheres eram parte fundamental da resistência. Degradá-las, quebrar suas forças na comunidade e submetê-las aos interesses do novo modelo econômico era, portanto, um imperativo. Como na história real, na ficção de Gilead também as mulheres precisam ser degradadas e quebradas para que o regime se imponha.
No mundo real, a caça às bruxas foi fundamental para isso. Não casualmente, essa operação de perseguição e incineração de mulheres coincidiu com revoltas urbanas e rurais, com as guerras camponesas contra o cercamento dos campos e a privatização da terra, especialmente na Inglaterra em 1549, 1607, 1628, 1631, mas também com força na França e Alemanha, muitas delas iniciadas e dirigidas por mulheres. Também na América, a ideia de bruxaria foi utilizada para quebrar a resistência dos povos originários. Muito tempo depois, em 1871 durante a Comuna de Paris, a burguesia parisiense retomou o mito da bruxaria para demonizar as mulheres communards, acusando-as de querer incendiar Paris.
Demonizar e reprimir as mulheres significava intimidar e reprimir todos os insatisfeitos e os que ousavam se revoltar. Segundo Federici, os homens que haviam sido expropriados, empobrecidos e criminalizados culpavam as bruxas por sua desgraça e viam no poder que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades uma ameaça que poderia se voltar contra eles. Em Gilead, antes do golpe, as mulheres eram fortes e confiantes em suas capacidades.
A questão da reprodução
Em Gilead também estava em jogo a tarefa da reprodução, pois eram poucas as mulheres férteis. Assim como na época das caças às bruxas, o corpo das mulheres não podia mais ser controlado por elas mesmas. Era preciso torná-lo território sob o domínio do Estado.
Desde a sociedade medieval, as mulheres já tentavam controlar a função reprodutiva. As chamadas “poções para a esterilidade” são referências ao uso feminino de contraceptivos e também ao aborto. Até a Alta Idade Média a própria Igreja reconhecia que as mulheres tinham o direito de li[1]mitar as gestações por razões econômicas.
Segundo Federici, foi a catástrofe demográfica resultante da “peste negra”, que entre 1347 e 1352 dizimou mais de um terço da população europeia, que levou a uma mudança brutal nesse cenário. O controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser visto como uma ameaça à estabilidade econômica e social diante da crise do trabalho provocada pela peste, ao escassear a mão de obra e aumentar o custo.
Era preciso quebrar o controle que as mulheres haviam exercido sobre seus corpos e sobre a reprodução. Isso foi feito demonizando o controle da natalidade e a sexualidade não reprodutiva, implementando penas mais severas ao aborto, à contracepção e ao infanticídio. As parteiras foram marginalizadas, pois era necessária uma vigilância estrita às mulheres durante a gravidez e o parto. Assim, os médicos homens passaram a tomar conta dos partos, expulsando o grupo de mulheres que se reunia em torno da futura mãe e tirando das mulheres o controle sobre esse momento.
Nas palavras de Federici: “Enquanto na Idade Média as mulheres podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o processo de parto, a partir de agora os úteros se transformaram em território político, controlado pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista”. (p.163)
O ataque contra as mulheres, a demonização, a degradação e o vilipêndio econômico e moral serviram para justificar a criminalização do controle sobre a reprodução. O extermínio sempre foi uma resposta da classe dominante diante da resistência, e com as mulheres não foi diferente. A caça às bruxas exerceu esse papel decisivo na construção da nova função social das mulheres e da degradação de sua identidade social. Junto à apropriação masculina de seu trabalho, temos o que Federici chamou de patriarcado do salário.
Trabalho produtivo e reprodutivo está conectado
O controle sobre o corpo e o trabalho das mulheres é uma necessidade do capitalismo. Vocês já se deram conta de que o trabalho tomado das mulheres sem remuneração ou mal remunerado é o que mantém a sociedade funcionando?
Há um conjunto de coisas por trás do trabalho produtivo que gera o lucro e que tornam possível o sistema. Entre elas está o trabalho reprodutivo, não pago ou mal pago, executado pelas mulheres.
Trata-se do trabalho de gerar e cuidar das crianças que serão a futura força de trabalho, cuidar dos idosos que já não mais produzem lucro, garantir que a atual força de trabalho possa se alimentar, se vestir, se divertir e até aliviar as frustrações com o trabalho alienado ou a falta dele. Educar e dar assistência a quem necessita, desde saúde até comida.
Estamos falando da socialização das crianças, da educação, de serviços de saúde e dos serviços sociais. A mão de obra nesse tipo de atividades está fortemente feminizada em dois sentidos: a maioria das trabalhadoras (assalariadas ou não assalariadas) são mulheres. Grande parte delas fazem esses serviços sem remuneração alguma, para algum familiar e as assalariadas são extremamente exploradas e mal pagas.
Recentemente, a luta das mulheres argentinas arrancou conquistas importantes nesse terreno da reprodução. Primeiro foi o direito ao aborto, legalizado em dezembro de 2020 após uma luta de muitos anos e gigantescas manifestações. Mais recentemente, em julho deste ano, um decreto possibilitou que mulheres em idade de aposentadoria possam acrescentar de um a três anos de tempo de serviço por filho que tenha nascido com vida, de modo que elas atinjam o tempo mínimo exigido por lei para alcançar o direito à Previdência.
São conquistas importantes e inspiradoras para nós, mulheres brasileiras que estamos muito atrás das argentinas nessa luta. Ao mesmo tempo sabemos que a opressão das mulheres é um elemento estrutural da divisão do trabalho. É, portanto, um dos fatores diretos por meio do qual o capitalismo não apenas reforça a dominação em termos ideológicos, mas também continuamente organiza a exploração da força de trabalho e sua reprodução.
Mudando o mundo
Na ficitícia Gilead as mulheres sofreram uma derrota histórica com o golpe. Grupos clandestinos conformam a resistência, lutam pelas crianças tomadas de suas mães e tramam formas de resistir.
Elas sabem que a única forma de libertação é o fim daquele sistema econômico e regime político. No mundo real a transição do feudalismo para o capitalismo também foi ancorada em uma derrota histórica das mulheres, muito bem descrita por Federici. Por isso a luta feminista é também uma luta anticapitalista.
Liberdades democráticas duramente conquistadas pelas lutas da classe trabalhadora e pelas lutas feministas nos possibilitaram avançar muito em conquistas para as mulheres. A vitória de Trump nos Estados Unidos havia colocado a possibilidade de uma nova derrota histórica para as mulheres, assim como para as LGBTS e para a negritude, o que seria uma derrota dos interesses da classe trabalhadora. Mas ela não ocorreu. Trump foi corrido da Casa Branca. No Brasil também temos que derrotar Bolsonaro, assim como a extrema direita onde quer que ela levante a cabeça. Isso será feito com a mais ampla unidade de ação na luta feminista e também com a construção de uma esquerda coerente, anticapitalista e antissistema. A luta de classes, a luta das mulheres, assim como a luta da negritude e das LGBTs, são parte de um mesmo enfrentamento contra a exploração e todos os tipos de opressão.
Não seremos subjugadas como mulheres de Gilead. Somos herdeiras das ditas bruxas, nossas antepassadas rebeldes, mas dessa vez não seremos nós a arder nas fogueiras. A luta das mulheres já mudou e continuará mudando o mundo!